Entrevista

A arte é uma arma de intervenção social
A arte é uma arma de intervenção social

Alexandre Farto_credit-RuiSoares_2015.jpgDa margem sul para as ruas do mundo, "Vhils" faz arte pública e para o público a nível global, em paredes e murais, recorrendo a uma linguagem visual inconfundível.

A partir de que idade ou de que obra é que teve consciência artística da dimensão do seu trabalho?
Não consigo apontar uma obra específica, mas coincidiu com o meu próprio amadurecimento por volta dos 16, 17 anos, quando comecei a questionar o que eu estava a fazer na altura e aquilo que eu queria fazer no futuro. Desde os 13 anos que eu andava a pintar "graffiti" ilegal, que funciona numa lógica de círculo fechado. Simplesmente comecei a sentir necessidade de criar trabalho que comunicasse com um público mais vasto. Os anos de "graffiti" já me tinham feito entender o potencial de usar o espaço público para comunicar e interagir diretamente com as pessoas, e foi movido por esse interesse que comecei a explorar outras técnicas e suportes como o "stencil", que me permitiram desenvolver um tipo de trabalho mais artístico e mais acessível.

Começou com uma lata de "spray" na mão a grafitar os comboios e muros do Seixal, concelho onde nasceu, período que considera uma espécie de «escola ilegal». O que é que ficou desses tempos em termos de conceitos e técnicas?
Muita coisa. As mais importantes foram o conceito de vandalismo estético e o uso de técnicas destrutivas para criar. O "graffiti" é visto essencialmente como uma atividade destrutiva, vandalística, e eu sempre achei interessante o modo como um ato criativo podia ser visto como algo belo por aqueles que o faziam mas ao mesmo tempo ser visto pelo resto da sociedade como algo destrutivo. Quando comecei explorar outras linhas de trabalho quis manter algo dessas práticas destrutivas do "graffiti" - como as ferramentas usadas para rasurar, cortar, desfigurar, gravar, e marcar superfícies urbanas - para o campo da arte. Este uso vem da vontade em querer subverter tanto o conceito de vandalismo, como o próprio conceito de arte, de esbater as fronteiras entre um e o outro.

Circulam várias petições que pedem regras mais apertadas contra as pichagens e os "graffiti". Utilizada em locais impróprios este tipo de forma de expressão pode ser considerada vandalismo?
O "graffiti" vive da impropriedade, e nesse sentido é fundamentalmente vandalismo. Pode ser mais ou menos belo, pode ser mais ou menos estético, pode ser mais ou menos artístico, mas a sua essência é precisamente essa: ilegal e vandalística. O resto, as intervenções autorizadas, os murais, a arte urbana, já não são "graffiti".

Coisa bem diferente é a arte urbana ou "urban art". Em pouco tempo, a capital portuguesa pode rivalizar com outras cidades como, por exemplo, Berlim, entrando estas obras nos roteiros turísticos da nossa capital?
Não tenho dúvidas que neste momento Lisboa já é mais procurada devido à sua oferta de arte pública do que Berlim.
O caso de Lisboa tem merecido um destaque contínuo por parte dos "media" e estudiosos internacionais, e tem gerado um interesse enorme. No entanto, é importante não esquecer que a raiz desta nova forma de arte pública é precisamente ilegal, e essa dinâmica continua a ser importante para a criação livre. O que tem acontecido é que ao longo dos últimos anos este novo ramo foi evoluindo e ganhando reconhecimento devido àquilo que consegue trazer de positivo para a cidade: a maneira como consegue contribuir para regenerar e ativar espaços degradados, a maneira como consegue fazer-nos olhar para a arte e consumi-la de outra maneira, num espaço aberto, de forma livre e direta, sem intermediários, ou a maneira como tem contribuído para gerar uma nova dinâmica e uma nova oferta cultural que tem impacto social e até retorno económico.

Num mundo agitado e convulso, as suas obras são convites à contemplação e à reflexão. Considera que faz arte em estado puro?
Há uma procura por um certo grau de pureza nos conceitos e nos materiais, mas a intenção é desenvolver uma arte mais orgânica, mais próxima da nossa experiência da transitoriedade que nos rodeia. Não tem propriamente a ver com a procura de uma arte em estado puro.

Quatro colaboradores da plataforma Underdogs, dirigida por si, responderam ao convite da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e desenharam no muro da universidade o rosto de Salgueiro Maia, um dos ícones da revolução de 25 de abril, a partir de uma foto de Alfredo Cunha. Entretanto, já esculpiu o rosto de Zeca Afonso numa escola do Seixal. Imortalizar o passado e deixar mensagens para as gerações futuras foi o objetivo?
Sim, é importante reflectir sobre o passado e estabelecer ligações com o presente, mas é igualmente importante fazê-lo de forma não dogmática. Como disse o pensador espanhol Jorge Santayana, «Aqueles que esquecem o passado, estão condenados a repeti-lo.»

Foi o autor de uma escultura alusiva ao 25 de abril, inaugurada no último aniversário da revolução nos jardins do palácio de S. Bento. Apesar de só ter nascido em 1987, a sua geração sofreu o impacto do 25 de abril. Que valores procurou plasmar na sua escultura?
A ideia foi de criar uma peça capaz de expressar os ideais da revolução: democracia, liberdade, paz e justiça social, trabalhando com alguns dos seus símbolos mais emblemáticos. O cravo foi o elemento que me pareceu ser mais consensual, no sentido de representar o fundamento de um evento que, apesar de ter sido uma revolução política e social com algumas convulsões, foi essencialmente pacífico. Retrata também um rosto que faz referência à República e os valores da mesma, que olha simbolicamente para o futuro sem esquecer a herança do passado. A peça tenta sublinhar a importância desta estrutura que assenta na liberdade e nos ideais da revolução e a ideia que devem continuar a fazer parte da estrutura do olhar que temos para o futuro.

A música foi, noutros tempos, considerada uma arma. A arte pode ser uma forma de ser iconoclasta e de intervir socialmente? Assume-se como um antisistema?
Acho que tanto a música continua a ser uma arma de intervenção social, como a arte também o tem sido ao longo dos tempos. Depende tudo da intenção de quem a faz e do contexto. O meu trabalho tem por base uma reflexão com uma intenção artística, mas também social e interventiva. Desenvolve uma reflexão de natureza crítica, mas não é antisistema. Atua dentro do sistema com o interesse em convidar a uma reflexão sobre os aspectos mais negativos do mesmo, mas procura fazê-lo com base naquilo que já cá está. Procura regenerar mais do que destruir apenas por destruir.

Urban Xchange - Malasya 2015 - creditVhils.jpgDepois dos descobridores portugueses, que deram mundos ao mundo, "Vhils" já deixou a sua marca em dezenas de locais em todo do mundo, desde a Espanha, Rússia, Hong Kong, Macau e Colômbia, só para citar alguns. Sente-se um privilegiado divulgador da marca e do lastro da portugalidade?
Sinto muito orgulho nas minhas raízes, mas não gosto de me rever na condição de "embaixador" da cultura portuguesa, como já vi ser referido. O meu trabalho nasceu nas ruas da margem sul e de Lisboa e tem em si uma certa portugalidade que por vezes não é aparente, mas que está lá de forma natural. Mais do que através da minha pessoa, o que levo daqui é essa dimensão presente nas ideias, no entendimento do mundo, nos conceitos que dão forma à obra.

 

Diz-se que Portugal está na moda, não apenas no setor do turismo. O Presidente da República afirma que «quando somos muito bons, somos os melhores dos mundos». Se existe qualidade e valor, o que falta para manter constante no tempo um país confiante e sem cíclicos estados de alma? A estranha atração pelo abismo está nos nossos genes?
Há certamente uma dimensão fatalista no carácter português, como nos atesta o fado, mas creio que a realidade é muito mais complexa do aquilo que consigo sintetizar numa simples resposta aqui!
Estudou em Londres por não ter conseguido entrar em Belas Artes, em Lisboa, mas regressou ao nosso país, onde se fixou, quando muitos faziam as malas e partiam. Hoje gere uma estrutura comercial (um ateliê e uma galeria) que dá sustento a 15 famílias. Sente-se realizado na perspetiva social e comunitária?
Em certa medida sim, mas há ainda muito mais para fazer. O meu regresso a Portugal deveu-se ao entendimento de que já tinha ganho uma certa dimensão que me permitia fazer aquilo que faço fosse de onde fosse. Quis demonstrar que era possível fazer trabalho para um público global a partir de um país tido como periférico, uma distinção que hoje em dia já não faz sentido com as condições tecnológicas e logísticas a que temos acesso. Isso e porque sou português e, sem presunção nenhuma, quero dar algum retorno ao país que me permitiu nascer num hospital público com condições, estudar numa escola pública com condições, e tudo o mais que fez de mim aquilo que sou hoje.

Que conselhos dá aos jovens que querem dar os primeiros passos nesta arte?
Não creio que haja uma fórmula mágica. Tal como em qualquer outra área, passa muito pela capacidade de promoção do trabalho, desenvolvimento de contactos, aproveitamento de oportunidades sem ter medo de avanços e recuos, estar disposto a investir, correr riscos. Acreditar naquilo que se faz, sobretudo, e ser-se honesto consigo mesmo e com o seu trabalho.

Arte, cultura e educação são vértices de um triângulo que devidamente articulado é a razão de sucesso de muitas sociedades Apesar dos portugueses estarem mais recetivos e mobilizados para novas formas de comunicação e expressão, admite que o consumo e os padrões culturais são ainda muito incipientes fruto de lacunas estruturais ao nível da formação?
Creio que os programas educativos e culturais não deviam estar sujeitos às flutuações do ciclo eleitoral e das intenções ideológicas de quem governa. Devia haver um consenso geral que zelasse pelo investimento contínuo nestas áreas, ao contrário dos avanços e recuos que temos observado ao longo dos últimos 40 anos. O investimento na educação e na cultura traz um enorme retorno. As indústrias culturais têm um impacto económico significativo. Mas não podemos valorizar e investir apenas na alta cultura, é preciso saber também incluir as outras, sejam culturas menores, populares, marginais, subculturas...

Diz que pretende tornar visível, o invisível. Também saltou para o primeiro plano quando realizou o vídeo "Raised by wolves" dos U2 e a revista "Forbes"  o considerou um dos 30 mais influentes do mundo na sua faixa etária. Aos 30 anos, tem alguma ambição secreta que possa partilhar?
Se partilhar, deixa de ser secreta!

 

 

 





Nuno Dias da Silva
Rui Soares, Vhils
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
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