A arte é uma arma de intervenção social
A arte é uma arma de intervenção social
Da margem sul para as ruas do mundo, "Vhils" faz
arte pública e para o público a nível global, em paredes e murais,
recorrendo a uma linguagem visual inconfundível.
A partir de que idade ou de
que obra é que teve consciência artística da dimensão do seu
trabalho?
Não consigo apontar uma obra específica, mas coincidiu com o meu
próprio amadurecimento por volta dos 16, 17 anos, quando comecei a
questionar o que eu estava a fazer na altura e aquilo que eu queria
fazer no futuro. Desde os 13 anos que eu andava a pintar "graffiti"
ilegal, que funciona numa lógica de círculo fechado. Simplesmente
comecei a sentir necessidade de criar trabalho que comunicasse com
um público mais vasto. Os anos de "graffiti" já me tinham feito
entender o potencial de usar o espaço público para comunicar e
interagir diretamente com as pessoas, e foi movido por esse
interesse que comecei a explorar outras técnicas e suportes como o
"stencil", que me permitiram desenvolver um tipo de trabalho mais
artístico e mais acessível.
Começou com uma lata de
"spray" na mão a grafitar os comboios e muros do Seixal, concelho
onde nasceu, período que considera uma espécie de «escola ilegal».
O que é que ficou desses tempos em termos de conceitos e
técnicas?
Muita coisa. As mais importantes foram o conceito de vandalismo
estético e o uso de técnicas destrutivas para criar. O "graffiti" é
visto essencialmente como uma atividade destrutiva, vandalística, e
eu sempre achei interessante o modo como um ato criativo podia ser
visto como algo belo por aqueles que o faziam mas ao mesmo tempo
ser visto pelo resto da sociedade como algo destrutivo. Quando
comecei explorar outras linhas de trabalho quis manter algo dessas
práticas destrutivas do "graffiti" - como as ferramentas usadas
para rasurar, cortar, desfigurar, gravar, e marcar superfícies
urbanas - para o campo da arte. Este uso vem da vontade em querer
subverter tanto o conceito de vandalismo, como o próprio conceito
de arte, de esbater as fronteiras entre um e o outro.
Circulam várias petições
que pedem regras mais apertadas contra as pichagens e os
"graffiti". Utilizada em locais impróprios este tipo de forma de
expressão pode ser considerada vandalismo?
O "graffiti" vive da impropriedade, e nesse sentido é
fundamentalmente vandalismo. Pode ser mais ou menos belo, pode ser
mais ou menos estético, pode ser mais ou menos artístico, mas a sua
essência é precisamente essa: ilegal e vandalística. O resto, as
intervenções autorizadas, os murais, a arte urbana, já não são
"graffiti".
Coisa bem diferente é a
arte urbana ou "urban art". Em pouco tempo, a capital portuguesa
pode rivalizar com outras cidades como, por exemplo, Berlim,
entrando estas obras nos roteiros turísticos da nossa
capital?
Não tenho dúvidas que neste momento Lisboa já é mais procurada
devido à sua oferta de arte pública do que Berlim.
O caso de Lisboa tem merecido um destaque contínuo por parte dos
"media" e estudiosos internacionais, e tem gerado um interesse
enorme. No entanto, é importante não esquecer que a raiz desta nova
forma de arte pública é precisamente ilegal, e essa dinâmica
continua a ser importante para a criação livre. O que tem
acontecido é que ao longo dos últimos anos este novo ramo foi
evoluindo e ganhando reconhecimento devido àquilo que consegue
trazer de positivo para a cidade: a maneira como consegue
contribuir para regenerar e ativar espaços degradados, a maneira
como consegue fazer-nos olhar para a arte e consumi-la de outra
maneira, num espaço aberto, de forma livre e direta, sem
intermediários, ou a maneira como tem contribuído para gerar uma
nova dinâmica e uma nova oferta cultural que tem impacto social e
até retorno económico.
Num mundo agitado e
convulso, as suas obras são convites à contemplação e à reflexão.
Considera que faz arte em estado puro?
Há uma procura por um certo grau de pureza nos conceitos e nos
materiais, mas a intenção é desenvolver uma arte mais orgânica,
mais próxima da nossa experiência da transitoriedade que nos
rodeia. Não tem propriamente a ver com a procura de uma arte em
estado puro.
Quatro colaboradores da
plataforma Underdogs, dirigida por si, responderam ao convite da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e desenharam no muro da
universidade o rosto de Salgueiro Maia, um dos ícones da revolução
de 25 de abril, a partir de uma foto de Alfredo Cunha. Entretanto,
já esculpiu o rosto de Zeca Afonso numa escola do Seixal.
Imortalizar o passado e deixar mensagens para as gerações futuras
foi o objetivo?
Sim, é importante reflectir sobre o passado e estabelecer ligações
com o presente, mas é igualmente importante fazê-lo de forma não
dogmática. Como disse o pensador espanhol Jorge Santayana, «Aqueles
que esquecem o passado, estão condenados a repeti-lo.»
Foi o autor de uma
escultura alusiva ao 25 de abril, inaugurada no último aniversário
da revolução nos jardins do palácio de S. Bento. Apesar de só ter
nascido em 1987, a sua geração sofreu o impacto do 25 de abril. Que
valores procurou plasmar na sua escultura?
A ideia foi de criar uma peça capaz de expressar os ideais da
revolução: democracia, liberdade, paz e justiça social, trabalhando
com alguns dos seus símbolos mais emblemáticos. O cravo foi o
elemento que me pareceu ser mais consensual, no sentido de
representar o fundamento de um evento que, apesar de ter sido uma
revolução política e social com algumas convulsões, foi
essencialmente pacífico. Retrata também um rosto que faz referência
à República e os valores da mesma, que olha simbolicamente para o
futuro sem esquecer a herança do passado. A peça tenta sublinhar a
importância desta estrutura que assenta na liberdade e nos ideais
da revolução e a ideia que devem continuar a fazer parte da
estrutura do olhar que temos para o futuro.
A música foi, noutros
tempos, considerada uma arma. A arte pode ser uma forma de ser
iconoclasta e de intervir socialmente? Assume-se como um
antisistema?
Acho que tanto a música continua a ser uma arma de intervenção
social, como a arte também o tem sido ao longo dos tempos. Depende
tudo da intenção de quem a faz e do contexto. O meu trabalho tem
por base uma reflexão com uma intenção artística, mas também social
e interventiva. Desenvolve uma reflexão de natureza crítica, mas
não é antisistema. Atua dentro do sistema com o interesse em
convidar a uma reflexão sobre os aspectos mais negativos do mesmo,
mas procura fazê-lo com base naquilo que já cá está. Procura
regenerar mais do que destruir apenas por destruir.
Depois dos descobridores portugueses, que
deram mundos ao mundo, "Vhils" já deixou a sua marca em dezenas de
locais em todo do mundo, desde a Espanha, Rússia, Hong Kong, Macau
e Colômbia, só para citar alguns. Sente-se um privilegiado
divulgador da marca e do lastro da portugalidade?
Sinto muito orgulho nas minhas raízes, mas não gosto de me rever
na condição de "embaixador" da cultura portuguesa, como já vi ser
referido. O meu trabalho nasceu nas ruas da margem sul e de Lisboa
e tem em si uma certa portugalidade que por vezes não é aparente,
mas que está lá de forma natural. Mais do que através da minha
pessoa, o que levo daqui é essa dimensão presente nas ideias, no
entendimento do mundo, nos conceitos que dão forma à obra.
Diz-se que Portugal está na
moda, não apenas no setor do turismo. O Presidente da República
afirma que «quando somos muito bons, somos os melhores dos mundos».
Se existe qualidade e valor, o que falta para manter constante no
tempo um país confiante e sem cíclicos estados de alma? A estranha
atração pelo abismo está nos nossos genes?
Há certamente uma dimensão fatalista no carácter
português, como nos atesta o fado, mas creio que a realidade é
muito mais complexa do aquilo que consigo sintetizar numa simples
resposta aqui!
Estudou em Londres por não ter conseguido entrar em Belas
Artes, em Lisboa, mas regressou ao nosso país, onde se fixou,
quando muitos faziam as malas e partiam. Hoje gere uma estrutura
comercial (um ateliê e uma galeria) que dá sustento a 15 famílias.
Sente-se realizado na perspetiva social e
comunitária?
Em certa medida sim, mas há ainda muito mais para fazer. O meu
regresso a Portugal deveu-se ao entendimento de que já tinha ganho
uma certa dimensão que me permitia fazer aquilo que faço fosse de
onde fosse. Quis demonstrar que era possível fazer trabalho para um
público global a partir de um país tido como periférico, uma
distinção que hoje em dia já não faz sentido com as condições
tecnológicas e logísticas a que temos acesso. Isso e porque sou
português e, sem presunção nenhuma, quero dar algum retorno ao país
que me permitiu nascer num hospital público com condições, estudar
numa escola pública com condições, e tudo o mais que fez de mim
aquilo que sou hoje.
Que conselhos dá aos jovens
que querem dar os primeiros passos nesta arte?
Não creio que haja uma fórmula mágica. Tal como em qualquer outra
área, passa muito pela capacidade de promoção do trabalho,
desenvolvimento de contactos, aproveitamento de oportunidades sem
ter medo de avanços e recuos, estar disposto a investir, correr
riscos. Acreditar naquilo que se faz, sobretudo, e ser-se honesto
consigo mesmo e com o seu trabalho.
Arte, cultura e educação
são vértices de um triângulo que devidamente articulado é a razão
de sucesso de muitas sociedades Apesar dos portugueses estarem mais
recetivos e mobilizados para novas formas de comunicação e
expressão, admite que o consumo e os padrões culturais são ainda
muito incipientes fruto de lacunas estruturais ao nível da
formação?
Creio que os programas educativos e culturais não deviam estar
sujeitos às flutuações do ciclo eleitoral e das intenções
ideológicas de quem governa. Devia haver um consenso geral que
zelasse pelo investimento contínuo nestas áreas, ao contrário dos
avanços e recuos que temos observado ao longo dos últimos 40 anos.
O investimento na educação e na cultura traz um enorme retorno. As
indústrias culturais têm um impacto económico significativo. Mas
não podemos valorizar e investir apenas na alta cultura, é preciso
saber também incluir as outras, sejam culturas menores, populares,
marginais, subculturas...
Diz que pretende tornar
visível, o invisível. Também saltou para o primeiro plano quando
realizou o vídeo "Raised by wolves" dos U2 e a revista
"Forbes" o considerou um dos 30 mais influentes do mundo na
sua faixa etária. Aos 30 anos, tem alguma ambição secreta que possa
partilhar?
Se partilhar, deixa de ser secreta!
Nuno Dias da Silva
Rui Soares, Vhils