Entrevista

Arthur Chioro, Ministro da saúde no último governo de Dilma Rousseff no Brasil
Brasil e o receio da ditadura

L1010739.JPGArthur Chioro, antigo ministro da Saúde, no último Governo de Dilma Rousseff, no Brasil, considera que o seu país corre riscos de voltar ao tempo da ditadura. Numa entrevista exclusiva ao Ensino Magazine, este médico, professor de medicina na Universidade de São Paulo, elogia o Serviço Nacional de Saúde português e lamenta a falta de investimento que o Brasil está a fazer na educação, o que impede que muitos alunos possam vir estudar em Portugal.

O «impeachment» feito a Dilma Rousseff é visto como «um golpe» por Arthur Chioro, o qual considera, que mesmo estando na prisão, Lula da Silva é o candidato mais querido dos brasileiros.

Em Portugal funciona o Serviço Nacional de Saúde, no Brasil, enquanto foi ministro dessa área, implementou o projeto "Mais Médicos". Há alguma comparação possível entre o que é prestado à população nos dois países?
É difícil fazer comparações. O Brasil só adotou um sistema universal de saúde e ideia da saúde como um direito de todos e um dever do Estado, em 1988. Acontece que, nas décadas de 60 e 70, o governo militar fez uma opção de não investir no setor público. Os recursos públicos, quer da providência social, quer os que deveriam ser destinados à saúde pública, foram utilizados para a expansão do parque hospitalar privado brasileiro. A opção foi o enfraquecimento do setor público e o reforço do privado. Quando se faz a nova Constituição e se afirma a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, o quadro que se vivia era de um serviço público destruído, onde nunca se tinha investido nos cuidados primários e os hospitais privados desligaram-se dessa prestação de serviços e ofereciam os seus serviços às seguradoras. Passámos 30 anos a construir um sistema que pudesse responder à Constituição. A expansão dos cuidados primários no Brasil ganha expressão a partir de 2005, no Governo de Lula da Silva, quando se cria a política nacional de atenção básica. Hoje nós temos 63% da população com cobertura da saúde da família e 72% com atenção básica. No entanto, e dada a dimensão do nosso país, há zonas de vazio e há outras com hiper concentração de cuidados. Para nós, o modelo português, mesmo com os muitos problemas que ele está a enfrentar, ainda é uma fonte de inspiração.

Foi ministro da Saúde do Governo de Dilma Rousseff. Que dificuldades encontrou para implementar esses cuidados de saúde. Sei que na época houve necessidade de ir buscar médicos a outros países...
Fomos buscar médicos a Cuba e a Portugal, alguns aposentados, outros com experiência de vida e outros com a perspetiva de terem uma carreira profissional. A maior dificuldade que tivemos foi o contexto de crise no momento em que assumi funções (último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff), em que também já se verificavam muitas movimentações políticas. Mas foi um período de muitas realizações, apesar da resistência de muitos médicos brasileiros. No segundo ano em que fui ministro já estava instalada a crise que acabou com golpe de 2016 que destituiu a presidente Dilma. Ou seja, conviver diariamente com aquela articulação que o presidente do Congresso Nacional, Eduardo Cunha, já desenvolvia com o chamado «baixo clero» que visava a desestabilização do governo, era muito difícil. Esse era o contexto de crise de um país que saiu do seu trilho. Participei durante quase 14 anos no governo e subestimou-se muito a capacidade da direita…

E quando perceberam que esse processo de destituição, ou golpe como lhe chama, iria ter sucesso?

Hoje, vendo retrospetivamente, verificamos que isso começou muito tempo antes quando surgiu o caso do «mensalão» em 2005. Mas, efetivamente, ele começa a desenhar-se 30 minutos depois do resultado da releição de Dilma Rousseff, em que ela vence com uma vantagem de três milhões de votos, num universo de 207 milhões de habitantes, o que foi uma margem muito pequena. É nessa altura que Aécio Neves se recusa demitir e avisa que iria judicializar os resultados. A senha «do golpe» veio nesse momento. A Constituição Brasileira foi pensada no âmbito do parlamentarismo, só que na hora da Assembleia Constituinte o que prevaleceu foi o presidencialismo. Então nós temos um presidencialismo parlamentarista. Há um poder executivo que prepara os orçamentos e os executa, mas que depende a todo o tempo do Congresso que tem um poder imenso (na curta história democrática fez a destituição de dois presidentes).

Aquilo que se percebeu é que houve uma mistura entre o poder judicial e político. Isso verificou-se?
O que aconteceu no Brasil com a destituição de Dilma Rousseff foi um golpe jurídico, parlamentar e mediático. Os principais investigadores e pensadores não terão dúvidas nisso. O parlamento operou o processo e o poder judicial deu-lhe legalidade. Mas seria impossível operar um golpe desta natureza sem o apoio dos media. O monopólio que cinco ou seis famílias têm sobre os meios de comunicação brasileiros possibilita isso. As manifestações pelo «impeachment» foram convocadas pelas redes Globo e Record. Um ano depois do «impeachment» terminava a concessão da rede Globo, teria que haver negociações. Vou dar-lhe um exemplo concreto do poder dos media: a divulgação de uma gravação de uma conversa da Dilma Rousseff com Lula da Silva em que ele poderia ser nomeado ministro (para evitar a que fosse julgado na primeira instância da justiça) no maior jornal nacional de televisão, visto por 52% da população.
O«golpe» tem vários motivos e uma origem económica muito grande, com a diminuição dos investimentos públicos nas refinarias da Petrobras, ou o congelamento dos gastos públicos durante 20 anos. Mas fica de fora destas restrições o dinheiro para a banca - tudo o que se economizava servia para pagar o sistema financeiro. No ano e meio fizeram-se reformas que destroem o sistema de proteção dos trabalhadores.

Considera que a democracia no Brasil está em risco?
Desde o início do processo do «impeachment» pela maneira como foi conduzido, pela manipulação dos meios de comunicação convocando a classe média (que apoiaram o processo como já tinham apoiado em 64), pela demonização da política e dos políticos, isso abre espaço para o fascismo.

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E é isto que está a acontecer?
É isso que está a acontecer. Sem Lula da Silva nas eleições isso pode acontecer. Após a sua prisão, verifica-se que em todos os cenários Lula da Silva é o candidato preferido. Na primeira volta ele vence e na segunda volta ganha com a menor taxa de rejeição. Sem Lula da Silva, Jair Bolsonaro, um militar reformado, «fascista e homofóbico», lidera as sondagens. Então se me perguntam se a democracia corre riscos? Eu digo que sim, pois está profundamente ferida. Mas ao mesmo tempo isto também é a falência do «golpe», pois este foi feito pelas elites económicas para que a direita voltasse ao poder perdido desde a primeira eleição de Lula da Silva. Nenhum dos candidatos que apoiaram o «golpe» consegue ter mais de 3 ou 4% dos votos. O país hoje só sai unido com o Lula da Silva, mesmo que metade da população esteja contra ele. É a única figura pública com capacidade para encontrar soluções.

E há condições para ele ser candidato?
O PT vai ter que inscrever a candidatura de Lula da Silva. A pressão social para que ele avance é muita, mas tenho muitas dúvidas que ele possa ser candidato. É uma incógnita, pois quem arquitetou o «golpe» não vai deixar de o consolidar, o que passa pelo afastamento judicial de Lula destas eleições. É que Lula da Silva é considerado o melhor presidente da história democrática do Brasil. Mesmo preso, ele é amado. Conseguiu fazer uma ascensão social de mais de 42 milhões à classe média. É claro que não deu tempo para consolidar tudo isso. Foi uma mobilização social pelo consumo. Os aspetos sociais de cidadania que pudessem construir uma nova conceção não foram consolidados. Há estudos que revelam que as pessoas dizem que viveram melhor nesse período, mas cerca de 60% atribuem isso a Deus e só 9% ao governo. Ou seja, esta mudança não foi capitalizada do ponto de vista político. Nós estamos a pagar por não termos feito as reformas política, judicial, do Estado e mediática.

Perante estas circunstâncias, quem está disponível para ir para a política? Há uma sensação que só os políticos de carreira podem fazer política, que os professores, os engenheiros, os advogados etc, não poderão ir ou não estarão interessados…
Vivemos dois fenómenos. O primeiro foi o da judicialização da política, com o ministério público a processar. Depois do «golpe» veio a demonização. São os puros contra os impuros: se você está na política, então não presta. E isso afasta muita gente, ficando os «carreiristas» da política e a esses interessa este tipo de jogo. Mas eu digo muitas vezes que a política e a representação parlamentar são o reflexo da sociedade. Eles não são eleitos por obra do «divino espírito santo», são, isso sim, eleitos pelos seus pares. Neste fenómeno da corrupção e da denúncia parece que só existe o polo corrompido, não existe o corruptor. E tudo isto abre espaço para o radicalismo, para a violência, incapacidade de se viver com a diferença. Daí até se chegar à barbárie é um passo.

Mudando de assunto. Portugal e o Brasil chegaram a assinar um acordo que permitia a vinda de alunos brasileiros para instituições de ensino superior portuguesas. Isso acabou por não se efetivar. Em que medida esse tipo de parcerias é importante?
Após o «golpe» de 2016 houve uma desmontagem do conjunto de políticas de ensino superior que vinham sendo implementadas desde o tempo de Lula da Silva. Nessa altura lançou-se o Ciência sem Fronteira, que permitiu que muitos alunos e investigadores fizessem intercâmbios com Portugal e com outros países. E isso teve um retorno muito grande. Dou o exemplo da Faculdade de Medicina de São Paulo, onde sou docente. Os meus alunos, que regressaram após um ano e meio de experiência noutros países, voltaram mais envolvidos na investigação e na inovação, com uma experiência de vida que não tem preço. Além disso, esses acordos envolviam também alunos de pós-graduações, o que melhorou muito a investigação científica. Sem estes acordos seria impossível os alunos brasileiros realizarem essa formação.
Por outro lado, estes acordos com Portugal permitem uma aproximação ao espaço europeu resultante dos acordos que existem entre as instituições portuguesas e as europeias. Acontece que houve uma diminuição muito grande nesses projetos. Até 2016 tivemos mais de três mil pós-graduados financiados pelo nosso ministério em universidades de outros países. Hoje temos 17 bolsas. Na minha área, que é a medicina, com as suas 54 áreas, foi aprovada uma bolsa apenas. Tudo isto é um desastre para o Brasil.

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CARA DA NOTÍCIA

Arthur Chioro

Arthur Chioro foi Ministro da Saúde do Brasil entre 2014 e 2015. Graduado em medicina, mestre em Saúde Coletiva pela Unicamp (2001) e doutor em Ciências pela UNIFESP (2011), é professor-adjunto no Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP (área Política, Planejamento e Gestão em Saúde). Orientador permanente (mestrado e doutorado) do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da EPM/Unifesp, Artur Chioro é professor de Saúde Coletiva da Faculdade de Fisioterapia (Unisanta) e da Faculdade de Medicina (UNIMES), ambas de Santos-SP. Professor visitante da Faculdade Meridional (IMED), de Passo Fundo-RS. Foi secretário municipal de saúde de São Vicente-SP (1993-1996) e de São Bernardo do Campo-SP (2009-2014); e foi diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (2003-2005).

João Carrega
 
 
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