Bocas do galinheiro
Fado e Cinema
Na sua
obra "Para uma História do Fado", Rui Vieira Nery é claro quando
afirma que "nestes alvores do século XXI, é inegável que ao longo
dos últimos cinquenta anos o Fado foi adquirindo uma visibilidade
crescente e uma presença marcante no conjunto da vida cultural
portuguesa. Mesmo sem insistirmos demasiado no facto histórico de
enorme carga simbólica que constituiu a admissão de Amália
Rodrigues no Panteão Nacional, não pode haver dúvidas de que o Fado
tem vindo a romper progressivamente, em particular desde o
pós-guerra, todas as barreiras socio-culturais a que
tradicionalmente estava sujeito: conquistou de uma vez por todas o
território da poesia erudita, desde o património trovadoresco e
renascentista à criação literária contemporânea; é uma presença
frequente na programação das salas de espectáculo mais
prestigiadas, dentro e fora do País; algumas das suas figuras mais
emblemáticas converteram--se em verdadeiros ícones das artes do
espectáculo portuguesas e em símbolos da respectiva modernidade
estética; dialoga abertamente, em pé de plena igualdade, com outros
géneros performativos poético-musicais, tanto populares como
eruditos; é hoje uma das correntes em maior afirmação no âmbito de
chamada 'World Music' internacional e no seio desta é cada vez mais
olhado como uma matriz identitária do nosso
País".
Este reconhecimento do Fado, há
muito que já estava no cinema. A atracção, não só pela música, mas
pelos seus ícones, já vem da época do mudo, desde logo com "Fado",
de Maurice Mariaud (1923), não muito bem recebido pela crítica da
altura, mais pelo facto de o realizador ser estrangeiro, para além
de outros de que não restam cópias. Mas, para a história ficará "A
Severa", de Leitão de Barros (1931) que, como assinala Jorge Leitão
Ramos no seu Dicionário do Cinema Português (1895-1961), é o
primeiro fonofilme português, apesar de anunciado como "falado e
cantado", mas que o autor classifica como filme de transição, o
filme que deu oportunidade ao Fado de estrear o sonoro em Portugal,
numa adaptação da peça de Júlio Dantas. E, no primeiro filme sonoro
inteiramente produzido em Portugal, "A Canção de Lisboa", de 1933,
dirigido por Cottinelli Telmo, volta a ter o Fado como pano do
fundo, com o "Fado do Estudante", interpretado por Vasco Santana,
que encarna o estudante Vasco Leitão, o Vasquinho da Anatomia, da
boémia lisboeta, futuro doutor.
Claro que serão incontornáveis os
filmes com Amália Rodrigues. Como não podia deixar de ser. Mesmo
não sendo obras-primas, são documentos que marcam a história da
nossa música, a começar por "Capas Negras", de Armando de Miranda
(1947), um enorme êxito na época, protagonizado por Amália e
Alberto Ribeiro, uma história de amor, com muito fado e canções de
Coimbra, a que se junta, obviamente, "Fado, História de uma
Cantadeira", de Perdigão Queiroga (1948), que nos conta a ascensão
de uma promissora jovem ao estrelato e o abalo que causa no seu
namorado, um modesto guitarrista, interpretado por Virgílio
Ferreira, que, como não poderia deixar de ser, nos deixa um
alargado repertório de fados magistralmente cantados por Amália.
Filmes como "Sangue Toureiro", de Augusto Fraga (1958), em que
contracena com o matador Diamantino Viseu ou "Fado Corrido", de
Jorge Brum do Canto (1964), adaptado de um conto de David
Mourão-Ferreira, ao lado do próprio realizador, em que aparecem já
alguns fados da famosa parceria de Amália com Alain Oulman.
Mas outros fadistas protagonizam
filmes cujo leitmotiv é o Fado. "O Miúdo da Bica" (1963), realizado
por Constantino Esteves, que conta a história de Fernando Farinha,
um fadista que na altura conhecia o seu momento alto, por seu lado
em "Madragoa" (1952), de Perdigão Queiroga", Deolinda Rodrigues e
Ercília Rodrigues dão voz à banda sonora ambientada neste bairro da
capital. Hermínia Silva, outra popular fadista, contemporânea de
Amália, surge a interpretar belos fados numa série de filmes, como
"Ribatejo", 1949, de Henrique de Campos, "Aldeia da Roupa Branca",
1939, de Chianca de Garcia ou "O Costa do Castelo" (1943), de
Arthur Duarte.
Mas, para além de portugueses,
alguns realizadores estrangeiros se encantaram pelo Fado e o
incluíram nos seus filmes, a começar por Henri Verneuil com "Os
Amantes do Tejo" (1955), com fados interpretados por Amália
Rodrigues, de Ray Milland "Lisbon" (1956), que aqui contracena com
Maureeen O'Hara, em que o tema "Lisboa Antiga" é cantado por Anita
Guerreiro ou Pierre Gaspard-Huit que em 1957 dirige "As Lavadeiras
de Portugal", com um fado cantado por Carlos Ramos.
Vários documentários abordaram o
tema do Fado e dos seus intérpretes, com destaque para "Fados"
(2007), de Carlos Saura, uma sincera e honesta homenagem à canção
nacional, prestando tributo a grandes intérpretes, com destaque
para Amália e Alfredo Marceneiro, e que deu voz a fadistas
contemporâneos, com destaque para Carlos do Carmo que deu voz ao
Prémio Goya para Melhor Canção Original com o "Fado da
Saudade".
Até à próxima e bons filmes! E,
neste caso, boa música também!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
Histórias do Cinema