Bocas do Galinheiro
Importa a todos
O racismo é uma espinha cravada na sociedade norte
americana muito antes do assassinato de George Floyd, asfixiado
pelo joelho de um polícia branco em Minneapolis, neste ano de 2020.
Centenas de negros antes dele tiveram o mesmo destino. Um destino
que se vem escrevendo de forma dolorosa, desde a abolição da
escravatura em 1865, fim da Guerra Civil americana que opôs o
Norte, abolicionista, e os sulistas que defendiam a manutenção da
escravatura, única forma de manterem o sistema de plantation,
alimentado por milhares de escravos negros. Relutantes à igualdade
entre brancos e negros, começaram a ser promulgadas nos antigos
estados confederados, as chamadas leis "Jim Crow", que mais não
eram que um sistema legal de segregação racial que vigorou
oficialmente até 1964, ano da aprovação Lei dos Direitos Civis e,
no ano seguinte da Lei dos Direitos ao Voto, à americana,
entenda-se, que estabeleceram a igualdade racial nos Estados Unidos
no papel, pois a realidade não é essa. Se milhares de negros
morreram às mãos de supremacistas brancos, pelo simples facto de
existirem, era o tempo dos linchamentos, da "Strange Fruit", como
cantou Bilie Holiday, outros, de que Martin Luther King é exemplo
máximo, foram eliminados por lutarem pela igualdade.
Estas contradições, num país que
se empanturra dando loas à sua tradição democrática, não escaparam
ao cinema. Muitos são os filmes de abordaram o tema do racismo,
como não poderia deixar de o fazer, tão flagrante é a sua
existência e aberrante a sua manutenção.
Marcante, pela personagem de
Atticus Finch, um advogado que aceita defender um negro acusado de
ter violado uma mulher branca, o que lhe vai trazer muitos
dissabores, inclusive ameaças graves aos seus dois filhos,
unicamente porque pretende que se faça justiça numa pequena cidade
do sul, segregada e intolerante, em que a condenação, apesar da
evidente inocência do homem, estava feita sem que houvesse qualquer
prova, "Na Sombra e no Silêncio" (1962), realizado por Robert
Mulligan. Baseado no romance "To Kill a Mockingbird", de Harper
Lee, durante décadas a única obra da autora, assente numa soberba
interpretação de Gregory Peck, é uma denúncia do racismo e da
intolerância, bem como da leveza com que se condena alguém só pela
cor da pele, paradigma que não mudou apesar de os Estados Unidos já
não serem legalmente um país segregado. Por outro lado, Alan Parker
leva-nos ao Mississsipi segregado dos anos 60 em "Mississipi em
Chamas" (1988), sobre a investigação do FBI ao desaparecimento de
três activistas dos direitos humanos, dois deles brancos, como tudo
indica assassinados pelo Ku Klux Klan, e os entraves que as forças
locais colocam à investigação. Vale a experiência de Gene Hackman,
conhecedor da região, para se insinuar na comunidade,
principalmente junto da mulher de um cabecilha do clã, outra grande
interpretação de Frances McDorment, para levarem a bom porto o seu
objectivo.
Porém as cicatrizes mantêm-se
vivas, daí que filmes como "Green Book - Um Guia para a Vida"
(2018), de Peter Farrely, que narra uma tourné de Don Shirley, um
pianista negro, e do seu motorista branco, pelo sul dos Estados
Unidos, e a descriminação de que o artista era alvo, e "Elementos
Secretos"(Hidden Figures, 2016), de Theodore Melfi, sobre Dorothy
Vaughan, Mary Jackson, and Katherine Gobels Johnson, três
brilhantes matemáticas a trabalharem na "sombra" para a NASA,
quando os seus cálculos eram fulcrais na corrida com a URSS para
colocarem um homem no espaço, nos lembrem a humilhação que grandes
músicos, académicos e outros vultos da cultura norteamericana
sofreram na pela apenas pela cor.
Mas outros há que inspirados nos
protagonistas das lutas pelos direitos cívicos evocam nomes como
Martin Luther King em "Selma: a Marcha da Liberdade" (2014), de Ava
DuVernay (autora do documentário '13ª Emenda', sobre o
encarceramento em massa nos EU e a exagerada percentagem de negros
presos, ou seja, mais um reflexo da discriminação racial), que
recorda a marcha liderada por Martin Luther King na qual milhares
de pessoas fazem o percurso desde a cidade de Selma até Montgomery,
no Alabama, em 1965, durante a campanha para a igualdade de
direitos ao voto e que levou à aprovação da Lei dos Direitos ao
Voto pelo Presidente Lyndon B. Johnson, ou "Malcom X", de Spike
Lee, sobre o controverso líder convertido ao islamismo, de seu nome
Malcom Little, que mudou para Al Hajj Malik Al-Shabazz, fundador da
Organização para a Unidade Afro-Americana, assassinado em 1965, ou
mesmo em figuras cuja grandeza se pretendia diminuída pelo facto de
serem de cor. A título de exemplo filmes como "Ray", de Taylor
Hackfor ou "Miles Ahead", de Don Cheadle, focando a vida e obra de
Ray Charles e Miles Davis, dois nomes incontornáveis do que de
melhor se fez na música, mas como pessoas tratados como seres
inferiores. Inadmissível em qualquer tempo.
Uma longa lista de "Amistad"
(1997), de Steven Spielberg, sobre o tráfico negreiro a "Adivinha
Quem Vem Jantar", de Stanley Cramer (1967), abordando o tema do
preconceito à volta das uniões inter-raciais, ou, no outro lado da
moeda, os recentemente proscritos por enaltecerem a escravatura,
como são "O Nascimento de Uma Nação", de David W. Griffith, da era
do mudo, 1915, profundamente racista, inegável, faz a apologia da
KKK, evidente, mas como disse Sergei Eisenstein sobre o
realizador," criou tudo, devo-lhe tudo" e "E Tudo o Vento Levou"
(1939), de Victor Fleming, que também não disfarça o seu carácter
"sulista", enaltecedor de uma aristocracia cimentada na exploração
da mão de obra escrava. Mas são, dois grandes filmes. Fundador, o
de Griffith. Majestoso o de Fleming.
Aprendemos com todos. Saibamos,
isso sim, moldar melhor o futuro. Porque todas as vidas
contam.
Até à próxima e bons
filmes!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
João Luís Rosa