Entrevista
Simone de Oliveira: A crise só agora vai começar
Simone de Oliveira não
esconde a sua indignação pela escolha dos Homens da Luta para
representarem Portugal no Festival da Eurovisão e lamenta que os
cantores e os compositores mais categorizados se tenham demitido de
participar num evento que perdeu o prestígio granjeado ao longo de
décadas. A voz do mítico tema «Desfolhada», vencedora do certame em
1969, acredita que os portugueses, a avaliar pelos que foram de
férias na Páscoa, pelo parque automóvel de luxo e pelas dívidas
acumuladas em cartões de crédito, ainda não interiorizaram o
endurecimento das dificuldades no seu dia-a-dia.
Completa 53 anos de uma carreira
multifacetada, no teatro, na canção, no cinema e, mais
recentemente, nas telenovelas. Em qual destes palcos se sente "como
peixe na água"?
Como disse, sou
multifacetada. Gosto de fazer tudo o melhor que posso e sei. E,
acima de tudo, com muita paixão. A vida deu-me uma «enxada»
principal que foi cantar, até ao dia em que perdi a voz, em 1969.
Durante algum tempo procurei alternativas, outras «enxadinhas»,
como conversar, escrever, representar, etc.
Ficará para sempre associada à
«Desfolhada». Consegue explicar o sucesso da canção tantos anos
depois?
Serei eternamente a cantora
da «Desfolhada». Mesmo depois de já terem passado 42 anos é a minha
imagem de marca. Muitos se esquecem que quando ganhei esse festival
da canção já tinha 12 anos de carreira. A «Desfolhada» ficou para
sempre por ser um marco, uma revolta e por estar associada aos
movimentos políticos do Maio de 68. Ainda hoje os putos cantam a
«Desfolhada» porque as mães e as avós cantavam, ficou a frase do
«quem faz um filho, fá-lo por gosto». Naquela altura não se dizia
isto, era quase subversivo, até tive um polícia à perna para me
prender, mas o Ary dos Santos e o Nuno Nazareth Fernandes tiveram a
coragem de fazer a letra para a minha voz. Agradeço-lhes por isso.
Mas depois disso a minha carreira prosseguiu, gravei bastante e,
provavelmente pouca gente saiba, fiz muito teatro de revista -
trabalhei em todos os teatros de Lisboa.
Teve
três momentos especialmente difíceis na sua vida, aos 19 anos uma
depressão, perdeu a voz em 1969 e o cancro de mama, em 1992. É essa
sua vontade de viver e de ultrapassar as adversidades marcas da
Simone de Oliveira que os portugueses conhecem?
Acredito que sim. Foram todas
situações dos diabos, mas ao mesmo tempo recordo que tive uma vida
cheia, muito preenchida. Na primeira, aos 19 anos, procurei
libertar-me de uma depressão (como eu costumo dizer por graça, não
havia terapias de grupo, nem o "Prozac", nem o "Xanax")
refugiando-me no mundo das canções e da representação, eu que nunca
tinha sonhado seguir este rumo. Matriculei-me no Centro de
Preparação de Artistas da Emissora Nacional e ao fim de três meses
estava a cantar na rádio, nos programas do Motta Pereira. Passei
para a televisão, onde fiz tudo o que havia para fazer em diversos
programas. Participei nos festivais da Figueira da Foz onde ocupei
todos os lugares do pódio. Depois ganho o festival da canção em
1965 com o «Sol de inverno» e em 1969 com a «Desfolhada». Pelo meio
fiz muito teatro de revista. Era um prazer representar, os teatros
estavam sempre cheios. Depois da «Desfolhada» perdi a voz, por
excesso de trabalho e por voz mal colocada. Voltei a cantar depois
com um tom mais grave, pois perdi os agudos. Hoje, até agradeço ter
perdido a voz, porque tive oportunidade de cantar outro tipo de
músicas, pois caso contrário tinha eternamente ficado como a
«menina dos festivais». Virei jornalista, apresentei o certamente
de «miss» Portugal, fui locutora de continuidade, fiz revista e
comédia. Como se costuma dizer, virei os pés para a
cabeça.
Em
1998 revela que teve um cancro de mama. Uma doença na altura pouco
conhecida do grande público. Sente que foi a bandeira de uma luta
pela prevenção que agora, por via do aumento do número de casos,
está mais generalizada?
O público apenas soube 6 anos
depois num programa do Herman José."Só" fiz radioterapia. Mas a
melhor atitude, para começar, foi aceitar, sem raiva. Não estou a
dizer que não tive medo e que não chorei, mas à partida, aceitei.
Fiz mastectomia total de um peito, tinha 50 anos. Oito dias depois
da operação estava na televisão a fazer o «Piano Bar». Tirando uns
amigos mais próximos, ninguém soube. Tenho sido a bandeira e a cara
desta luta e de vez em quando vou a título privado a hospitais
falar com pessoas que se debatem com o mesmo problema. Há quatro
anos, 21 anos depois e num exame de rotina, tive uma reincidência
que me apanhou o outro peito. Foi outro abalo. Voltei à
radioterapia e ao mesmo tempo estava na novela «Tu e Eu». Ninguém
soube. Mas as adversidades não se ficam por aqui. Há 7 anos
fiz uma prótese total da anca, mas também ninguém soube. Felizmente
a minha força de viver tem-me dado ânimo para superar as
adversidades. Considero-me uma mulher sinceramente feliz. A
família, nomeadamente os filhos e os netos maravilhosos que tenho,
são um apoio fantástico. Como figura pública que sou, muito falada
e muito comentada, aproveito para dizer que não concordo que se
tirem fotografias com familiares para jornais ou revistas. Abri uma
excepção quando fiz 50 anos de carreira e com o devido
consentimento dos meus mais chegados.
Mudando de assunto, tem expressado a sua crítica
pelos moldes em que têm decorrido os festivais da canção, o
nacional e o da Eurovisão. O que é que a
indigna?
Tudo. Para começar não
têm orquestra. As canções que concorrem são de segunda ou terceira
categoria. O que eu pergunto é o seguinte: Onde estão os músicos e
os poetas do meu país? Há tantos novos valores a despontar, mas
falta-lhes coragem para concorrer. Querem canções do nível da
«Tourada» ou da «Desfolhada», peçam ao Paulo de Carvalho, ao
Fernando Tordo ou ao Carlos Alberto Moniz. Confesso que nós, os
mais velhos, temos um bocado de responsabilidade, porque
demitimo-nos do festival. Ninguém quer ficar em último lugar e foi
um certame que perdeu todo o prestígio que tinha. Houve uma fase de
música mais popular, mas este ano voltámos ao pior do que podia
existir. O que é estranho é que durante o ano ouvimos músicas com
valor do João Pedro Pais, do Pedro Abrunhosa, da Amélia Muge, etc.
Basicamente, nesta altura, o festival é um grande espectáculo de
televisão.
O
facto de o festival da Eurovisão ter sido aberto a países não
apenas europeus, quase do Atlântico aos Urais, descaracterizou o
certame?
Confesso que isso não me
choca. O que me importa é se as canções são bem ou mal
interpretadas. A canção dos Homens da Luta é de cariz
político/popular e está apropriada para uma manifestação na Avenida
da Liberdade. O problema é que aquilo não é uma canção. É de muito
mau gosto e, pior do que isso, apresentámos na Alemanha algo que
não nos dignifica a nível de povo. Se os Homens da Luta ficam bem
classificados, dá-me um treco…(NDR: A entrevista foi realizada
antes da semi-final que eliminou os Homens da Luta).
O que
é que pensa da política cultural do nosso país?
Vou ser muito directa e
dar-lhe dois exemplo do que eu penso: há três anos e meio eu fiz 50
anos de carreira. A televisão do Estado, a RTP, que comprou os
direitos do espectáculo para transmissão posteriormente, só pagou
uma semana depois, quando todos os músicos e actores envolvidos
receberam o que estava contratado no próprio dia, à excepção da
Dulce Pontes que não aceitou receber.
Mas há mais: três semanas
antes do espectáculo foram enviados os convites de carácter
institucional, como manda o protocolo. No dia seguinte ao
espectáculo, estávamos a desmontar os adereços do palco, recebo um
telefonema da secretária do ministro da Cultura de então (NDR:
Pinto Ribeiro), a informar-me que ele não ia poder estar presente
por razões de agenda, quando o espectáculo já tinha acontecido na
véspera…É elucidativo e responde à sua pergunta. Eu faço parte de
uma cultura popular deste país que não é apoiada em coisa nenhuma.
Os artistas não têm sindicato, não têm contrato de trabalho,
trabalhámos a vida toda a recibos verdes. Nós próprios é que
descontamos para a Segurança Social. No fundo, também somos os
precários à rasca. O grande problema é que os artistas não são
capaz de se unir. É verdade que também ganhamos mais do que
outras profissões, mas no fundo temos uma estabilidade mínima em
termos de protecção social. Eu pago anualmente um seguro de saúde
que é uma fortuna para ter uma certa segurança, caso contrário ia
para a porta dos hospitais às 6 da manhã levantar uma senha como o
comum dos portugueses, que é uma coisa que continuo a não
perceber.
A
falta de solidariedade da classe explica tudo?
É fundamental. Repare que nos
programas da manhã das televisões, todos recebem, menos os cantores
que lá vão e que são as únicas pessoas que fazem com que o programa
aconteça. Infelizmente, ninguém se mobiliza a sério e diz «ninguém
vai!», até porque sempre há os que pedem para ir e até pagam para
lá estar. Contra isto não há nada a fazer. Eu vou mais longe: Em
Espanha, todas as entrevistas que se dão às revistas cor-de-rosa,
com grandes produções fotográficas, são todas pagas. Aqui, fazem o
que querem e quem dá a cara não recebe um cêntimo.
Apoiar a cultura não dá votos?
Há sempre dinheiro para
comprar jogadores de futebol…Mas se alguém pedir 100 ou 200 mil
euros para levar à cena uma peça de teatro dizem que está doido. O
problema é que o teatro não tem retorno imediato, ao contrário da
aposta nos Mourinhos e nos Cristianos Ronaldos, como fazem algumas
das nossas entidades bancárias em publicidade. Onde estão os tais
mecenas? Boné na mão e «por favor, empreste-me dinheiro para fazer
um disco». Agora até os convites das câmaras municipais vamos
perder, devido aos constrangimentos económicos do poder local. Mas
a realidade é esta: o governo que ganhar as eleições tem de
governar cumprindo as regras impostas pela "troika". Os portugueses
sempre gostaram de quem mande, mas falta-nos a mística que nos seja
transmitida por um líder, seja homem ou mulher. Alguém que nos leve
a acreditar que vai valer a pena fazer estes gigantescos
sacrifícios. Precisávamos que isso acontecesse para terminarmos com
a barbaridade de despesas que foram feitas. Por parte do Estado e
de particulares. Acabava já com as fundações e os institutos todos.
No outro dia vi um senhor na televisão, com três filhos, que
ganhava 5 mil euros por mês e tinha uma dívida acumulada em cartões
de crédito de 400 mil euros. Como é que isto é possível? Chocou-me,
eu que só uso cartão de débito, os cartões de crédito que o banco
me atribui estão nas mãos de uma amiga minha. Mas nós somos isto,
se o vizinho tem…Nas recentes férias da Páscoa o Algarve estava
cheio. Expliquem-me! Eu que não vivo mal, a única vez que fiz
férias do meu bolso fui até Natal, no Brasil, 8 dias.
Existe um facilitismo desregrado que
está enraizado no modo de vida nacional e que ninguém quer
abdicar?
Especialmente nos últimos 10
anos os portugueses viveram à larga, muito à custa do acumular de
dívidas nos cartões de crédito. Quando houve "vacas gordas" tudo
foi permitido, quero ver agora como se vai fazer com "vacas
esqueléticas". Os estádios de futebol para os grandes jogos estão
repletos e os espectáculos dos principais artistas que tocam em
Lisboa esgotam com semanas de antecedência. O parque automóvel de
luxo é outra das coisas que me faz confusão. Eu que adoro
automóveis e tenho um carro com 8 anos, que está pago, agora mandei
pintá-lo e colocar dois pneus. Neste momento estou a trabalhar 8
meses numa novela na TVI e depois?
O
Estado não é o melhor modelo de virtudes, tendo promovido várias
obras sumptuárias de regime. O exemplo que vem de cima não é o mais
moralizador?
Também não percebo. Parece
que acabou o TGV, mas fizemos 12 estádios de futebol, obras que
critiquei em devido tempo, estando alguns deles ao abandono. Outra
ponte, para quê? Outra auto-estrada? Já temos vias boas e
suficientes. O dinheiro que a Região Autónoma da Madeira deve é de
deitar as mãos à cabeça. São demasiados disparates.
No
outro dia ouvi alguém dizer que somos um povo que tem um desempenho
excepcional em tarefas complexas e exigentes, mas no dia-a-dia
arrastamos com a barriga. Concorda?
Deve estar no nosso ADN. Pela
frente, somos um povo de brandos costumes, católicos, apostólicos e
romanos, por trás somos mentirosos e fazemos tudo à socapa. Vícios
privados, virtudes públicas, é assim a nossa «cara». O português é
um povo que eu amo, capaz de dar a camisa em situações de
emergência, mas no dia-a-dia deixa muito a desejar.
Aqui vai mais um exemplo: A minha amiga Luísa-Castel Branco tem um
restaurante e precisava de uma copeira. Concorreram 60 ou 70
pessoas, ficou uma delas, mas resistiu apenas 1(!!!) dia. Estava
muito cansada e tinha muitos pratos para lavar, justificou a
criatura. É verdade que não ganhava mais do que 500 euros, mas têm
direito a jantar. É triste ouvir isto de um país que teve uma
emigração brilhante que trabalhou lá fora excepcionalmente bem. Eu
digo aos meus netos para irem daqui para fora trabalhar. Pirem-se!
Temos tão bons valores, é pena.
Voltando ao que está a fazer neste momento na TVI, a novela
«Remédio Santo». A aposta do canal de Queluz nas telenovelas deu
emprego a muitos actores e fidelizou as audiências. É uma boa
notícia para quem vive da representação…
Tudo o
que seja ficção nacional de qualidade é sempre bem-vindo. Acho o
«Conta-me Como Foi», exibido na RTP, um dos melhores projectos que
vi nos últimos tempos. Quanto à TVI, sei que vai passar a produzir
duas em vez de três novelas, mas é óptimo que os bons projectos
portugueses existam e que empreguem actores nacionais, etc. A vida
não é só feita de tristezas, há também alegrias para partilhar. Até
porque acho que os portugueses deixaram de olhar para o lado e uns
para os outros. Passámos a ter amigos no Facebook, que é uma coisa
que não terei nunca, porque gosto de lhes olhar nos olhos e
tocar-lhes em carne e osso. Aos amigos e à família, obviamente,
ainda para mais tenho uma filha e netos a viverem no estrangeiro.
Tive a sorte de todos eles terem tido um desempenho irrepreensível
na escola. Nunca perderam um ano, nem sequer precisaram de um
explicador. No meio das minhas intempéries tenho sido uma mulher
com muita sorte.
Como
responde aos que dizem que a sociedade actual é fruto de uma
política educativa falhada?
Respondo com algo tão básico,
todos se esqueceram de dizer «se faz favor» e «muito obrigada».
Quando saio à noite chamo um táxi e sempre que entro no veiculo
faça questão de dizer «boa noite» e «com licença», simplesmente
porque estou a entrar na «casa» do motorista. E não sei fazer de
outra forma. Ensinaram-me assim. Perderam-se coisas tão básicas
como as boas maneiras. Os lugares à mesa das refeições, não ver
televisão ao jantar, dizer boa noite quando alguém se vai deitar.
Os valores da família degradaram-se. Trata-se de um esteio que está
em crise e que deve ser reavivado, seja ou não monoparental. Há ali
uma base. Claro está que a indisciplina dentro de casa transmite-se
para a sala de aula.