Bocas do Galinheiro
Fernando Lopes, cronista maior do nosso cinema
É um lugar dizer
que o cinema português, ou melhor, o cinema, ficaram mais pobres
com a morte recente de Fernando Lopes. Mas, essa é a verdade e não
há volta a dar. Pioneiro do Cinema Novo, movimento que deu à volta
à cinematografia nacional nos anos 60 e 70 do século passado e onde
pontificaram nomes como Paulo Rocha (Verdes Anos,1962 e Mudar de
Vida, 1966), Fonseca e Costa (O Recado,1971) Alberto Seixas Santos
(Brandos Costumes,1973/74), Cunha Teles (O Cerco, 1969) ou
António-Pedro de Vasconcelos (Perdido por Cem…,1972), fundador do
Centro Português de Cinema, de que é o primeiro presidente da
direcção, abre caminho para o reconhecimento pela Fundação
Gulbenkian do cinema como uma arte com a mesma dignidade das
outras, sendo que o apoio da fundação está intimamente ligado ao
avanço do Cinema Novo. Forjado, como muitos da sua geração no
movimento cineclubista, como reconhecia, foi sócio do Cineclube
Imagem, encontrou trabalho na RTP, sendo que os tempos de bolseiro
do Fundo de Cinema Nacional, na London School of Film Technic, no
Reino Unido, onde obteve o diploma de realização de cinema, e
estagiado na BBC, a televisão pública britânica, terão sido
fundamentais para a sua importância no novo rumo do cinema
português. O seu papel na divulgação do cinema e não só, revela-se
também como director da revista Cinéfilo, nos anos 1973-1974, como
o qualificou António-Pedro Vasconcelos, chefe de redacção " como
absolutamente excepcional. A revista teve um papel singular no
panorama das artes, do espetáculo e da cultura em Portugal, o que
se deve ao facto do Fernando Lopes ser esse homem capaz de
construir pontes, de dialogar, de respeitar as opiniões diferentes
da sua".
Nascido a 28 de Dezembro de 1935 em
Várzea dos Amarelos, concelho de Alvaiázere, Fernando Lopes vem
para Lisboa aos quatro anos, trazido pela mãe, fugida a um
casamento que já não queria. Depois de uns anos a viver em Vila
Nova de Ourém com uns tios, cuja tia o começou a levar ao cinema,
volta a Lisboa aos 12 anos, cidade que adoptou e o adoptou até à
sua abalada recente. Uma Lisboa que soube retratar, a preto e
branco (uma espantosa fotografia de Augusto Cabrita), com tudo o
que isso podia significar naqueles cinzentos anos 60, e transmitir
o seu pulsar na sua primeira longa-metragem, "Belarmino", de 1964.
Pioneiro com esse filme do cinema-verdade, a vida e o destino do
pugilista Belarmino Fragoso, numa viagem a esse submundo que era o
pugilismo nos anos sessenta, através da(s) entrevista(s) de
Baptista-Bastos, sincopada(s) com o jazz da banda sonora de Manuel
Jorge Veloso e ao toque do bolero Sabor a Mi, que nos vai
acompanhar noutros filmes de Fernando Lopes.
Com um sentido raro da narração
romanesca, as suas adaptações de grandes nomes das letras
portuguesas é marcante. Primeiro com "Uma Abelha na Chuva", de
1972, uma nova incursão no Portugal de 60, provinciano e recalcado,
tal como saiu da pena de Carlos Oliveira, seu amigo, um dos maiores
poetas e romancistas da nossa língua. Jorge Leitão Ramos no seu
dicionário, é claro: "entre a chuva, a raiva, o cansaço e o desejo,
Fernando Lopes ergueu, com este filme, uma das mais exactas e
dolorosas descidas ao rosto 'farto' do país", onde se revela outra
das facetas do cineasta, a facilidade com que lida com os actores e
lhes tira tudo o que podem dar, demonstrado à evidência nas grandes
interpretações de Laura Soveral e João Guedes. Depois com "O
Delfim", de 2002, adaptado por Vasco Pulido Valente da obra
homónima de outro amigo de longa data, José Cardoso Pires, com
Alexandra Lencastre e Rogério Samora. De novo o regresso ao
Portugal do salazarismo e dos muitos delfins que o povoavam, mas
que continuam neste marialvismo resuscitado, como referia o
realizador, no tal fantasma lusitano que nos foi deixado pelo
Salazar no sentido da "Caras" e outras revistas do género. Uma
palavra para a soberba fotografia de Eduardo Serra, as imagens da
Lagoa são bem o testemunho de que estamos perante um dos grandes
directores de fotografia da actualidade, de que as duas nomeações
para o Oscar isso provam.
Em "98 Octanas", de 2006, um road
movie pelo interior de Portugal, ou, no dizer de Fernando Lopes,
uma via-sacra, uma road trip que resumiu como "um tipo anda a fugir
encontra uma tipa que anda a fugir e dá-lhe boleia", a sua faceta
de cinéfilo veio ao de cima numa assumida homenagem a Nicholas Ray
e a "Os Fugitivos da Noite (1948), tem em Rogério Samora e Carla
Chambel, em dois papéis fortíssimos, do melhor que já se fez no
cinema português, o suporte ideal para a cumplicidade do filme com
o espectador, engalanado pela música do malogrado Bernardo
Sassetti. Os mais recentes, "Sorrisos do Destino", 2009, e "Câmara
Lenta", estreado em Março deste ano, foram a continuidade da obra
de um realizador de fitas fundamentais para conhecermos Portugal.
Um cronista maior do nosso pequeno mundo. Pelo meio filmes como
"Nós Por Cá Todos Bem", de 1976, um regresso às origens, ao campo,
sem esquecer a cidade, através das cartas de uma criada de servir,
tal como a mãe, ou ela mesma, a camponesa que aparece no filme,
"Crónica dos Bons Malandros, de 1984, baseado no livro de Mário
Zambujal, "Matar Saudades", de 1988, outro regresso à terra, este
mais trágico e passional, com Rogério Samora e Teresa Madruga, e
ainda Eunice Muñoz e, outra adaptação romanesca, esta de 1993, com
"O Fio do Horizonte", de Antonio Tabucchi, desaparecido também
recentemente, cuja obra reflete uma confessada influência de Pessoa
evidente neste filme e na personagem de Claude Brasseur.
Uma filmografia curta, mas intensa,
diria mesmo imensa, de um cineasta a quem o cinema muito fica a
dever. E o País. Que soube ver como nenhum.
Até à próxima e bons filmes!