Memórias ficcionadas
Praxes, para que vos quero?
«as praxes tolas do
costume.»
(A Memória das Palavras,
José Gomes
Ferreira)
Aqui tudo chega atrasado. Até as
revoluções. O Maio de 68 só se fez sentir em Portugal um ano
depois. A Crise de 69 não teve, na Academia, o impacto do epicentro
europeu… mas fez mossa; as ondas de choque, embora enfraquecidas na
sua magnitude, acabaram por abalar a "educação nacional". Desde aí,
nada voltou a ser como dantes. Nem a repressão.
- Fui chamado! Vou malhar com os
costados a Mafra - anunciava, abatido, Antonino aos seus amigos e
colegas de Direcção.
- Eh pá, e logo na incorporação de
Janeiro, os gajos nem te deixaram acabar o curso!
- Quase de certeza que me mandam
para "atirador".
- Pois, é o destino dos associativos
- sentenciava Faustus, procurando confortá-lo, ao relembrar a
prática do "castigo militar" para os chamados «estudantes
subversivos».
- Só espero não ter guia de marcha
para os Comandos ou para os Rangers…
Aquela juventude (a masculina) vivia
nesse permanente trauma de "ser chamado para a tropa". Por isso
mesmo, pôr fim à guerra colonial e combater a ditadura era então
prioritário. Daí que os jovens fossem mais "do contra", não se
deixando levar pelas "conversas de família" de Marcello nem pela
"abertura" tecnocrática e, pretensamente, arejada de Veiga Simão .
Pelo contrário, empenhavam-se com entusiasmo nas lides
oposicionistas. Muitos deles, levavam-nas bem mais a sério que aos
estudos, apesar dos avisos familiares, temendo sempre o pior: a
tropa ou a prisão. Os meetings na cidade universitária (em
Ciências, Técnico ou Económicas) sucediam-se, culminando, muitas
vezes, em manifestação, avenida abaixo, que durava até os nívea da
polícia de choque aparecerem. O clima não era, portanto, propício a
festas, praxes ou queima das fitas. É verdade que todo esse
folclore académico se centrava em Coimbra e, até aí, alvo de forte
contestação. Arcílio, que entrou na Universidade Técnica de Lisboa
no dealbar da década de 70, nunca viu um colega trajado, não sofreu
qualquer praxe ou festejou o final do curso com bênção de pastas ou
queima do que quer que fosse.
As Associações de Estudantes, nos
nossos dias, perderam o sentido político da sua acção. Efeito
perverso da democracia normalizada? Ficaram acantonadas no
corporativismo da sua "escolinha". Tornaram-se, antes de mais,
organizações promotoras de "eventos" como a «Semana Académica» -
onde jorra cerveja e música pimba - ou enquadram as praxes e os
"tribunais" da dita. O financiamento? comem à mesa do orçamento de
estado.
Todos os anos lectivos, a imprensa
noticia casos graves de humilhação ou violência extrema no decurso
das ritualizadas praxes. O então ministro Mariano Gago, na
sequência de um incidente trágico, exigiu mais responsabilidade das
autoridades académicas no controlo dessas tontas práticas
estudantis, que renasceram pujantes como Fénix das cinzas, no
regime democrático. As direcções das escolas proibiram-nas no
interior dos edifícios escolares mas tudo continua na mesma
tropelia, balbúrdia e histerismo nas zonas adjacentes; o que torna
quase impossível o funcionamento das aulas. Os "caloiros", medrosos
e cumpridores obedientes das directrizes praxistas, não se atrevem
a trocá-las pelas aulas. Não têm outro remédio senão juntar-se ao
"rebanho" e acatar as ordens despóticas do dux veteranorum (!?). E
por ali se vão entretendo, todo o santo dia, em intermináveis
comboios, jogos e folganças de onde saem imundos - rotos, cabelo
enfarinhado, caras pintadas - e de penico de plástico na mão,
entoando cantorias de alto calibre "erótico": «Ai que calor, ai que
calor /Que boa sou, que mamas tenho /Eu quero um homem que me leve
para a cama /Que me diga que me ama /E que me tire este calor.»
Aqui, a igualdade de género assume-se na brejeirice e no palavrão,
até há pouco, apanágio de machos. Num estilo misto de capataz e
mestre de cerimónias, os ditos "veteranos" (quase exclusivamente do
2º ano), desejosos da reparação das
afrontas sofridas no ano anterior, pavoneiam-se fardados de
"pinguins", com a capa preta ao ombro, mostrando orgulhosos os
emblemas, pins e demais quinquilharia. Um verdadeiro "espírito
académico"!
À noite, descem à cidade para a alta
curtição do «rally das tascas». Então, a hierarquia académica
esbate-se nas séries infindáveis de copos «vai acima, vai abaixo,
vai ao meio, bota abaixo», entre canções pindéricas do repertório
festivaleiro da Tuna. Neste noctívago mundo, que deixou de ser só
de homens, a sobremodernidade levou as raparigas para os trilhos
partilhados do álcool, do fumo,…
Madrugada dentro, um grupo abandona
a urgência do hospital e, aos tropeções, recolhe à residência de
estudantes.
- O Ruben e a Vanessa enfrascaram-se
bué! - diz um deles, de voz entaramelada, a tresandar a
solidariedades etílicas.
A ressaca será terrível!