Bocas do Galinheiro
Peter O’toole é Lawrence da Arábia
A reposição da obra-prima de David Lean, "Lawrence da Arábia",
em cópia digital é um acontecimento que por si só dispensaria mais
comentários. Mas, rever (esperemos que em breve) em écran gigante
este clássico estreado há 50 anos, faz-nos recuar ao primeiro
visionamento do filme, em sala, claro, apesar das várias vezes que
já o vi em casa. Mas essas não contam. Ir ao cinema, é ir ao
cinema.
Do "Lourenço da Arábia", como
carinhosamente o tratávamos nesses tempos, recordo antes de tudo o
deserto. Esse deserto sem fim, o Nefud, atravessado teimosa, astuta
e temerariamente por T. E. Lawrence e os seus árabes, num golpe de
estratégia militar impar, que não só surpreendeu os seus, a começar
por Sherif Ali (Omar Sharif), bastante céptico perante a decisão do
inglês (basta lembrar o diálogo entre os dois antes da travessia,
em que Sherif dizia a Lawrence que até ao outro lado do deserto só
teriam a água que levavam e que os camelos não teriam nenhuma e,
acrescentou, se os camelos morrerem, nós morreremos também, e eles
vão começar a morrer daqui a vinte dias, ao que Lawrence replicou:
então não há tempo a perder, não é?) mas principalmente os turcos,
os alvos da revolta árabe e que esta haveria de derrotar. O Império
Turco-Otomano que se consolidara a partir do século XIII, vencido
pelas tribos armadas congregadas por Lawrence, durante a Primeira
Grande Guerra, acabaria por se desfazer em 1923. A união árabe, por
que tanto se bateu, é que não se concretizou. Os interesses dos
governos colonialistas, principalmente de Inglaterra e de França,
goraram o sonho do autor de "Os Sete Pilares da Sabedoria", livro
onde discorre sobre essa realidade que viveu. Um biopic, sobre um
personagem que até hoje continua por descortinar: escritor?
militar? aventureiro?, se calhar um pouco de todos, mas cuja morte
prematura num acidente de mota em Inglaterra em 1935 deixou
latente, mas que é ao mesmo tempo um extraordinário filme de acção
e uma página heróica sobre a luta pela libertação da Nação Árabe do
ocupante turco, mas também da queda do sonho da sua união, filmado
com mão de mestre num cenário que tudo permite e nada dá: o
deserto.
Mas ver "Lawrence da Arábia" é
também assistir à grandiosa interpretação de um dos actores maiores
da sua geração: Peter O'Toole. Praticamente desconhecido na Sétima
Arte até este filme, apesar de ser um dos grandes nomes do teatro
shakespeareano, formado na Royal Academy of Dramatic Arts de
Londres.
Nascido a 2 de Agosto de 1932, na
Irlanda, desde cedo viveu em Inglaterra. Actor de teatro, a sua
passagem pelo cinema era mínima até "Lawrence da Arábia":
"Kidnapped", de Robert Stevenson, "The Day They Robbed the Bank of
England", de John Guillermin e "The Savage Innocents", de Nicholas
Ray, todos de 1960, resumiam a sua filmografia até então. Depois do
épico de Lean tudo mudou, apesar de nunca se ter conseguido
libertar daquele personagem e da maldição dos Oscar: em oito
nomeações, não levou nenhuma estatueta dourada. Em 2003 deram-lhe o
Oscar honorário. Enfim, uma fraca recompensa para um actor que nada
precisa de provar. Basta estar atento à suas representações no
cinema, no teatro a lista é igualmente extensa e soberba. Lord Jim"
(1965), de Richard Brooks, "A Bíblia", (1966), de John Huston, (um
grande amigo dos copos, era conhecidíssimo o gosto de O'Toole pela
bebida e as sequelas em termos de saúde, mas também as épicas
interpretações em palco, ébrio de cair, mas sem falhar uma fala que
fosse) "O Leão no Inverno" (1968), de Anthony Harvey, onde
interpreta o papel de Henry II, ao lado da grande amiga Katharine
Hepburn e de Anthony Hopkins, num dos seus primeiros filmes, ele
que veio a tornar-se o também grande actor que todos conhecemos,
"Adeus, Mr. Chips" (1969), de Herbert Ross, "O Fugitivo" (1980), de
Richard Rush, onde encarna um realizador tirânico e conseguiu mais
uma nomeação para as estatuetas douradas, "O Último Imperador"
(1987), de Bernardo Bertolucci, onde interpreta o muito british
tutor do Imperador Pu Yi, apeado pela revolução popular liderada
por Mao Tse Tung, ou "Vénus" (2006), um dos seus últimos papéis,
recriando exactamente um actor, ao lado de Leslie Phillips, filme
que lhe valeu a tal oitava nomeação para o Oscar, que como se sabe
também não arrecadou. Se ainda não o dissemos é altura de lembrar
que a primeira havia sido com "Lawrence da Arábia"!
Ao contrário de O'Toole, David Lean
fez o pleno ao vencer nas categorias de melhor realizador e a ver o
filme ser considerado o melhor, dois dos sete Oscar que arrebatou,
feito que já havia conseguido em 1957 com "A Ponte de Rio Kwai",
apesar de ter também conhecido o amargo sabor do desapontamento por
várias vezes, como com "Doutor Jivago", em 1965, quando viu "Música
no Coração" e Robert Wise levarem as estatuetas, ou mais
recentemente com "Passagem para a India", o seu último filme, de
1984, batido por Milos Forman e "Amadeus". Enfim, coisas dos Oscar,
que quer queiramos quer não, acabamos por comparar. De David Lean
recordamos ainda "Breve Encontro", de 1945, "Grandes Esperanças",
de 1946, adaptado de Charles Dickens, mas também "A Filha de Ryan"
(1970), em que o tema do adultério volta à filmografia do
realizador, um filme menos conseguido, e, diz-se a causa de tão
grande hiato até "Passagem para a India".
Até à próxima e bons filmes!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico