Editorial
Salvar a democracia e a escola pública
A democracia parlamentar e a "escola de
massas", que convergiu na escola pública, constituíram-se como dois
dos grandes mitos ideológicos forjados no seio das mais avançadas
sociedades industriais do século passado.
À primeira era conferida a missão
de criar uma sociedade fraterna, totalmente baseada na igualdade
dos cidadãos. À segunda foi pedido que também ela se
democratizasse, abrindo as suas portas a todas as crianças e jovens
que a quisessem frequentar.
São, ainda hoje, dois projectos de
uma generosidade indiscutível e que, apesar das fragilidades com
que muitas vezes se defrontam, não encontraram ainda melhor
alternativa, no respeito pela liberdade de escolha e no pleno
exercício da cidadania.
Porém, temos que admitir que a
democracia parlamentar não impediu que a riqueza se concentrasse em
cada vez menos mãos e que o fosso entre os mais ricos e os pobres
fosse cada vez maior. Como não conseguiu erradicar a maior das
chagas sociais que nos envergonha: a da exclusão social, que
engrossa a fileira dos que têm fome, dos que não têm abrigo, dos
que não têm direito à saúde e dos que viram negado o direito a um
trabalho.
E também temos que reconhecer que a
escola pública, ainda não conseguiu que a igualdade do acesso se
transformasse numa igualdade de sucesso; assim como tarda a que a
escolaridade seja por todos entendida como um valor indutor da
inclusão, da promoção social e da meritocracia.
O professor, que é simultaneamente
cidadão e educador, vê-se confrontado com esse duplo dilema: o de
ajudar a construir uma sociedade mais justa e o de erguer uma
escola gratificante para quantos nela trabalham e nela se revêem:
alunos, docentes, funcionários, pais e membros da comunidade
local.
Confrontados entre o desejo de
realizar cada vez mais e a pressão burocrático-administrativa e
desprezo dos governos, sentem frustrados e menorizados na sua
profissionalidade. Sentem-se assim, não por incapacidade, mas
porque são profissionais responsáveis e de dedicação para lá dos
limites do imaginável.
Mas sentem-se assim também porque
tardam em perceber que o seu desencanto é a medida resultante de
uma indirecta e subjectiva avaliação das políticas educativas e dos
responsáveis da educação que as protagonizaram.
Os professores são intelectuais
livres. É certo. Mas num aparelho de Estado centralizador, como o é
o nosso, também são chamados a serem dóceis funcionários executores
de medidas de política educativa, das quais por vezes discordam e
para as quais só episodicamente são chamados a opinar.
Daí resulta um estranho equívoco:
muitos docentes assumem como derrota profissional a falência desta
ou daquela medida de governo. Entendem que foram o problema,
quando, de facto, os normativos burocrático-administrativos não os
deixaram ir em busca da solução.
Se querem que os professores
assumam, em plenitude, toda a responsabilidade do que ocorre na
escola, então revela-se indispensável que eles a si chamem a gestão
integral dos destinos das instituições educativas. Não há
responsabilidade total sem completa autonomia. Não deve ser exigida
a prestação de contas a quem não foi autor dos objectivos a
contratualizar e da missão a cumprir.
Por isso, antes de se julgar e
avaliar os professores, antes de julgar e divulgar o ranking das
escolas, urge avaliar e classificar as medidas educativas que estes
e aquelas foram obrigados a protagonizar, muita das vezes contra
natura.
O Estado e as famílias demitem-se
todos os dias de objectivos educativos que só a eles deviam ser
remetidos e dos quais contratual e socialmente se
responsabilizaram.
Alguns jovens são levados a
acreditar que a escola é terra de ninguém. Onde a ética e a
deontologia fica à porta da sala de aula e onde todo o
individualismo exacerbado pode substituir o trabalho honesto e
colaborativo.
Muitos professores são apanhados em
curvas mais apertadas da sua profissão porque são induzidos a
julgar que foram formados para serem exclusivamente gestores de
conflitos numa arena que, em algumas escolas, resvala o limite do
bom senso e da decência.
O Estado e as famílias pedem à
Escola que os substituam. E apontam o dedo acusador quando a
máquina falha por excesso de carga profissional, emocional ou
administrativa.
Assim não! É que mais cedo do que a
razão aconselharia talvez haja muitos professores que já tenham
percebido que mais vale pronto recusar que falso prometer.