Humorista
Já chegámos ao Madeira
É um argumentista e ator anticrise.
Trabalho não falta ao humorista que escreveu para Herman José e
insuflou vida aos "bonecos" de Sócrates, Relvas e agora Jorge
Jesus. Eduardo Madeira na primeira pessoa, em estado de graça.
É um dos
atores da comédia teatral «Toc Toc», que está em exibição no Teatro
Tivoli, em Lisboa. Nela desfilam seis personagens acometidas por
fobias e um transtorno obsessivo compulsivo (TOC) distinto. Com o
País mergulhado numa crise, esta peça pode funcionar como uma
espécie de Portugal no divã?
Para ser sincero, nunca tinha visto
esta comédia por essa perspetiva que coloca. Mas não deixa de ser
interessante. Com efeito, o País está a viver um momento de algum
desequilíbrio e de alguma esquizofrenia. Admito que alguns destes
transtornos que são representados na peça se possam aplicar à forma
de atuar dos políticos que nos governam. Esquizofrenia política,
bem entendido. Basta ver o exemplo recente, em que o
Primeiro-Ministro anunciou cortes nas reformas e 48 horas depois
apareceu o ministro Paulo Portas a garantir que não ultrapassaria
esse limite. Então em que é que ficamos?
Esquizofrenia é sinónimo de fragmentação. A prática política é
fracionada e dificilmente inteligível aos olhos dos cidadãos?
Acho que sim. Este tipo de manobras
políticas, muitas vezes, só servem para confundir e para baralhar.
Os cidadãos ficam sem perceber o que é que se pretende com certas
políticas.
O humor em
tempos de crise pode ser terapêutico?
Sem dúvida. O humor e a boa
disposição podem servir de válvula de escape, em especial às
pessoas que estão a atravessar uma fase complicada e precisam de
descomprimir. Estou certo que muitos dos que se dirigem ao teatro
para ver esta peça o façam para descontrair e esquecer, durante
duas horas, os temas relacionados com as troikas, o governo,
etc.
Disse um
dia numa entrevista que «o público só percebe piadas de futebol e
do Goucha». Quer isso dizer que a escassa formação de boa parte da
população faz com que só perceba o humor fácil e menos
elaborado?
Deixe-me só ressalvar isto: Quando
me refiro ao Goucha, não são as piadas que o Manuel Luís Goucha
diz, mas as piadas que fazem em relação a ele. Já são tantas, que
perdem a graça. Sobre a sua pergunta em concreto, acho que o
português tem mais facilidade em perceber a piada mais direta e
mais básica, porque também não tem um humor tão elaborado como
outros povos. Mas os portugueses gostam muito de rir e têm sentido
de humor. Curiosamente não têm é sentido de humor sobre eles
próprios.
Quer dar um
exemplo concreto?
O português gosta de ouvir falar mal do
português, mas só quando não faz parte do grupo. Quando percebe que
também está a ser gozado, já não acha tanta piada…
Não sabemos
rir da nossa própria desgraça?
O português não é muito de se rir
de si próprio. Os ingleses, por exemplo, têm um sentido do ridículo
absolutamente incrível. Fazem piadas sobre as coisas mais sagradas
e com um espírito que só eles têm.
Há uma
herança do passado que nos faz ter receio de passar o risco?
Penso que sim. Há algo que vem de
muito longe que é dizer «cuidado, com isso não se brinca».
Como ator e
argumentista que é, o bom senso é o único critério para que o humor
que se escreve ou representa não ultrapasse a linha do
razoável?
Eu defendo que se pode brincar com
tudo, agora há o limite do bom gosto e do bom senso que deve ser
observado. Existe uma zona em que se percebe que é ofensa, não é
humor inteligente, é só gozo, puxar pela parte mais escatologia,
pelo vernáculo, etc. Aliás, a personagem que eu encarno no «Toc
Toc», diz muitas asneiras, por causa do Síndrome de Tourette de que
a pessoa padece, mas é algo tem um enquadramento lógico, não é algo
que ostensivo. Agora usar de forma gratuita uma «arma» apenas para
despoletar o riso acho criticável. Creio que se houvesse uma
Convenção de Genebra para o humor essa seria uma arma ilegal e que
não se podia utilizar (risos).
Mas admite
que há colegas seus que cometem alguns excessos?
Por vezes constatamos que há os que
enveredam pela lógica do «vale tudo». Também é preciso compreender
que surgiram muitos humoristas. A concorrência é muita e admito que
alguns achem que esse é o caminho mais fácil para o sucesso.
Contudo, não me revejo nisso. Prefiro ter mais trabalho e
construir, passo a passo, uma carreira mais sólida.
Em que
domínios se sente mais confortável: teatro, stand up comedy,
televisão ou argumentista?
Eu tenho procurado provar a mim
mesmo que sou bom em todas as áreas do humor. Na escrita, a fazer
canções, ator de teatro e televisão, como em stand up comedian,
etc. O feed back do público e da critica tem-me feito perceber que
sou multifacetado dentro da área que escolhi para minha
atividade.
Começou a
colaborar com as Produções Fictícias em 1997. O seu fundador, Nuno
Artur da Silva, disse em entrevista ao nosso jornal que é a
«travessa da fábrica das piadas». Tem a noção que entrou para uma
fábrica do humor em Portugal?
Tive a felicidade e o orgulho de
coincidir com uma série de cabeças que marcaram o que é o humor no
nosso país. O Nuno Markl, o João Quadros, o José Pina, o Ricardo
Araújo Pereira, o Rui Cardoso Martins, o Miguel Góis, o José Diogo
Quintela, a Maria João Cruz, o Luís Filipe Borges, o próprio Nuno
Artur da Silva. O próprio Bruno Nogueira também pode ser incluído
neste enorme grupo de argumentistas que marcaram decisivamente uma
nova vaga do humor em Portugal. Posso mesmo dizer que houve o germe
uma nova geração de humoristas.
Para si e
para outros, Herman José é o rei. Acha-se uma espécie de herdeiro
dele?
Sim, todos nós escrevemos para ele.
Sempre foi a referência máxima para muitos de nós que começámos nas
Produções Fictícias. Ou seja, o Herman era o maior e somos um
bocadinho os herdeiros e os filhos de uma determinada maneira de
fazer humor.
Li que
começou a destacar-se ainda em criança, no colégio, a fazer piadas
com os filmes de Charlie Chaplin para deleite da turma. Nasce-se
humorista? É vocação, talento e algum suor e lágrimas?
É basicamente uma vocação que nasce
connosco. Saber o timing certo para despontar, o que faz rir,
identificar o nervo. O Woody Allen diz o seguinte: «não se é
humorista e comediante, nasce-se». Estou de acordo. Nós não
escolhemos, é uma coisa que nos escolhe a nós.
Pelo que
diz há um sentido de oportunidade associado a esta carreira
artística. Mas não admite que existam muitos talentos desperdiçados
perdidos noutras profissões?
Claro que pode haver pessoas que
passaram ao lado da carreira. E existem, de certeza grandes
talentos que passaram ao lado, por diversas razões. Ou porque
tiveram azar, ou porque não foram perseverantes, ou porque no
momento em que alguém os estava a ver não estiveram particularmente
bem, etc. Sou da opinião que quem não desistir, mais tarde ou mais
cedo, acaba por demonstrar o seu real valor e talento. Na vida
passam dois ou três "comboios" que temos de apanhar. Eu tive sorte,
apanhei o primeiro que passou. Uma vez vi o Maradona dizer que no
bairro onde nasceu, em Buenos Aires, ele era para aí o 15.º melhor
jogador. Era capaz de ter razão, mas o tempo acabou por demonstrar
que ele era o melhor futebolista de uma geração e um dos melhores
de todos os tempos.
Abandonou
um curso de Direito, quase concluído, para entrar no humor. Não se
arrepende?
Sabia que nunca ia ser advogado na
vida. Eu era finalista de Direito, estava no 5.º ano, não tinha
nenhuma formação como ator e argumentista, mas o "comboio" passou e
eu não hesitei. O meu pai pressionou-me para concluir o curso e
mostrou muitas dúvidas sobre a segurança de uma carreira artística
no humor. Arrisquei e venci. Mais tarde inscrevi-me no curso de
História, por mero gosto pessoal. Fiz duas ou três cadeiras, mas
depois a carreira artística absorveu-me todo o tempo. Mas ainda não
perdi a esperança de concluir a licenciatura em Direito.
No
«Anticrise», emitido na RTP-1, um dos seus bonecos que mais sucesso
faz é o de Jorge Jesus, o treinador do Benfica. Explique-me o que é
que aquele homem tem de magnético para ter todo o país a falar dele
e a imitar os seus trejeitos?
Jorge Jesus é uma figura
idiossincrática. O cabelo, a maneira de falar, os esgares que faz.
No seu conjunto é uma personagem muito forte e carismática, à sua
maneira. Não se expressa particularmente bem, mas percebe de
futebol e é bem sucedido profissionalmente. O país para só para ver
um tipo com um carisma fora do comum. O YouTube está cheio de
vídeos dele com momentos maravilhosos. Eu costumo dizer, é melhor o
Jorge Jesus verdadeiro, do que qualquer caricatura que eu faça
dele.
Os
políticos ainda são fonte de matéria prima para os humoristas ou
estão a passar de moda?
Eu fazia o Sócrates e o Relvas no
«Anti Crise». Acho muito sinceramente que ambos são personagens
muito fortes, o que é explicado sobremaneira devido ao seu lado
quase picaresco. Por exemplo, não se sabe como é que fizeram os
cursos e o povo percebe que são ambos artistas à portuguesa bem
sucedidos, que dizem umas coisas aqui e outras acolá. São
personagens de folhetim que davam um romance como protagonistas bem
falantes.
Qual é a
sua opinião sobre o ministro das Finanças?
O ministro Vítor Gaspar, à sua
maneira, também é uma personagem que acho muito piada. Aquela forma
exasperante de se expressar é única, principalmente quando está
muito calmo e placidamente a explicar como é que nos vai ao
bolso.
Também
escreveu para o «Contra Informação», um programa que marcou uma
época. Recebeu recados ou informações de políticos que se queixaram
dos textos ou dos bonecos?
Aqui e ali há uns zum zuns de algum
descontentamento, mas nunca ninguém ousou dizer na nossa cara as
suas próprias queixas. Isso revela que ainda somos um país
democrático. Há uns políticos que são mais sensíveis do que outros
ao humor que os visa. Uns sentem-se tocados, outros têm mais fair
play e poder de encaixe. Mas todos eles fazem um esforço para não
passar a ideia que se sentiram atingidos.
Tem uma
vida profissionalmente preenchida, com múltiplas solicitações. Como
é que observa a cavalgada imparável do desemprego, especialmente o
que afeta os jovens e a mão de obra qualificada?
Muita apreensão. Sabíamos que as
vagas de emigração no princípio e em meados do século XX eram
protagonizadas por pessoas pobres e humildes, em busca de uma vida
melhor. Agora, assiste-se a uma debandada do que é bom para o
exterior, mas com a particularidade de a maioria dos que partem
terem formação superior. É um sinal dos tempos, se calhar. Vai mal
e perde o país que não consegue criar riqueza para segurar os seus
melhores técnicos, sejam eles pedreiros, eletricistas, escritores e
cientistas. O que é que o governo espera de um país em que as
pessoas têm de fugir para conseguirem sobreviver?
Tem um
filho de 12 anos, do primeiro casamento, e apresta-se para ser de
novo pai dentro de poucos meses. Qual é o segredo para educar? O
humor pode ser um contrapeso da severidade?
Acho que deve ser um misto. Importa
incutir rigor aos mais jovens, mas sobretudo valores. Procuro fazer
com que ele entenda que há tempo para cumprir obrigações e tempo
para brincar, tudo dentro de regras e uma atitude responsável.
Nuno Dias da Silva
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