Entrevista

Humorista
Já chegámos ao Madeira

IMG_9518 copy.jpgÉ um argumentista e ator anticrise. Trabalho não falta ao humorista que escreveu para Herman José e insuflou vida aos "bonecos" de Sócrates, Relvas e agora Jorge Jesus. Eduardo Madeira na primeira pessoa, em estado de graça.

É um dos atores da comédia teatral «Toc Toc», que está em exibição no Teatro Tivoli, em Lisboa. Nela desfilam seis personagens acometidas por fobias e um transtorno obsessivo compulsivo (TOC) distinto. Com o País mergulhado numa crise, esta peça pode funcionar como uma espécie de Portugal no divã?

Para ser sincero, nunca tinha visto esta comédia por essa perspetiva que coloca. Mas não deixa de ser interessante. Com efeito, o País está a viver um momento de algum desequilíbrio e de alguma esquizofrenia. Admito que alguns destes transtornos que são representados na peça se possam aplicar à forma de atuar dos políticos que nos governam. Esquizofrenia política, bem entendido. Basta ver o exemplo recente, em que o Primeiro-Ministro anunciou cortes nas reformas e 48 horas depois apareceu o ministro Paulo Portas a garantir que não ultrapassaria esse limite. Então em que é que ficamos?

Esquizofrenia é sinónimo de fragmentação. A prática política é fracionada e dificilmente inteligível aos olhos dos cidadãos?

Acho que sim. Este tipo de manobras políticas, muitas vezes, só servem para confundir e para baralhar. Os cidadãos ficam sem perceber o que é que se pretende com certas políticas.

O humor em tempos de crise pode ser terapêutico?

Sem dúvida. O humor e a boa disposição podem servir de válvula de escape, em especial às pessoas que estão a atravessar uma fase complicada e precisam de descomprimir. Estou certo que muitos dos que se dirigem ao teatro para ver esta peça o façam para descontrair e esquecer, durante duas horas, os temas relacionados com as troikas, o governo, etc.

Disse um dia numa entrevista que «o público só percebe piadas de futebol e do Goucha». Quer isso dizer que a escassa formação de boa parte da população faz com que só perceba o humor fácil e menos elaborado?

Deixe-me só ressalvar isto: Quando me refiro ao Goucha, não são as piadas que o Manuel Luís Goucha diz, mas as piadas que fazem em relação a ele. Já são tantas, que perdem a graça. Sobre a sua pergunta em concreto, acho que o português tem mais facilidade em perceber a piada mais direta e mais básica, porque também não tem um humor tão elaborado como outros povos. Mas os portugueses gostam muito de rir e têm sentido de humor. Curiosamente não têm é sentido de humor sobre eles próprios.

Quer dar um exemplo concreto?

IMG_9527 copy.jpgO português gosta de ouvir falar mal do português, mas só quando não faz parte do grupo. Quando percebe que também está a ser gozado, já não acha tanta piada…

Não sabemos rir da nossa própria desgraça?

O português não é muito de se rir de si próprio. Os ingleses, por exemplo, têm um sentido do ridículo absolutamente incrível. Fazem piadas sobre as coisas mais sagradas e com um espírito que só eles têm.

Há uma herança do passado que nos faz ter receio de passar o risco?

Penso que sim. Há algo que vem de muito longe que é dizer «cuidado, com isso não se brinca».

Como ator e argumentista que é, o bom senso é o único critério para que o humor que se escreve ou representa não ultrapasse a linha do razoável?

Eu defendo que se pode brincar com tudo, agora há o limite do bom gosto e do bom senso que deve ser observado. Existe uma zona em que se percebe que é ofensa, não é humor inteligente, é só gozo, puxar pela parte mais escatologia, pelo vernáculo, etc. Aliás, a personagem que eu encarno no «Toc Toc», diz muitas asneiras, por causa do Síndrome de Tourette de que a pessoa padece, mas é algo tem um enquadramento lógico, não é algo que ostensivo. Agora usar de forma gratuita uma «arma» apenas para despoletar o riso acho criticável. Creio que se houvesse uma Convenção de Genebra para o humor essa seria uma arma ilegal e que não se podia utilizar (risos).

Mas admite que há colegas seus que cometem alguns excessos?

Por vezes constatamos que há os que enveredam pela lógica do «vale tudo». Também é preciso compreender que surgiram muitos humoristas. A concorrência é muita e admito que alguns achem que esse é o caminho mais fácil para o sucesso. Contudo, não me revejo nisso. Prefiro ter mais trabalho e construir, passo a passo, uma carreira mais sólida.

Em que domínios se sente mais confortável: teatro, stand up comedy, televisão ou argumentista?

Eu tenho procurado provar a mim mesmo que sou bom em todas as áreas do humor. Na escrita, a fazer canções, ator de teatro e televisão, como em stand up comedian, etc. O feed back do público e da critica tem-me feito perceber que sou multifacetado dentro da área que escolhi para minha atividade.

Começou a colaborar com as Produções Fictícias em 1997. O seu fundador, Nuno Artur da Silva, disse em entrevista ao nosso jornal que é a «travessa da fábrica das piadas». Tem a noção que entrou para uma fábrica do humor em Portugal?

Tive a felicidade e o orgulho de coincidir com uma série de cabeças que marcaram o que é o humor no nosso país. O Nuno Markl, o João Quadros, o José Pina, o Ricardo Araújo Pereira, o Rui Cardoso Martins, o Miguel Góis, o José Diogo Quintela, a Maria João Cruz, o Luís Filipe Borges, o próprio Nuno Artur da Silva. O próprio Bruno Nogueira também pode ser incluído neste enorme grupo de argumentistas que marcaram decisivamente uma nova vaga do humor em Portugal. Posso mesmo dizer que houve o germe uma nova geração de humoristas.

Para si e para outros, Herman José é o rei. Acha-se uma espécie de herdeiro dele?

Sim, todos nós escrevemos para ele. Sempre foi a referência máxima para muitos de nós que começámos nas Produções Fictícias. Ou seja, o Herman era o maior e somos um bocadinho os herdeiros e os filhos de uma determinada maneira de fazer humor.

Li que começou a destacar-se ainda em criança, no colégio, a fazer piadas com os filmes de Charlie Chaplin para deleite da turma. Nasce-se humorista? É vocação, talento e algum suor e lágrimas?

É basicamente uma vocação que nasce connosco. Saber o timing certo para despontar, o que faz rir, identificar o nervo. O Woody Allen diz o seguinte: «não se é humorista e comediante, nasce-se». Estou de acordo. Nós não escolhemos, é uma coisa que nos escolhe a nós.

Pelo que diz há um sentido de oportunidade associado a esta carreira artística. Mas não admite que existam muitos talentos desperdiçados perdidos noutras profissões?

IMG_9505 copy.jpgClaro que pode haver pessoas que passaram ao lado da carreira. E existem, de certeza grandes talentos que passaram ao lado, por diversas razões. Ou porque tiveram azar, ou porque não foram perseverantes, ou porque no momento em que alguém os estava a ver não estiveram particularmente bem, etc. Sou da opinião que quem não desistir, mais tarde ou mais cedo, acaba por demonstrar o seu real valor e talento. Na vida passam dois ou três "comboios" que temos de apanhar. Eu tive sorte, apanhei o primeiro que passou. Uma vez vi o Maradona dizer que no bairro onde nasceu, em Buenos Aires, ele era para aí o 15.º melhor jogador. Era capaz de ter razão, mas o tempo acabou por demonstrar que ele era o melhor futebolista de uma geração e um dos melhores de todos os tempos.

Abandonou um curso de Direito, quase concluído, para entrar no humor. Não se arrepende?

Sabia que nunca ia ser advogado na vida. Eu era finalista de Direito, estava no 5.º ano, não tinha nenhuma formação como ator e argumentista, mas o "comboio" passou e eu não hesitei. O meu pai pressionou-me para concluir o curso e mostrou muitas dúvidas sobre a segurança de uma carreira artística no humor. Arrisquei e venci. Mais tarde inscrevi-me no curso de História, por mero gosto pessoal. Fiz duas ou três cadeiras, mas depois a carreira artística absorveu-me todo o tempo. Mas ainda não perdi a esperança de concluir a licenciatura em Direito.

No «Anticrise», emitido na RTP-1, um dos seus bonecos que mais sucesso faz é o de Jorge Jesus, o treinador do Benfica. Explique-me o que é que aquele homem tem de magnético para ter todo o país a falar dele e a imitar os seus trejeitos?

Jorge Jesus é uma figura idiossincrática. O cabelo, a maneira de falar, os esgares que faz. No seu conjunto é uma personagem muito forte e carismática, à sua maneira. Não se expressa particularmente bem, mas percebe de futebol e é bem sucedido profissionalmente. O país para só para ver um tipo com um carisma fora do comum. O YouTube está cheio de vídeos dele com momentos maravilhosos. Eu costumo dizer, é melhor o Jorge Jesus verdadeiro, do que qualquer caricatura que eu faça dele.

Os políticos ainda são fonte de matéria prima para os humoristas ou estão a passar de moda?

Eu fazia o Sócrates e o Relvas no «Anti Crise». Acho muito sinceramente que ambos são personagens muito fortes, o que é explicado sobremaneira devido ao seu lado quase picaresco. Por exemplo, não se sabe como é que fizeram os cursos e o povo percebe que são ambos artistas à portuguesa bem sucedidos, que dizem umas coisas aqui e outras acolá. São personagens de folhetim que davam um romance como protagonistas bem falantes.

Qual é a sua opinião sobre o ministro das Finanças?

O ministro Vítor Gaspar, à sua maneira, também é uma personagem que acho muito piada. Aquela forma exasperante de se expressar é única, principalmente quando está muito calmo e placidamente a explicar como é que nos vai ao bolso.

Também escreveu para o «Contra Informação», um programa que marcou uma época. Recebeu recados ou informações de políticos que se queixaram dos textos ou dos bonecos?

Aqui e ali há uns zum zuns de algum descontentamento, mas nunca ninguém ousou dizer na nossa cara as suas próprias queixas. Isso revela que ainda somos um país democrático. Há uns políticos que são mais sensíveis do que outros ao humor que os visa. Uns sentem-se tocados, outros têm mais fair play e poder de encaixe. Mas todos eles fazem um esforço para não passar a ideia que se sentiram atingidos.

Tem uma vida profissionalmente preenchida, com múltiplas solicitações. Como é que observa a cavalgada imparável do desemprego, especialmente o que afeta os jovens e a mão de obra qualificada?

Muita apreensão. Sabíamos que as vagas de emigração no princípio e em meados do século XX eram protagonizadas por pessoas pobres e humildes, em busca de uma vida melhor. Agora, assiste-se a uma debandada do que é bom para o exterior, mas com a particularidade de a maioria dos que partem terem formação superior. É um sinal dos tempos, se calhar. Vai mal e perde o país que não consegue criar riqueza para segurar os seus melhores técnicos, sejam eles pedreiros, eletricistas, escritores e cientistas. O que é que o governo espera de um país em que as pessoas têm de fugir para conseguirem sobreviver?

Tem um filho de 12 anos, do primeiro casamento, e apresta-se para ser de novo pai dentro de poucos meses. Qual é o segredo para educar? O humor pode ser um contrapeso da severidade?

Acho que deve ser um misto. Importa incutir rigor aos mais jovens, mas sobretudo valores. Procuro fazer com que ele entenda que há tempo para cumprir obrigações e tempo para brincar, tudo dentro de regras e uma atitude responsável.

Nuno Dias da Silva
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