Editorial
O que pensamos e o que fazemos
Com a revolução científica e tecnológica que tem
acompanhado a implementação da sociedade do conhecimento, a escola
tem vindo a conhecer transformações irreversíveis. Apesar de esse
ser um assunto recorrente da investigação educacional, é sempre
interessante regressar a esta temática, sobretudo quando os estudos
nos confrontam com a crítica a uma escola que consideram demasiado
racional, tecnológica, superespecializada e impregnada de clichés
administrativos e corporativos.
Em consequência, instala-se no
mundo interior dos docentes um efeito cuja perversão ainda está por
medir: pese embora tudo o que aconteça na realidade diária das
escolas, os professores estão convencidos de que a sua
profissionalidade e a sua qualidade de trabalho dependerá, mais que
tudo, das suas competências "operárias" e "instrumentais" (o
saber-fazer) que os conduzem à aplicação de técnicas rigorosas
através das quais conseguirão "produzir" a aprendizagem dos seus
alunos.
Aqui estão alguns indícios:
Primeiro, todos abominam os "receituários", todavia quase sempre
vivem dependentes dessa normatividade que lhes dá segurança e que
lhes proporciona grande parte dos conhecimentos que guiam a acção;
segundo, surgem os "tradutores-especialistas", aqueles que
acreditam na voz especializada, enquanto intermediário
insubstituível entre a origem científica do conhecimento e a
correcta interpretação e divulgação das normas pedagógicas;
terceiro, as reformas alteraram o discurso e as linguagens, porém o
"processo de cretinização técnico-burocrático" do trabalho docente
permanece, no substancial, inalterável. Resultado: a lucidez
demasiado disciplinar e especializada conduz, invariavelmente, à
cegueira no que respeita à apreciação do global, do geral e da
diferença.
Nesta transformação acentuada, é
certo que a ciência substituiu a religião quanto à construção do
discurso pedagógico. Todavia novas formas de misticismo afloraram
sempre que, no terreno institucional, se procedeu à aceitação dos
poderes, aliados aos saberes, como meios únicos de legitimação de
uns e dos outros.
Para que a Escola atinja, neste
terceiro milénio, uma via de "transformação positiva", temos que
enfrentar alguns desafios. Desde logo, importa nivelar o estatuto
da "pedagogia oficial" com o do "conhecimento prático" dos
docentes. Depois, exige-se o rápido reconhecimento da maioridade
dos profissionais do ensino. Um reconhecimento que proporcione a
conquista da autonomia para pensar o próprio pensamento, autonomia
para reflectir sobre o conhecimento elaborado, autonomia para
construir novo pensamento com base no conhecimento e na maturação
da própria acção docente. Ou seja, a eliminação do pensamento por
"senso comum" do discurso oficioso que reina nos corredores de uma
boa parte das escolas portuguesas.
No fundo, encontramo-nos perante
um desafio, lançado aos "práticos", para que "conquistem", dentro
das escolas, todas as "possibilidades" que lhes permitam a
elaboração de "conhecimento", através do qual sustentem e teorizem
essa mesma prática.
É que a separação entre
pensamento e acção implica que a educação não seja mais uma
preparação para agir. Implica a aceitação de dois ensinos
distintos: um especulativo, o outro prático, um fornecendo o
espírito e o outro a letra, um o método, o outro, os resultados. E
tudo isto nos empurra para o sublinhar de uma das maiores
contradições que nos podem ser imputadas a nós, educadores: a
incapacidade para integrar na nossa prática quotidiana, de um modo
coerente, o que pensamos e o que fazemos.