Entrevista

Manuel Sérgio, professor catedrático
«O filósofo do futebol»

SergioJesus.jpgPensa o futebol como ninguém, nas suas múltiplas vertentes. Manuel Sérgio, que considera que o desporto rei «é a coisa mais importante das coisas pouco importantes», fala de José Mourinho, Jorge Jesus, Cristiano Ronaldo e Lionel Messi.

O facto de ter nascido perto de um campo de futebol, o das Salésias, traçou-lhe o destino na relação estreita que mantém com o futebol e o amor que nutre pelo seu clube de sempre, o Belenenses?

O futebol faz parte da minha meninice. Não só porque nasci próximo de um campo de futebol, o Estádio José Manuel Soares, ou das Salésias, o primeiro campo relvado do país, mas também porque o meu pai, praça e depois cabo da GNR, sempre que podia, não deixava de assistir aos jogos do Belenenses. Eu, também sempre que a minha mãe mo consentia, assistia aos treinos da primeira categoria do Belenenses das décadas de 30 e 40 do século passado. Os jogadores do meu clube eram então os meus ídolos, com quem convivi e conheci bem de perto. Depois, mais tarde, o Capela, o Vasco, o Feliciano, o Amaro, o Gomes, o Serafim, o Mário Coelho, o Elói, o Andrade, o Quaresma, o Rafael, que formaram a equipa campeã nacional, também com eles me familiarizei. Poderia até esboçar os retratos de cada um deles, fiando-me apenas no que me resta na memória. Não é fácil retroceder a 70 anos atrás, mas recordo, com alguma nitidez, a classe do Amaro e do Artur Quaresma, as qualidades atléticas do Vasco e do Feliciano, a capacidade goleadora do Andrade, que é o único ex-jogador desta equipa que ainda não faleceu.  O futebol era mais pausado do que hoje, porque era muitíssimo menos veloz. A ausência de profissionalismo, um treino desportivo rudimentar não lho permitiam. Mas é verdade que o Belenenses é uma das mais valiosas evocações da minha juventude e, afinal, da minha vida toda. Será também de relembrar que, entre 1964 e 1994, fui dirigente do Belenenses, desde diretor do jornal "Os Belenenses" até vice-presidente da direção e presidente da Assembleia Geral. 

José Maria Pedroto chamou-lhe «profeta», José Mourinho considera-o o seu «guru». O que é, afinal, o professor Manuel Sérgio? Uma inspiração?

É de vigilância hostil, no nosso país, qualquer pessoa de inteligência inovadora e renovadora. A inveja rodeia-o, inevitavelmente. Ora eu, ao dizer que a educação física é um cartesianismo e que o desporto se integra na área das ciências hermenêutico-humanas, disse "coisas novas", em língua portuguesa. O José Mourinho, para mim, o melhor entre os melhores treinadores do mundo, no prefácio do meu livro "O Futebol e Eu", revela o que aprendeu nas minhas aulas: que não sabe de desporto quem sabe só de desporto, pois que no desporto está o humano, na sua integralidade; que a educação física nasceu do "erro de Descartes"; que o desporto é um dos aspetos da motricidade humana e que, portanto, no treino desportivo deverá utilizar-se a metodologia específica das ciências hermenêutico-humanas; que o corte epistemológico que eu realizei, com a passagem do físico à pessoa, no movimento intencional da transcendência, fundamenta o treino e a prática desportiva. Estamos na área do humano e portanto o progresso desportivo tem de ser também progresso humano e pode não haver progresso humano, com muitos campeonatos ganhos e muitos recordes batidos. Muitas (demasiadas) vezes, o desporto serve, principalmente, para adormecer o trabalhador ; à recusa da sociedade injusta estabelecida.  
«Para saber de futebol é preciso saber mais do que futebol», é um dos seus lemas.

Quer com isto dizer que um treinador deve apurar todos os seus sentidos e conhecer as múltiplas dimensões da diversidade humana?

É preciso saber que o futebol (como o desporto em geral) não é só técnica e tática e preparação física, é também, por exemplo, economia e política. Se o futebol emerge tão-só como um dos subsistemas do sistema capitalismo, ele não passa de simples mercadoria. Por isso, na alta competição desportiva, ninguém faz desporto para ter saúde, fá-lo porque tem saúde. A técnica é desporto, mas o desporto não é técnica tão-só. O desporto é, acima de tudo, um processo de criação cultural, pois que se trata de uma concreta formação histórica, situada no tempo e no espaço. De tão amarrados nos encontrarmos à "sociedade de mercado" (e não a uma sociedade com mercado) não descortinamos que ela fomenta o "bellum omnium contra omnes" (traduzindo: a guerra de todos contra todos) dando o primado à dimensão económica e subalternizando a dimensão ético-política. No desporto, fomenta ele a mais despudorada mentira, quando os futebolistas, os voleibolistas, os ciclistas, etc., etc. negam, contra todas as evidências, o consumo de substâncias dopantes; quando treinadores e atletas escondem a frequência e a gravidade das lesões, numa prática que nada tem de saudável; quando uma ideologia acrítica do desporto percorre os manuais escolares, desde a mais tenra idade. Sou então contra o espetáculo desportivo? Não, sou a favor! Mas importa que ele se converta em contra-poder ao poder do neoliberalismo que nos governa. O desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo. O corpo não pode estudar-se num contexto unicamente biológico.

José Mourinho, que escreve o prefácio do seu mais recente livro, «O Futebol e eu», diz que o professor foi a pessoa que mais o influenciou. Há poucos dias conquistou mais um título (o 22.º) para a sua carreira ao serviço do Chelsea. O seu mérito deve-se à competência técnica ou por ter sabido captar a essência psicológica e filosófica dos seus jogadores e dos adversários?

O José Mourinho é em tudo digno para emparceirar com os nomes maiores da história do futebol. E, depois, para além de ser um estudioso informado, é pessoa de invulgar perspicácia. E corajoso, também. Segundo os escolásticos, na Idade Média, a coragem perfila-se, ao lado da justiça e da prudência e da temperança, como uma das quatro virtudes cardeais. Uma das características do desporto reside no seu agonismo. O desporto exige coragem, porque pode ter situações de risco. Aliás, a superação dos obstáculos assemelha-se ao comportamento moral. Para mim, um treinador deve distinguir-se principalmente pela liderança, pela leitura de jogo típica do especialista e pela comunicação para poder motivar. José Mourinho tem estas três qualidades de modo bem evidente. Para além das outras que também salientei. É um treinador excecional.

Os mind games, exercício em que Mourinho é mestre, fazem parte desta dinâmica?

O José Mourinho é, por natureza, um "homo ludens". Onde houver jogo, ele interpreta e compreende melhor do que o senso comum o que se está a passar.

Sergio5.jpgJorge Jesus é outro treinador português bem sucedido. Sobre ele diz que «é um espectáculo de ritmo, intensidade e cor. Ele coloca no treino o homem que é». Sobre o técnico do Benfica pode dizer-se que é a autenticidade da sua personalidade o seu traço distintivo perante os demais?

O Jorge Jesus é um "prático" mas que, pela prática, criou a sua própria ideia de jogo. Ele teoriza aquilo que a sua prática lhe sugere. Alheado de qualquer leitura, descurando as grandes referências teóricas, ele vive o seu mundo e com ele e por ele luta. O seu saber não é de importação, nasce nele e com ele vai morrer. Nunca vi fenómeno semelhante, no mundo do futebol. Fui amigo do José Maria Pedroto e do Fernando Vaz. Ambos procuravam informação, nos livros e revistas. O Fernando Vaz foi mesmo um leitor habitual de escritores literariamente de relevo. No entanto, o Jesus tem uma qualidade que importa realçar: a sua fidelidade àqueles que ele julga seus amigos sinceros. Não lhe batem à porta, sem que a sua voz decididamente brade: pronto!  É um amigo, como há poucos. Como treinador de futebol, tem qualidades que nunca é demais realçar. 

Curiosamente, Mourinho e Jesus são apontados como dois homens arrogantes. A arrogância é a expressão da confiança em si mesmos e a antítese da insegurança?

Não são arrogantes. Vivem em permanente alta competição. Eles são a síntese natural de circunstâncias, experiências e motivações onde um agonismo extremo sobrenada. Em privado, parecem outras pessoas. Devo a ambos momentos inesquecíveis de fraterno convívio. A profissão de treinador de futebol apresenta particularidades que nem sempre permitem momentos de uma lucidez, em plenitude. Mas respeito-os muito, porque são ambos pessoas de boa formação moral.

Ronaldo e Messi são as duas estrelas maiores do firmamento futebolístico. Pensa que, nomeadamente o jogador português, é o expoente máximo do apogeu da dimensão científica no futebol?

O Ronaldo é de facto fruto de um trabalho insano. O Messi nasceu assim e assim continua. Mas, no Ronaldo, também se verifica o legado da genética e no Messi o resultado de um treino sistemático. Mas, de facto, no português, há mais tecnociência e, no argentino, a genética predonima. São os melhores jogadores do mundo e é bem possível que sejam os melhores de sempre. Mas em dois jogadores a inteligência parecia dominar tudo o que faziam. Refiro-me a Di Stéfano e a Zinedine Zidane. Também no Andrès Iniesta a distinção pensamento-movimento parece  meramente formal.

Como vê o negócio, a indústria e a mercantilização do futebol, com as principais estrelas pagas a peso de ouro. É algo nocivo numa sociedade cada vez mais assimétrica e desigual? Nesta civilização do espectáculo, em que o futebol está metido, há margem para filosofar?

 Como aprendi em Manuel Reis (cfr. Cultura Ocidental e Humanismo Crítico) vivemos numa sociedade de mercado e não numa sociedade com mercado. A mania da medida, do rendimento, do recorde, típica do capitalismo e que exclui outros valores de forte caráter antropológico, quantifica, simplifica, imediatiza, uniformiza e quase sempre robotiza e embrutece. Bem é que os praticantes profissionais do desporto não permitam que deles façam o "homo mechanicus" manipulado, reificado, que não sabe jogar fundo na existência, porque se habituou ao jogo superficial das ideias, das teorias, dos esquemas, das relações, dos compromissos sem sequência. O verdadeiro desporto não se destina a fazer bestas esplêndidas, mas pessoas livres e libertadoras. O verdadeiro desporto tem de transformar-se na expressão corporal do desenvolvimento cultural e sócio-económico de um povo. Há o verdadeiro e o falso desporto, como há a verdadeira e a falsa notícia, como há a verdadeira e a falsa moeda. Distinguir um do outro é tarefa imperiosa e urgente. Mas só se suprime o que se substitui. O desporto não está, aqui e agora, em causa. Nem sequer o honesto lucro que ele pode proporcionar. O que se denuncia é a conceção economicista do desporto . Admirar um atleta de qualidades motoras inigualáveis, de uma espantosa expressão corporal, de um rigoroso empenhamento competitivo - bem é, conquanto tal não signifique (como acontece, aqui e além) nivelamento por baixo de todas as manifestações críticas e criadoras dos e das praticantes e anestesia e sonolência, no trabalho de transformação da sociedade injusta.

O professor Mário Moniz Pereira lamentava que os mass media contribuíram para uma «monocultura do futebol» em Portugal. Justifica-se que as outras modalidades sejam quase eclipsadas? 

O prof. Mário Moniz Pereira tinha razão nos ;  seus lamentos. Ele foi um dos bardos que mais amorosamente defendeu as tradições da grei e os valores estremes da pátria portuguesa, para além do seu invulgar trabalho no atletismo. Em Portugal, a "monocultura do futebol", muito por culpa dos "mass media", é uma evidência. Aliás, em Portugal, o futebol ofusca todo o resto. Não acontece o mesmo aqui ao nosso lado, em Espanha. E, daí, o progresso que lá se verifica, nas várias modalidades desportivas. E não só no futebol...

Também na sociedade e na política é comum ouvirmos o recurso a metáforas futebolísticas ou tiradas com origem no futebolês, do género «prognósticos só no fim», «a bola é redonda, tudo é possível», «se for preciso, comemos relva». Como explica o recurso excessivo a estes mecanismos de linguagem?

O futebol é a coisa mais importante das coisas pouco importantes. Leio o livro do sociólogo brasileiro Maurício Murad, A  Violência e o Futebol: "O futebol é muito mais do que um esporte profissional de alto rendimento: é a metáfora de uma sociedade. Em outras palavras, é a síntese de múltiplas determinações objetivas e subjetivas - emocionais, existenciais, culturais, sociais, históricas" (p. 17). As pessoas precisam do futebol porque, melhor do que sonhar um mundo utópico, sem obstáculos de nenhuma espécie, melhor é aprender a superá-los.

Fundou o Partido da Solidariedade Nacional (PSN), tendo sido eleito em 1991 para deputado. Quase 25 anos depois, no atual contexto, em que os reformados são uma das principais vítimas da austeridade, fazia sentido um partido que desse voz aos reformados?

O PSN, na minha cabeça, deveria ser um partido incómodo, interveniente, subversivo mesmo. Afinal, cheguei cedo à conclusão que, no PSN, eram muitos os velhos, no corpo e na alma, tutelados por pessoas fisiologicamente mais novas, mas psiquicamente tão velhas como eles. Tive a sorte de usufruir, na Assembleia da República, da amizade dos doutores Barbosa de Melo e Almeida Santos, que muito me ajudaram a viver um período difícil da minha vida. Prefiro esquecer que, durante cinco anos, fui político profissional. Prefiro a vida de professor e conferencista.

Em maio de 2013 foi nomeado Provedor para a Ética do  Desporto. Com a violência, física e verbal, a corrupção e o doping, no fundo a suspeição, que atacam várias modalidades, se me permite a imagem, dirimir os conflitos do futebol português não é quase tão difícil do que obter a paz no Médio Oriente?

Somos um país de censores, mais tentados a decretar do que a propor. No meu caso e neste cargo, procuro velar pela ética, na prática desportiva, sugerindo, propondo, aconselhando... sem qualquer ponta de acidez! Mas, para que a ética desportiva se concretize, importa que assumam as suas responsabilidades os Governos, as organizações desportivas, os agentes desportivos e a todos os participantes em eventos desportivos. A ética é de todos e para todos! O Provedor pode pouco, se isolado, ou num grande imobilismo ou numa grande incomunicabilidade.

SergioeMourinho.jpgConcorda com que os defendem que o futebol é uma forma de fazer a guerra por outros meios?

O futebol não é guerra, não é violência, tem violência. Sirvo-me agora de um autor de língua castelhana Guillem Turró Ortega, "El valor de superarse": «El deporte no expresa un conflicto entre los competidores, sino una lucha gozosa, un combate simulado en el cual los oponentes se enfrentan sin una motivación personal de ataque. Cuando la competición deportiva llega a su fin los participantes siempre podrán decir que solo ha sido un juego» (p. 80). Relembro o que se passou, no último Benfica-FC Porto (0-0). Foi eticamente exemplar aquele jogo e, no final, os jogadores das duas equipas abraçaram os seus adversários, como se a competição fosse mais um espaço de festa e de encontro fraterno. Disse atrás que o desporto não é violento, tem violência. E porquê? Porque, frequentemente, reproduz e multiplica as taras do neoliberalismo que nos comanda. O mesmo homem (ou mulher), que a política e a economia hostilizam, é precisamente o mesmo que faz e contempla desporto. No entanto, eu não enfileiro entre os que afirmam a inexorabilidade da radical servidão do desporto às estruturas sociais. É evidente, nele, também, o primado do homo ludicus sobre o homo mechanicus, do homem criador sobre o homem procriador, ou repetitivo, do homem pluridimensional sobre o homem unidimensional. Desta forma, é possível ao desporto, mais do que refletir, projetar a sociedade que os homens de boa vontade querem construir. 

Dedicou toda a sua vida ao ensino, como professor da Faculdade Motricidade Humana. Com a crónica falta de instalações para a prática do desporto em muitas das nossas escolas, pensa que tardará em implantar-se uma cultura desportiva em Portugal e o caso de atletas bem sucedidos, seja no futebol, no atletismo ou outros desportivos, continuará a ser fruto de geração espontânea?

Se a  cultura é a aliança do saber e da vida, como ensinava o Padre Manuel Antunes, meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa, a cultura desportiva supõe uma prática  de grande lucidez e de grande influência social e política. O desporto, em Portugal, sofre, demasiadas vezes, de um clubismo doentio. Digamos, portanto, que a nossa cultura desportiva não é a que poderia ser. No entanto, havemos de reconhecer que ela está em trânsito para transformar-se num fator poderoso de desenvolvimento desportivo. O importante não é onde nos encontramos, mas para onde caminhamos.

A posição de autoridade dos professores, nomeadamente no ensino básico e secundário, tem sido colocada em causa por múltiplos fatores. Nos dias de hoje os docentes ainda conseguem ser condutores de homens e mulheres ou pensa que a sua figura no sistema de ensino está fragilizada?

O professor que não sabe ser líder está sempre fragilizado. Fui professor, mais de 40 anos, no ensino público e no privado, e (passe a imodéstia) nunca me senti fragilizado.

Com a sua experiência de décadas nas salas de aula, que lição/conselho daria aos alunos, professores e governantes do setor educativo que estão a ler esta sua  entrevista?

A lição/conselho aí vai: Mais do que seres um homem de sucesso, tenta ser um homem de valor.

Nuno Dias da Silva
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