Entrevista

Joaquim Franco, jornalista da SIC e especialista em assuntos religiosos
«A Igreja do Papa Francisco não deixa ninguém para trás»

joaquim_franco (1).JPGNo livro «Papa Francisco - A Revolução Imparável», que escreveu em parceria com o jornalista António Marujo, fala de «Primavera no catolicismo». É a melhor síntese dos quatro anos de pontificado do Papa argentino?

Ainda é cedo para dizer que se concretizou uma «Primavera» na Igreja católica. Mas sentimos um novo respirar e o que parece ser um momento de viragem no catolicismo, fruto de uma expetativa criada há alguns anos - desde o Segundo Concílio do Vaticano - e que teria de ter como resultado uma mudança. E essa expetativa foi agora depositada numa personagem: o Papa Francisco.

Quer com isso dizer que a eleição de Jorge Bergoglio não aconteceu por acaso?

A eleição de uma pessoa com o seu perfil era quase uma inevitabilidade face às circunstâncias em que a Igreja vivia. Em 2013, a Igreja estava cercada por escândalos, com corrupção, fugas de informação, crise financeira, pedofilia. Vinha de um pontificado muito longo de João Paulo II que deixou marcas na estrutura, seguido por um pontificado curto, que foi o de Bento XVI - que não era amado pela comunicação social. E é perante esta, chamemos-lhe, "panela de pressão", prestes a rebentar que a Igreja se confronta. As congregações gerais - que antecedem o Conclave - permitiram aos cardeais refletir sobre a situação em que a Igreja se encontrava e que modelo de Igreja era preciso construir ou reconstruir. Lendo as atas destas reuniões, a tendência apontava para um sucessor na linha de um Jorge Bergoglio, que surpreendera o colégio com uma intervenção muito lúcida e assertiva sobre a necessidade de retomar o Evangelho como resposta prática e pragmática.

 

O contexto facilitou a escolha de Bergoglio?

A situação era insustentável e ele teve a mais valia, no caso, de não ter qualquer ligação aos problemas da Igreja ou à estrutura vaticana. Ele é sobretudo um homem do terreno, um pastor, e está a mostrar que o que faltava à Igreja era precisamente o pragmatismo do terreno. A sua experiência pastoral trouxe para o governo central da Igreja o método de trabalho de um pastor: ouvir, falar, governar. Não deixa que outros governem por ele, ele governa, ouvindo e dialogando. Talvez seja esta a marca primeira da grande revolução. Ser jesuíta ajuda, é uma característica fundamental para dar um novo rumo a uma Igreja cercada por diversos problemas. Com Francisco a Igreja tem um caminho diferente.

 

Diz-se muito que a Igreja não acompanha o evoluir da realidade e os sinais dos tempos. Com o Papa Francisco há a preocupação por chamar para primeiro plano princípios básicos da vida, como o pedir licença, o agradecer e até o pedir desculpa. Sem se dar por isso, é um regresso ao básico?

Uma das marcas do Papa Francisco é que com ele regressa-se ao essencial do Evangelho, que passa por criar estruturas de relação e pensamento que levem ao encontro. Para ele a pessoa é, antes da condição de ser. Toda a construção do modelo ético e relacional do cristianismo está impregnado de relações incondicionais, mas há uma distância considerável entre o princípio evangélico e a prática da natureza humana. Francisco recupera para a atualidade princípios básicos do Evangelho que, de algum modo, estavam a cair em desuso. É o caso do princípio do acolhimento. Não é por acaso que faz um apelo repetido à ética de vida e do encontro. Para Francisco, a verdade é um encontro. Não há outra forma de lá chegar senão com o outro e pelo outro. Isto é o Evangelho. Recordemos os discursos e homilias dele.

Agregada a uma ideia ou a uma opinião está sempre uma pessoa ou uma situação. É um pastor, habituado ao concreto e não ao mero abstrato da fé. Ele reposiciona a doutrina, responsabilizando em simultâneo os próprios cristãos, a começar pelo clero, que acusa de preguiça e carreirismo. Para o Papa Francisco, a doutrina não está a montante, condicionando, segregando ou proibindo. A montante da experiência cristã está o Evangelho da misericórdia e a jusante está então a norma e a lei de uma Igreja feita de humanidade e de procura, como algo que pode servir como proposta de guia, apenas. É nesta lógica que a Igreja do Papa Francisco não deixa ninguém para trás, todos têm oportunidade, porque todos têm espaço e lugar. A exortação sobre a família é um claríssimo exemplo disso. E isto é uma revolução, que derruba os protótipos e preconceitos que caracterizaram um pensamento centralizador e tutelar, obrigando a Igreja a abandonar as pantufas, a calçar as botas de trabalho e a ir para o terreno. Dá trabalho, é evidente.


 

Uma revolução pode ser, ao mesmo tempo, uma reforma?

Uma revolução, embora possa ter uma dimensão por vezes abrupta, implica um percurso de reformas. Senão, não chega a ser uma revolução. O contexto de mudança é tão evidente que está a revolucionar a forma de um católico ou de um cristão se posicionar no mundo. O termo revolução não é exagero. Vivemos num tempo de mudanças drásticas, a todos os níveis - de uma certa irreversibilidade - e onde se inclui a religião. O Papa Francisco tem o mérito de introduzir uma nova atitude de ver o pensamento religioso no mundo contemporâneo que é revolucionária, porque, embora na senda de outros gestos e de outros papas, tem um certo caráter inédito na Igreja católica, transmitindo uma mensagem musculada segundo a qual nada é legítimo, em qualquer dimensão da vida, se atentar contra a pessoa ou promover a segregação. Para além de abalar os alicerces das certezas absolutas do pensamento religioso, nomeadamente o católico, ele lança mudanças - lá está, as reformas - que nos parecem não terem marcha atrás. Também falamos no livro sobre isto.

 

Mas o título que dão ao livro não é irreversível, mas imparável. O que quer isso dizer?

Nada na vida é irreversível. Só o nosso caráter finito! A certeza que eu e o António Marujo temos é que nalgumas dimensões e em algumas dinâmicas de mudança já lançadas pelo Papa Francisco, se houver um retrocesso isso implicará estragos na própria Igreja. Uma cisão profunda. A expetativa foi situada a uma fasquia de tal forma elevada que retrocedendo, implicaria divisões dramáticas na Igreja. Por isso temos de fazer a pergunta: e depois de Francisco?

joaquim_franco (4).JPGAs resistências dos setores mais conservadores da Igreja e o facto de o Papa ter anunciado que antevê um pontificado curto, podem reduzir o impacto desta revolução imparável?

O Papa Francisco tem revelado, repito, ser um homem de governo e tem sabido lidar com muita perspicácia e eficácia com as dificuldades e os obstáculos. Começa logo por recorrer à força do Espírito. Os crentes sabem o que ele quer dizer quando pede "rezem por mim". Ele sabe que a tarefa não se cumpre apenas com a motivação humana, muito menos com um homem só. A sua formação e experiência pastoral permite-lhe governar mesmo com os que pensam de forma distinta da dele. Repare que não há nenhuma decisão do Papa Francisco tomada de forma isolada e as mudanças propostas ou em marcha são feitas após aprofundada reflexão. Para adequar a Igreja à vida da família hoje convocou um Sínodo, em que pôs a Igreja a debater o tema durante ano e meio. Terminado o Sínodo, ponderadamente, juntou os contributos de todos os bispos e elaborou, como já referi, uma exortação apostólica com uma dimensão revolucionária sobre a forma como lidar com a família. As respostas apresentadas pelo Papa podem colidir com a opinião de alguns, mas refletem a opinião esmagadora da maior parte dos bispos. Realço um dado, da maior relevância... O peso que ele dá ao primado e à formação da consciência. É ler a "Amoris Laetitia". Em derradeira instância é em consciência que o cristão se apresenta diante da sua vida sacramental. Sem tutelas, em liberdade, o que implica uma grande responsabilidade pastoral. O cristão deve agir em consciência formada e não por imposição.

 

Quais são os maiores obstáculos com que se defronta?

Dentro do Vaticano ele lida com essa oposição, mas como líder de governo que sabe ouvir e não fica paralisado diante dos obstáculos. Mesmo perante os obstáculos de caráter doutrinário, ele já relevou que não tem medo da discórdia e que tão pouco anda à procura de unanimidades. Segue o pragmatismo pastoral sem com isso por em causa os valores. Depois há os obstáculos administrativos, da estrutura administrativa do Vaticano, muito pesada, com muitos vícios e o domínio dos italianos. Assim que assumiu o cargo, ele impôs uma dinâmica de reforma, suspendendo novas contratações, reestruturou os serviços da Santa Sé, quis mais leigos a liderar cargos de responsabilidade e não é de excluir que tenhamos mais mulheres a desempenhar cargos de responsabilidade, nomeadamente numa função elevada na estrutura.

 

E os adversários fora dos muros do Vaticano?

Para identificar os obstáculos externos, basta ler os artigos do Papa sobre a economia, a política e a ecologia, a forma como se pronuncia sobre os refugiados, a pobreza, o neoliberalismo e os atropelos ao ambiente. Aí se percebe quem está contra o Papa. A encíclica "Laudato Si" é uma denúncia veemente sobre a forma como a economia prevalece sobre a política. Certos poderes financeiros cruzavam-se também com alguns setores e personalidades que circulavam pelos corredores da Santa Sé e estão entranhadas nos muitos interesses da Igreja, o que levou a que o Papa, corajosamente, tenha empreendido um esforço para dotar de mais transparência os mecanismos financeiros do Vaticano.

 

Nalguns aspetos, Francisco tem características de João Paulo II, popular e mediático e de Bento XVI, com um pensamento filosófico muito profundo?

O Papa Francisco faz a síntese de vários papas. Pela sua experiência pastoral, pela forma de dialogar de igual para igual com o outro, na abertura à diferença, na experiência de contacto com outras realidades, na coragem e no pragmatismo de querer resolver os problemas, até com sensibilidade diplomática, chamando a Igreja para o debate, diria que está muito próximo de João XXIII. Por outro lado, se formos ver o Papa Francisco no tempo, veremos que ele assume o pontificado num momento de uma grave crise de definição do papel da Igreja. Nessa perspetiva, eu comparo-o muito a Paulo VI, que sucedeu a João XXIII e apanhou uma Igreja com discussões calorosas sobre todos os assuntos, com brechas e divisões.

 

A sua simplicidade e despojamento, até de ornamentos, assemelham-no a alguém?

Como homem do sorriso e como homem do afeto, como homem da linguagem simples, ele é um João Paulo I, que teve um curto pontificado de 33 dias, mas que, pelos poucos discursos que conhecemos, tem muitas semelhanças com o Papa Francisco. Por outro lado, a sua atitude mais popular, de contacto com os crentes e as pessoas, e a disponibilidade para estar junto das massas, da possibilidade de abrir caminhos que se julgavam impossíveis, e até pela valorização de alguma religiosidade popular e do diálogo com outras religiões, eu diria que é um João Paulo II.

 

As semelhanças com Bento XVI são ao nível do pensamento estruturado filosófico?

Com Joseph Ratzinger o paralelo reside na sua linha de pensamento sobre a vida, no cruzamento com a razão e a emoção, olhar para um mundo de forma racional e extrair o que é essencial, construindo uma alternativa de pensamento e materializando-o na sua liderança. Recordo o discurso de Bento XVI em Lisboa - a Igreja é chamada a falar do caráter perene "da verdade, com respeito por outras verdades ou com a verdade dos outros" - e comparo-o com o que disse Francisco, quando deu a entender que quando um cristão se diz na posse de certezas absolutas, não está no caminho certo. Aliás, ainda arcebispo de Buenos Aires disse numa entrevista que não tem todas as respostas, "nem sequer todas as perguntas", e está sempre a colocar perguntas a si próprio.

 

É, portanto, um Papa multifacetado…

Sem dúvida. E é preciso acrescentar-lhe um aspeto. É um homem com a experiência de vida da América do Sul, o que lhe permitiu trazer para a centralidade europeia a vivência noutro continente, a sua maior escola. E, insisto, é um jesuíta, com capacidade de exercitar o discernimento ativo, aberto à reflexão a partir de dados concretos e não decidir de forma precipitada ou deixar que outros governem por ele.

 

Na missa de canonização dos pastorinhos, em Fátima, uma das frases mais impactantes do Papa foi quando referiu a igreja «acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica de amor». Esta é uma Igreja com sentimento?

A Igreja de Francisco é uma comunidade de afetos, de sensibilidade e sentimento. Mas, se me permite, o que mais me impressionou nas palavras do Papa em Fátima foi a sua capacidade de agarrar nas narrativas da devoção para por os devotos em saída. Ali não há uma "santinha" para ter favores a "baixo preço", há uma força maternal que chama ao consolo e ao amor. E há uma educação a fazer, no sentido de encaminhar os devotos em direção ao evangelho, sem martírios ou mortificações, mas com "mobilização geral" para a ética do empenho solidário, enquadrando aqui até a inevitabilidade dos sofrimentos. Entre os silêncios do Papa e a euforia dos peregrinos, houve uma mensagem. Temo que não tenha sido devidamente ouvida. Em Fátima, ali onde muitos praticam a experiência individual da fé, Francisco indicou o caminho que não se cansa de indicar... fazer comunidade e partir para as periferias.

 

É dos poucos jornalistas portugueses especializados em assuntos religiosos, apesar de na SIC fazer reportagens de outra natureza. Qual é a mais valia de ser um profissional por dentro destas temáticas?

Eu entendo que a religião é uma dimensão da vida que justifica editorias específicas nas redações. Falo em religião, não apenas em Igreja. Eu tenho ouvido muitas barbaridades na comunicação social, sobre assuntos religiosos. Seja sobre o Islão, sobre o Papa, sobre a Igreja, sobre novas expressões de religiosidade. Muita asneira potenciada nos momentos mais agudos da atualidade, nomeadamente em casos de terrorismo, logo relacionados com uma dimensão religiosa. Não sei se isto é consequência da secularização da sociedade, mas desvaloriza-se o fenómeno religioso, recuperando-o apenas quando este se relaciona com os males do nosso tempo. A falta de formação nas redações para este tema é de tal forma que não sei se o contributo mediático tem ajudado ou prejudicado a resolução de alguns problemas graves, que, com fundo religioso, exigem um necessário enquadramento.

 

Pode concretizar um pouco melhor o seu raciocínio?

Alguns dos problemas que temos hoje, na Europa e no mundo, estão relacionados com a experiência religiosa. Na verdade, da política à economia e à saúde, passando pelo desporto, a religião é transversal a praticamente todas as dimensões da vida. E, nessa perspetiva, creio que se justificaria numa redação, com possibilidades para tal, editorias de religião com jornalistas dedicados a esta área. Da mesma forma que se fazem editorias com profissionais especializados em futebol, novas tecnologias, economia, política, etc.

 

O espaço que a religião ocupa nas escolas é residual. A disciplina de Religião e Moral, enquanto em Espanha conta para a nota, em Portugal é facultativa. É aqui que começa a desvalorização do fenómeno religioso?

Em certa medida, sim. Aliás, basta ver os programas nas áreas de História e Filosofia para perceber que há muito trabalho a desenvolver. Na minha perspetiva há que redimensionar a dimensão religiosa nos programas de História e Filosofia, nomeadamente. Porque a religião cruza-se com a dimensão da cidadania. E agora já não é o jornalista que fala, é o investigador em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona e coordenador do Observatório para a Liberdade Religiosa, e que integra um grupo de trabalho que há muito tempo está a desenvolver, no âmbito da cidadania, uma nova abordagem ao fenómeno religioso na escola.

 

E em que consiste, em concreto, esse projeto?

Sem desvalorizar, pelo contrário, a importância da educação moral e religiosa, seja ela católica ou outra, o que propomos, no âmbito da cidadania, é a criação de uma nova área disciplinar que permita a abordagem científica e transversal do fenómeno religioso, dotando os estudantes de ferramentas para compreender o fenómeno religioso e para facilitar o diálogo social. Ou seja, integrando-o no debate sobre a cidadania e a igualdade. O debate sobre a cidadania e a igualdade tem de conter o fenómeno e a experiência religiosa.

 

Esta iniciativa está em curso numa escola piloto com uma disciplina que designaram por Religiões do Mundo. Vão estender esta espécie de roteiro para o diálogo inter-religioso a mais estabelecimentos de ensino?

Andamos no terreno também com um Roteiro, apoiado pela Secretaria de Estado para a Cidadania, que nos permite o contacto, em registo não formal, com alunos de várias idades. Estamos em fase de aperfeiçoamento para criar os melhores modelos, mas já estamos em contacto com escolas para alargar o projeto, que está a ser muito bem acolhido por onde tem passado.

 

É aí que surge o debate e o conhecimento, nomeadamente através do Projeto VER (Sigla que significa Valores, Espiritualidade e Religião)...

Isso devia ser ainda segredo [sorrisos]. Trata-se precisamente de uma proposta de ação em educação não formal, no âmbito da cidadania. Visa uma sociedade mais esclarecida e com um pensamento mais aprofundado, numa época em que se pensa pouco e demasiado rápido...

 
 
 
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