Entrevista

Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde
‘O SNS foi a melhor construção da democracia’
JCF_6564.jpgA saúde pública e os sistemas de proteção da saúde ganharam relevância estratégica com a crise pandémica. Para Adalberto Campos Fernandes, na segunda fase de desconfinamento importa restabelecer a confiança e procurar alcançar o melhor compromisso possível entre os valores da liberdade e da segurança.
 
Deixou o cargo de ministro da Saúde em 2018. Já se imaginou, neste momento, no ministério da Av. João Crisóstomo ao leme da maior crise sanitária de que há memória?
Integrei o XXI Governo Constitucional durante três anos, entre 2015 e 2018. Tive muito orgulho em servir o país numa pasta tão sensível como é o caso da Saúde. Em cada momento, a realidade é diferente e exige respostas diversas. Creio que ninguém está suficientemente preparado, em nenhuma área setorial de qualquer governo, para situações tão imprevisíveis. Nesse sentido, apenas poderei imaginar a complexidade da situação e a sua dificuldade.
 
Em fevereiro, quando a pandemia chegava à Europa, aconselhou «bom senso e nervos de aço» às autoridades políticas e sanitárias. Passados que foram alguns meses, que balanço faz da gestão da crise nestes domínios?
Creio que a resposta foi muito diversa nos diferentes países. Para tal terá contribuído uma multiplicidade de fatores desde o modo de transmissão local da infeção, o momento do confinamento, a exposição de grupos populacionais mais vulneráveis até às caraterísticas sociais e demográficas das diversas comunidades. Mesmo países com sistemas de saúde integrados, como foram os casos de Itália, Espanha e Reino Unido confrontaram-se com enormes dificuldades. De uma forma geral, a Europa resistiu e respondeu de modo adequado à emergência sanitária global.
 
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) aguentou o embate da primeira vaga do vírus. Esta crise reforçou a sua convicção de que, após um período de desinvestimento, são necessárias políticas públicas na área da saúde?
A presente crise contribuiu para que muitos países, em todo o mundo, se dessem conta da importância dos sistemas de proteção na saúde. Não apenas na dimensão de prestação de cuidados de saúde, mas também no importante papel de vigilância e gestão de riscos emergentes. A saúde pública adquiriu uma relevância estratégica enquanto elemento decisivo na defesa dos países e das suas comunidades. Finalmente, ficou clara a precedência da saúde sobre os restantes domínios da nossa vida comum, em particular, a economia e as finanças.
 
Apesar das suas fragilidades, referiu recentemente que «o edifício do SNS está bem construído», desde a sua fundação. Quais são os pilares inabaláveis?
É verdade. Uma construção sólida com milhares de contributos, ao longo das últimas décadas. Nunca será demais relembrar o contributo corajoso e decisivo de António Arnaut. O Serviço Nacional de Saúde foi, de facto, a melhor construção da democracia. Os seus pilares inabaláveis são estruturados, por um lado, nos profissionais que o fazem todos os dias. Por outro lado, na fortíssima relação de confiança estabelecida com os cidadãos que veem nele o instrumento de coesão social e de redução das desigualdades mais poderoso e mais justo.
 
Refere que o capital humano é a maior riqueza do SNS. Os nossos médicos, enfermeiros e auxiliares são alvo dos maiores elogios, mas globalmente são profissionais mal pagos para as horas de dedicação. Para quando é que o reconhecimento dos profissionais será, para além de retórico, também monetário?
Essa é uma questão recorrente relativamente à qual importará gerar um consenso político na sociedade portuguesa.  A crise financeira de 2008-2011 acarretou um forte impacto no Serviço Nacional de Saúde com grandes restrições ao nível do investimento e dos recursos humanos. A partir de 2016 foi feito um grande esforço de recuperação dos recursos humanos com um acréscimo, muito significativo, de contratação nos diferentes grupos profissionais. Foram concretizadas algumas alterações ao nível das carreiras e dos regimes remuneratórios. Estamos no momento de ir mais longe suportados numa estratégia de médio prazo capaz de valorizar e reconhecer o papel decisivo das carreiras profissionais no desempenho e na qualidade do Serviço Nacional de Saúde.
 
Contudo, nem só da COVID-19 vive o SNS. São vários os relatos de utentes que adiaram a sua ida ao hospital ou que não foram vistos pelo seu médico por motivo da suspensão das consultas. Teme que possa chegar, em óbitos, uma "fatura" pós-COVID?
Infelizmente essa circunstância ocorreu um pouco por toda a parte. A mobilização, quase total, dos recursos para fazer face a um risco desconhecido e de proporções mal definidas teve como consequência o bloqueio, generalizado, da atividade programada. Acresce a circunstância de o clima de preocupação ter incutido receio em muitas pessoas que se afastaram das unidades de saúde. Nesta segunda fase há que repor a confiança e reativar o mais rapidamente possível as respostas do Serviço Nacional de Saúde aos diferentes níveis.
 
O envelhecimento da população e o aumento do número de casos oncológicos colocam à prova o sistema. Perante estes múltiplos desafios, os pactos de regime nesta área são inadiáveis?
Existe, há muito tempo, um pacto de regime implícito, na sociedade portuguesa, traduzido num amplo consenso político. O que falta será maior estabilidade nas políticas públicas, de médio e longo prazo, particularmente no que se refere às estratégias de investimento em infraestruturas e equipamentos, capital humano, investigação científica, inovação e desenvolvimento.
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O atual contexto vai reforçar a importância e o recurso à telemedicina, um âmbito em que Portugal já estava na linha da frente. A relação médico/doente pode estar em risco ou encontra-se, simplesmente, em transformação?
Acredito que o trabalho que vinha a ser desenvolvido, nos últimos anos, no âmbito da telesaúde beneficiará de um grande impulso. É certo que o âmago da relação médico-doente não poderá ser posto em causa no essencial dos seus princípios e práticas. Existem, no entanto, múltiplas potencialidades na telesaúde e telemedicina enquanto complemento útil e eficaz da prática profissional, em saúde, que terão seguramente um grande desenvolvimento.
 
Por falar em transformação, esta nova ordem sanitária está a gerar grandes mudanças na vida em sociedade. Na sua visão, o que é que muda, sem retorno, na nossa forma de estar, de nos relacionarmos e de trabalhar?
A atual crise pandémica interferiu, de forma quase impercetível, na velha ordem mundial pondo em causa equilíbrios geopolíticos, abrindo fissuras no processo de globalização e pondo mesmo em dúvida, nalguns países, os respetivos modelos de organização política e as próprias lideranças. A nível individual e comunitário as sociedades foram expostas à necessidade de um novo compromisso entre liberdade e segurança. Esse será talvez o aspeto mais desafiante que poderá estar a mudar o nosso modo de vida comum.
 
O presidente Donald Trump defende que os Estados Unidos são o maior e melhor país à face da Terra, mas a pandemia deixou a nu as carências de um sistema de saúde desestruturado e que não corresponde às necessidades das pessoas, especialmente as mais pobres. Atualmente, ter um sistema de saúde universal e equitativo é condição indispensável para rotular uma nação de moderna e desenvolvida?
Infelizmente a atual crise sanitária expôs, perante o mundo, as debilidades do sistema de saúde americano. Não deixa de ser paradoxal que a maior economia do mundo, o país com uma das medicinas clínicas de base científica mais avançada, que é líder em investigação e inovação revele tantas fragilidades nas respostas em saúde. A ausência de um sistema de saúde integrado, capaz de assegurar a cobertura geral e o acesso universal ficarão, a partir desta crise, como um sinal de forte necessidade para o futuro nos Estados Unidos da América.
 
É professor da Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Um dos slogans que ouvimos nos últimos meses foi: «todos nós somos agentes de saúde pública.» No cenário de emergência sanitária, os portugueses têm sido, de uma forma geral, bons «alunos»?
Os portugueses foram exemplares na forma como acolheram as regras, como acataram e cumpriram o confinamento e como se têm adaptado a este novo modo de organizar a nossa vida coletiva. Mais do que bons alunos os portugueses são um povo generoso e solidário. Os países fazem sempre a maior diferença pelos seus povos. Neste caso, sem dúvida nenhuma, o sucesso português deveu-se por inteiro ao comportamento de cada um de nós e ao forte espírito de entreajuda e de cidadania responsável.
 
Relativamente ao ensino da Medicina em Portugal, em que medida é que o atual enquadramento de grande pressão clínica vai influenciar a formação dos novos médicos?
O ensino médico em Portugal é muito exigente e conduz à formação de profissionais de grande qualidade. Acredito, no entanto, que a experiência vivida irá enriquecer a experiência de muitos e abrir novos horizontes de conhecimento para o futuro. Tem sido, aliás, impressionante o dinamismo científico relacionado com a COVID-19 e, especificamente, com o SARS-CoV-2.
 
O que é que continua a obstaculizar que uma entidade universitária privada ministre um curso de Medicina no nosso país?
Trata-se de um processo complexo e historicamente muito difícil. Do meu ponto de vista, os critérios relevantes que deverão estar em causa são a qualidade do projeto, o seu mérito absoluto e relativo bem como o valor acrescentado que possa trazer ao ensino médico no nosso país. Trata-se, como é do conhecimento geral, de um processo que passa pelo reconhecimento dos potenciais candidatos por parte da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES).
 
Integra a comissão de emergência permanente da COVID-19, tendo participado na Cidade do Futebol na reunião que o presidente da FPF, Fernando Gomes, manteve com os capitães das equipas da Primeira Liga. Acredita que o "desporto rei" tem condições, mesmo se forem cumpridas as orientações da DGS, para disputar as 10 jornadas que faltam da competição?
Creio que, tal como outras atividades, também o futebol tem condições para iniciar o processo de retoma progressiva da sua atividade. Naturalmente, com um conjunto de limitações que têm como objetivo essencial defender os profissionais intervenientes na competição criando, ao mesmo tempo, condições para retomar as competições. Trata-se, igualmente, de contribuir para a retoma de uma atividade com grande número de seguidores dando, dessa forma, também um contributo para a normalidade desejável que procuramos restabelecer na sociedade.

 

CARA DA NOTÍCIA

Especialista em saúde pública

Adalberto Campos Fernandes nasceu em Lisboa, a 25 de setembro de 1958. Especialista em saúde pública, foi ministro da Saúde entre 2015 e 2018. É professor associado convidado na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa e professor catedrático convidado na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. É doutorado em Administração da Saúde pela Universidade de Lisboa, mestre em Saúde Pública na especialidade de Administração dos Serviços de Saúde pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Presidiu ao conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, que inclui o Hospital de Santa Maria, o maior do país. Integrou o grupo técnico para a reforma da organização interna dos hospitais. Finalmente, fez parte do conselho geral da Universidade de Évora.

Nuno Dias da Silva
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