Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde
‘O SNS foi a melhor construção da democracia’
A saúde pública e os sistemas de proteção da saúde
ganharam relevância estratégica com a crise pandémica. Para
Adalberto Campos Fernandes, na segunda fase de desconfinamento
importa restabelecer a confiança e procurar alcançar o melhor
compromisso possível entre os valores da liberdade e da
segurança.
Deixou o cargo de
ministro da Saúde em 2018. Já se imaginou, neste momento, no
ministério da Av. João Crisóstomo ao leme da maior crise sanitária
de que há memória?
Integrei o XXI Governo
Constitucional durante três anos, entre 2015 e 2018. Tive muito
orgulho em servir o país numa pasta tão sensível como é o caso da
Saúde. Em cada momento, a realidade é diferente e exige respostas
diversas. Creio que ninguém está suficientemente preparado, em
nenhuma área setorial de qualquer governo, para situações tão
imprevisíveis. Nesse sentido, apenas poderei imaginar a
complexidade da situação e a sua dificuldade.
Em
fevereiro, quando a pandemia chegava à Europa, aconselhou «bom
senso e nervos de aço» às autoridades políticas e sanitárias.
Passados que foram alguns meses, que balanço faz da gestão da crise
nestes domínios?
Creio que a resposta foi muito
diversa nos diferentes países. Para tal terá contribuído uma
multiplicidade de fatores desde o modo de transmissão local da
infeção, o momento do confinamento, a exposição de grupos
populacionais mais vulneráveis até às caraterísticas sociais e
demográficas das diversas comunidades. Mesmo países com sistemas de
saúde integrados, como foram os casos de Itália, Espanha e Reino
Unido confrontaram-se com enormes dificuldades. De uma forma geral,
a Europa resistiu e respondeu de modo adequado à emergência
sanitária global.
O Serviço Nacional de
Saúde (SNS) aguentou o embate da primeira vaga do vírus. Esta crise
reforçou a sua convicção de que, após um período de
desinvestimento, são necessárias políticas públicas na área da
saúde?
A presente crise contribuiu para
que muitos países, em todo o mundo, se dessem conta da importância
dos sistemas de proteção na saúde. Não apenas na dimensão de
prestação de cuidados de saúde, mas também no importante papel de
vigilância e gestão de riscos emergentes. A saúde pública adquiriu
uma relevância estratégica enquanto elemento decisivo na defesa dos
países e das suas comunidades. Finalmente, ficou clara a
precedência da saúde sobre os restantes domínios da nossa vida
comum, em particular, a economia e as finanças.
Apesar das suas
fragilidades, referiu recentemente que «o edifício do SNS está bem
construído», desde a sua fundação. Quais são os pilares
inabaláveis?
É verdade. Uma construção sólida
com milhares de contributos, ao longo das últimas décadas. Nunca
será demais relembrar o contributo corajoso e decisivo de António
Arnaut. O Serviço Nacional de Saúde foi, de facto, a melhor
construção da democracia. Os seus pilares inabaláveis são
estruturados, por um lado, nos profissionais que o fazem todos os
dias. Por outro lado, na fortíssima relação de confiança
estabelecida com os cidadãos que veem nele o instrumento de coesão
social e de redução das desigualdades mais poderoso e mais
justo.
Refere que o capital
humano é a maior riqueza do SNS. Os nossos médicos, enfermeiros e
auxiliares são alvo dos maiores elogios, mas globalmente são
profissionais mal pagos para as horas de dedicação. Para quando é
que o reconhecimento dos profissionais será, para além de retórico,
também monetário?
Essa é uma questão recorrente
relativamente à qual importará gerar um consenso político na
sociedade portuguesa. A crise financeira de 2008-2011
acarretou um forte impacto no Serviço Nacional de Saúde com grandes
restrições ao nível do investimento e dos recursos humanos. A
partir de 2016 foi feito um grande esforço de recuperação dos
recursos humanos com um acréscimo, muito significativo, de
contratação nos diferentes grupos profissionais. Foram
concretizadas algumas alterações ao nível das carreiras e dos
regimes remuneratórios. Estamos no momento de ir mais longe
suportados numa estratégia de médio prazo capaz de valorizar e
reconhecer o papel decisivo das carreiras profissionais no
desempenho e na qualidade do Serviço Nacional de Saúde.
Contudo, nem só da
COVID-19 vive o SNS. São vários os relatos de utentes que adiaram a
sua ida ao hospital ou que não foram vistos pelo seu médico por
motivo da suspensão das consultas. Teme que possa chegar, em
óbitos, uma "fatura" pós-COVID?
Infelizmente essa circunstância
ocorreu um pouco por toda a parte. A mobilização, quase total, dos
recursos para fazer face a um risco desconhecido e de proporções
mal definidas teve como consequência o bloqueio, generalizado, da
atividade programada. Acresce a circunstância de o clima de
preocupação ter incutido receio em muitas pessoas que se afastaram
das unidades de saúde. Nesta segunda fase há que repor a confiança
e reativar o mais rapidamente possível as respostas do Serviço
Nacional de Saúde aos diferentes níveis.
O envelhecimento da
população e o aumento do número de casos oncológicos colocam à
prova o sistema. Perante estes múltiplos desafios, os pactos de
regime nesta área são inadiáveis?
Existe, há muito tempo, um pacto
de regime implícito, na sociedade portuguesa, traduzido num amplo
consenso político. O que falta será maior estabilidade nas
políticas públicas, de médio e longo prazo, particularmente no que
se refere às estratégias de investimento em infraestruturas e
equipamentos, capital humano, investigação científica, inovação e
desenvolvimento.
O atual contexto vai
reforçar a importância e o recurso à telemedicina, um âmbito em que
Portugal já estava na linha da frente. A relação médico/doente pode
estar em risco ou encontra-se, simplesmente, em
transformação?
Acredito que o trabalho que vinha
a ser desenvolvido, nos últimos anos, no âmbito da telesaúde
beneficiará de um grande impulso. É certo que o âmago da relação
médico-doente não poderá ser posto em causa no essencial dos seus
princípios e práticas. Existem, no entanto, múltiplas
potencialidades na telesaúde e telemedicina enquanto complemento
útil e eficaz da prática profissional, em saúde, que terão
seguramente um grande desenvolvimento.
Por falar em
transformação, esta nova ordem sanitária está a gerar grandes
mudanças na vida em sociedade. Na sua visão, o que é que muda, sem
retorno, na nossa forma de estar, de nos relacionarmos e de
trabalhar?
A atual crise pandémica
interferiu, de forma quase impercetível, na velha ordem mundial
pondo em causa equilíbrios geopolíticos, abrindo fissuras no
processo de globalização e pondo mesmo em dúvida, nalguns países,
os respetivos modelos de organização política e as próprias
lideranças. A nível individual e comunitário as sociedades foram
expostas à necessidade de um novo compromisso entre liberdade e
segurança. Esse será talvez o aspeto mais desafiante que poderá
estar a mudar o nosso modo de vida comum.
O presidente Donald Trump
defende que os Estados Unidos são o maior e melhor país à face da
Terra, mas a pandemia deixou a nu as carências de um sistema de
saúde desestruturado e que não corresponde às necessidades das
pessoas, especialmente as mais pobres. Atualmente, ter um sistema
de saúde universal e equitativo é condição indispensável para
rotular uma nação de moderna e desenvolvida?
Infelizmente a atual crise
sanitária expôs, perante o mundo, as debilidades do sistema de
saúde americano. Não deixa de ser paradoxal que a maior economia do
mundo, o país com uma das medicinas clínicas de base científica
mais avançada, que é líder em investigação e inovação revele tantas
fragilidades nas respostas em saúde. A ausência de um sistema de
saúde integrado, capaz de assegurar a cobertura geral e o acesso
universal ficarão, a partir desta crise, como um sinal de forte
necessidade para o futuro nos Estados Unidos da América.
É professor da Escola de
Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Um dos slogans que
ouvimos nos últimos meses foi: «todos nós somos agentes de saúde
pública.» No cenário de emergência sanitária, os portugueses têm
sido, de uma forma geral, bons «alunos»?
Os portugueses foram exemplares
na forma como acolheram as regras, como acataram e cumpriram o
confinamento e como se têm adaptado a este novo modo de organizar a
nossa vida coletiva. Mais do que bons alunos os portugueses são um
povo generoso e solidário. Os países fazem sempre a maior diferença
pelos seus povos. Neste caso, sem dúvida nenhuma, o sucesso
português deveu-se por inteiro ao comportamento de cada um de nós e
ao forte espírito de entreajuda e de cidadania responsável.
Relativamente ao ensino
da Medicina em Portugal, em que medida é que o atual enquadramento
de grande pressão clínica vai influenciar a formação dos novos
médicos?
O ensino médico em Portugal é
muito exigente e conduz à formação de profissionais de grande
qualidade. Acredito, no entanto, que a experiência vivida irá
enriquecer a experiência de muitos e abrir novos horizontes de
conhecimento para o futuro. Tem sido, aliás, impressionante o
dinamismo científico relacionado com a COVID-19 e, especificamente,
com o SARS-CoV-2.
O que é que continua a
obstaculizar que uma entidade universitária privada ministre um
curso de Medicina no nosso país?
Trata-se de um processo complexo
e historicamente muito difícil. Do meu ponto de vista, os critérios
relevantes que deverão estar em causa são a qualidade do projeto, o
seu mérito absoluto e relativo bem como o valor acrescentado que
possa trazer ao ensino médico no nosso país. Trata-se, como é do
conhecimento geral, de um processo que passa pelo reconhecimento
dos potenciais candidatos por parte da Agência de Avaliação e
Acreditação do Ensino Superior (A3ES).
Integra a comissão de
emergência permanente da COVID-19, tendo participado na Cidade do
Futebol na reunião que o presidente da FPF, Fernando Gomes, manteve
com os capitães das equipas da Primeira Liga. Acredita que o
"desporto rei" tem condições, mesmo se forem cumpridas as
orientações da DGS, para disputar as 10 jornadas que faltam da
competição?
Creio que, tal como outras
atividades, também o futebol tem condições para iniciar o processo
de retoma progressiva da sua atividade. Naturalmente, com um
conjunto de limitações que têm como objetivo essencial defender os
profissionais intervenientes na competição criando, ao mesmo tempo,
condições para retomar as competições. Trata-se, igualmente, de
contribuir para a retoma de uma atividade com grande número de
seguidores dando, dessa forma, também um contributo para a
normalidade desejável que procuramos restabelecer na
sociedade.
CARA DA NOTÍCIA
Especialista em saúde
pública
Adalberto Campos Fernandes nasceu
em Lisboa, a 25 de setembro de 1958. Especialista em saúde pública,
foi ministro da Saúde entre 2015 e 2018. É professor associado
convidado na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova
de Lisboa e professor catedrático convidado na Faculdade de
Farmácia da Universidade de Lisboa. É doutorado em Administração da
Saúde pela Universidade de Lisboa, mestre em Saúde Pública na
especialidade de Administração dos Serviços de Saúde pela
Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Medicina pela Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa. Presidiu ao conselho de
administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, que inclui o
Hospital de Santa Maria, o maior do país. Integrou o grupo técnico
para a reforma da organização interna dos hospitais. Finalmente,
fez parte do conselho geral da Universidade de Évora.
Nuno Dias da Silva
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