Entrevista

David Borges, jornalista
«Vieira, Pinto da Costa e Varandas já se deviam ter entendido há muito tempo»

DavidBorges_2.jpgEstreia-se aos 70 anos na literatura, mas todos o recordam pela carreira longa e cheia de projetos na rádio, jornais e televisão. Em entrevista, David Borges deixa no ar muitas incertezas sobre o futuro da comunicação social e do futebol português, duas realidades fortemente penalizadas pela pandemia.

«Amor eterno» é o seu primeiro livro. Para quem não leu é uma obra de memórias de uma família - a sua - passadas entre Angola e Portugal: Sílvia, a sua mulher, África, um continente, o jornalismo, uma profissão. É este o triângulo da sua vida e que aqui retrata?
Sim, posso dizer que sim. Três amores eternos definindo a minha vida: a minha mulher Sílvia, Angola e África e o jornalismo de reportagem.
O caso «Luanda Leaks» expôs os anos da liderança de José Eduardo dos Santos e da sua família. Está otimista sobre o futuro do país que o viu nascer e que, no fundo, antecipa no livro quando descreve a viagem, em 2034, das suas netas aos locais onde os avós viveram a sua infância e juventude?
Angola sempre teve tudo para ser um grande país. O problema é que o tempo vai passando e o grande país continua adiado. Mas creio que um dia, não sei se cedo, se mais tarde, Angola será o país sonhado pelos angolanos que nunca quiseram destruição e miséria. Se for em 2034, que seja. E se então as minhas netas visitarem Angola e se deslumbrarem com tudo, isso quererá dizer que Angola encontrou o seu caminho.
Fundou a RDP África e também foi o seu primeiro diretor. Os países de língua oficial portuguesa, que totalizam cerca de 300 milhões de habitantes, estão suficientemente unidos e coordenados para potencializar o seu poder e expressão na cena global?
Não, fazem parte de uma comunidade, mas não se realizam nela. Tentei dar conta da força africana de língua portuguesa, mas não consegui sequer chegar perto do início. Foi quando pensei na criação em rede de uma formidável comunicação, juntando as rádios nacionais num projeto que fizesse convergir para um centro tudo o que fosse importante para o conjunto. Digamos que seria uma "network" envolvendo as rádios nacionais e projetos radiofónicos das comunidades na diáspora. Fizemos uma formidável experiência num dia nacional de Cabo Verde, com a RDP África a juntar-se à Rádio Nacional de Cabo Verde, à RDP Internacional e a entidades centrais dos vários ramos da diáspora cabo-verdiana. Uma emissão que foi escutada em todo o mundo e com importantes resultados.
Foi um dos fundadores da rádio TSF e chegou mesmo a dirigir a rádio de informação. No seu livro, relata a reportagem na Guerra do Golfo, carregando um telefone satélite com 200 quilos. No direto que fez para a rádio, não escondeu a sua emoção pela libertação do povo kuwaitiano. É difícil controlar as emoções e, de alguma forma, a imparcialidade num cenário de conflito?
A minha emoção, no início da primeira transmissão do Kuweit, não teve a ver com a libertação e nesse plano consegui ser frio e objetivo. A emoção resultou do facto de termos conseguido chegar, no momento exato, ao Kuweit, depois de não poucas dificuldades e da pressão do tempo e dos acontecimentos. E, já agora, a emoção também de estar a TSF, nesse momento, numa rotunda do Kuweit, acompanhada de entidades como a BBC e a CNN...
O incêndio no Chiado e o processo de autodeterminação de Timor foram, provavelmente, os dois acontecimentos que mais visibilidade deram à TSF. O criador da rádio foi Emídio Rangel, que conheceu em Angola. Foi o seu lado visionário e iconoclasta que fez a diferença, primeiro na rádio, e mais tarde televisão, na SIC?
Em relação a Timor, pelo envolvimento emocional, tenho reservas. Diria que os momentos fundamentais da TSF foram o incêndio no Chiado e o bloqueio na ponte 25 de Abril.
Para além de ter sido uma grande escola de jornalismo, qual foi o segredo do sucesso da «rádio em direto»?
Uma formidável equipa, de jovens e veteranos, uma disponibilidade total para o trabalho, uma permanente curiosidade intelectual, uma total liberdade, uma total independência de poderes e uma notável liderança de Emídio Rangel.
É paradoxal, mas o jornalismo atravessa, neste momento, uma das suas maiores crises, numa altura em que a informação é um bem precioso e necessário para o esclarecimento do cidadão comum. Que estratégia defende para reabilitar a comunicação social?
A comunicação social está hoje tão pressionada pelas circunstâncias que dificilmente alcançará um futuro que honre o passado. A concentração de entidades, a perseguição do lucro que conduz a muita gente precária que vai substituindo a qualidade e a experiência, a falta de mobilidade e de curiosidade, a dependência de redes sociais e gabinetes de comunicação, a falta de controlo de qualidade, tudo converge para explicar a realidade e a falta de futuro. Mas dirão, talvez, que esta é a visão de um velho com saudades do passado...
Crise de vendas, diminuição da publicidade e a concorrência das redes sociais e do jornalista-cidadão, são ameaças à sobrevivência do setor. A médio prazo, a descontinuidade dos projetos impressos e a aposta, em definitivo, no modelo de negócio digital é a solução em Portugal e no mundo?
Creio bem que o futuro é o negócio digital, mas não vejo que esse seja mais aliciante que o que permanece fora desse plano. E depois, há a nova política de subscrição de sites de comunicação. É compreensível essa política, porque se procura ganhar dinheiro com esse novo negócio. Mas creio bem que a solução seria a da publicidade, se fosse possível e desse para sustentar conteúdos que deviam estar totalmente abertos e a todos. Um consumidor, como eu sou, da comunicação global, consegue subscrever todos os sites de que necessita para se manter bem informado? Eu corro o mundo, «New York Times», «Washington Post», «Le Monde», «El País» e por aí fora, não me é possível chegar financeiramente a todos.
Especialistas advogam que a literacia mediática é a única forma de travar a proliferação das fake news. O que pode o jornalismo e os jornalistas fazerem para combater esta deliberada intenção de desinformar e manipular?
Podem pouco, se as pessoas não tiverem o impulso de buscar a verdade, seja pela sua curiosidade intelectual, pela sua circunstância cidadã ou por arreigada ligação à democracia, à liberdade, à independência e ao seu desenvolvimento humano.
O presidente do PSD, Rui Rio, contestou o apoio do governo de 15 milhões de euros aos órgãos de informação, justificando que as «empresas de comunicação social são empresas iguais às empresas que fabricam móveis, sapatos e têxtil». Subscreve a comparação?
Percebo o dr. Rui Rio e concordo, em tese, com a sua opinião que, aliás, tem vindo a ser alimentada pela própria perda de qualidade que a comunicação social tem vindo a sofrer e basta recordar situações que tiveram desgraçada cobertura - o caso Casa Pia, os incêndios florestais, esta pandemia de agora...
Que diria se se cruzasse com um grupo de estudantes de comunicação social ou de jornalismo: dar-lhes-ia motivação para seguirem esta carreira ou deixaria alguns alertas avisados de um jornalista com décadas de experiência?
De vez em quando, sou convidado para aulas e sempre digo o mesmo, o que já ficou dito atrás. E cito, sempre, o exemplo de Rijszard Kapuscinski, o jornalista-escritor polaco já falecido, que deixou de ser jornalista quando uma vez, propondo uma história, ouviu o seu editor perguntar se achava que essa história poderia vender bem...
É comentador habitual de futebol na SIC e na SIC-Notícias. A pandemia também paralisou o futebol em todo o mundo. A austeridade vai chegar aos ordenados dos jogadores e às transferências de valores estratosféricos?
Tenho para mim que depois da pandemia retornaremos à nossa vida normal e nela o futebol voltará a ser o que foi... Porém, tenho esperança em alguma aprendizagem e não apenas nos nossos gestos de higiene social. Talvez possamos passar melhor sem futebol, talvez se discuta futebol com menos paixão, talvez se valorizem outras coisas importantes da vida...
Os três grandes do futebol português, a braços com grandes dificuldades financeiras, também veem o futuro com apreensão: menos receita de bilhética, menos receita de direitos televisivos, menos receita de merchandising e das próprias transferências. Qual é a saída para a crise?
Veremos quem chega ao fim deste processo com vida, querendo isto dizer... com suporte para o futuro. Tenho apenas dúvidas, muitas dúvidas. Não sabemos por quanto tempo a pandemia nos vai continuar a condicionar. Daqui por quanto tempo poderá voltar a encher-se um estádio? E vai o futebol recuperar todo o público: E vão os patrocinadores continuar a apostar no futebol? Tanto podemos estar de volta ao passado, rapidamente, como podemos estar noutro contexto, muito ou absolutamente diferente. No fundo, como a nossa vida. Como vai ser? Podemos voltar a 2019, é verdade. Mas podemos, também, entrar num tempo novo, com enormes e decisivas diferenças.
Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa e Frederico Varandas terão de enterrar o machado de guerra e entender-se, sob pena de estar em causa a sobrevivência do futebol português?
Já se deviam ter entendido há muito tempo. E não sei se agora isso valerá de muito. Como chegarão os três grandes ao fim deste processo? São enormes as interrogações e nem sabemos se da pandemia sairão grandes como eram...
O presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Fernando Gomes, escreveu um artigo em que alerta que o futuro do futebol não está garantido. É um apelo a um começar de novo, à sustentabilidade dos clubes e até ao refrear da paixão dos adeptos, terminando com a frase «as pessoas conseguem viver sem futebol.» Será que conseguimos?
O presidente da FPF veio, finalmente, dar conta dos problemas que tantas vezes e durante tanto tempo foram referidos. Nunca se importou muito com os problemas e agora, como entidade de cúpula do futebol português, viu-se obrigado a liderar, porventura contra a sua própria vontade, este cortejo de sofrimento que o futebol está a formar e vai seguramente engrossar...

CARA DA NOTÍCIA

Uma referência da «rádio em direto»

David Borges nasceu a 8 de junho de 1949, em Ondjiva, capital da província do Cunene, no extremo sul de Angola. Cresceu no Lubango, província da Huíla, entrando, na adolescência, para os quadros do Rádio Clube da Huíla. Fugiu para Portugal em março de 1976, empurrado pelo sangrento conflito angolano e depressa entrou no jornalismo português, trabalhando na imprensa (jornal «Record»), publicação da qual foi diretor, na rádio (Rádio Comercial, Antena 1, TSF e RDP África) e na televisão (como colaborador da SIC). No universo SIC, para lá de «O Dia Seguinte», apresentou «Os Donos da Bola», «Linha da Frente» e o «Expresso do Oriente.» Foi cofundador da rádio TSF, a «rádio em direto», da qual foi chefe de redação e diretor. Fundou a RDP África e foi o seu primeiro diretor. Dirigiu ainda a revista semanal de desporto «Doze». Ganhou um Prémio Gazeta (jornalismo de rádio) com três reportagens em Moçambique. Foi, igualmente, o primeiro Provedor dos Leitores de um jornal português, o «Record». Com o livro «Amor Eterno», da Oficina do Livro, David Borges estreia-se na literatura com um livro em homenagem à mulher, falecida em 2017 e que passa em resumo quatro décadas de memórias, da família, de África e do jornalismo.

Nuno Dias da Silva
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