Sobrinho Simões, médico e investigador
Um em cada três portugueses vai ter cancro
É uma
das mentes brilhantes do país e o rosto do IPATIMUP, uma reputada
instituição de investigação científica, com projeção mundial. Na
primeira pessoa, Sobrinho Simões faz a "radiografia" do estado da
nação.
O
IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular e Celular
da Universidade do Porto), que dirige desde 1989, é uma instituição
de excelência e uma referência na ciência mundial. Que papel
desempenha na sensibilização da educação para a saúde da
comunidade?
O envolvimento na educação
para a Saúde das pessoas é uma das missões mais importantes do
IPATIMUP que comemora este ano, como se deduz da sua pergunta, 25
anos de vida. Esse envolvimento passa por ações de formação e de
trabalho laboratorial com muitas centenas de professores e dezenas
de milhares de alunos. Em abril teremos o aluno 35 mil no
Laboratório Aberto, que só iniciou as suas atividades em 2007. Nos
outros programas, por exemplo com a Comunidade Escolar da Trofa, ou
no âmbito do Programa Ciência Viva em Férias, treinámos, desde
meados da década de 90, milhares de alunos de todos os graus de
ensino. A tentativa de melhorar a literacia das pessoas em relação
à saúde e à doença, tornando-as sujeitas da conservação da "sua"
saúde, passa também por ações de divulgação com vídeos construídos
no IPATIMUP e com a presença dos nossos investigadores em escolas e
centros de saúde.
O
instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S), um consórcio
de investigação na área da saúde, que o IPATIMUP integra, é o
projecto que se segue, previsto ser lançado no início de 2015. Que
virtualidades destaca neste supercentro de investigação, sediado na
cidade do Porto?
A entrada em funcionamento do
Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do
Porto (I3S-UP), resultante do consórcio entre a Universidade do
Porto, o IBMC, o INEB e o IPATIMUP, em 2015, é uma velha aspiração
- assinámos o contrato para a sua criação no início de 2008. O I3S
permitirá, por um lado, consolidar as áreas em que o IPATIMUP
já é, passe a imodéstia, muito forte: investigação de translação em
cancro com ênfase nos cancros do estômago, tireóide, mama e
intestino e investigação em genética das populações e, por outro,
desenvolver a interação com a investigação fundamental em ciências
da vida, em biomateriais e regeneração tecidular, e com a
investigação clínica. Estamos convencidos que a
articulação do I3S-UP com a Faculdade de Medicina, o CHSJoão e o
IPO-Porto permitirá criar, em conjunto com outras instituições de
assistência (centros de saúde e instituições de cuidados
continuados e paliativos) e de ensino superior (outras Faculdades e
Unidades de Ensino Superior ligadas à Saúde) um exemplo
paradigmático de Centro Académico das Ciências da Saúde, capaz de
prestar uma excelente assistência a todos os níveis (desde a saúde
pública e a medicina familiar aos cuidados pós-hospitalares) e de
utilizar essa excelência profissional como âncora de um ensino
pré-graduado e pós-graduado de qualidade.
Em
que medida é que os cortes na investigação vão afetar a sua área de
atuação, as ciências da saúde, e em especial o "seu"
IPATIMUP?
O corte de 45 por cento no
financiamento básico do IPATIMUP, por parte da Fundação para a
Ciência e Tecnologia (FCT), foi terrível e obrigou-nos a "mudar as
agulhas" em diversos aspetos: aumentámos a investigação contratada
com a indústria farmacêutica, melhorámos a performance nos
concursos internacionais, aumentámos a prestação de serviços e
temos procurado aumentar a filantropia. A situação é assustadora
mas é provavelmente menos má no IPATIMUP do que em muitos
outros institutos e centros de investigação porque as Ciências da
Saúde resistem geralmente melhor. Aliás, é pela especificidade das
Ciências da Saúde, que há muito vimos pugnando pela criação de um
equivalente ao Medical Research Council de muitos países
desenvolvidos. Seria uma agência financiadora semelhante à FCT (mas
melhor, pois a FCT atual é uma desgraça) que se ocuparia da
investigação básica, de translação e clínica nas Ciências da Saúde.
Vamos ver se a ideia virá algum dia a ter pernas para
andar.
Um
estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que em 2035
sejam diagnosticados 24 milhões de novos casos de cancro por dia.
Com tratamentos cada vez mais caros, e menos recursos, a
única solução é apostar na prevenção?
A prevenção não é a única mas
é seguramente a melhor aposta para enfrentar o aumento do número de
pessoas com cancro (nesta altura, um de cada três portugueses terá
cancro durante a sua vida enquanto, no futuro, um de cada dois
portugueses nascidos nas próximas décadas virá a ter um ou mais do
que um cancro). No conceito de prevenção estou a incluir a
prevenção primária, isto é, a diminuição do risco de vir a
desenvolver cancro através do comportamento (não fumar, não beber
em excesso, não engordar em demasia, fazer exercício físico
regular, vacinar-se contra o vírus HPV e o vírus da hepatite B), e
a prevenção secundária, que é sinónimo de diagnóstico precoce,
através de métodos de rastreio (citologia vaginal, mamografia,
pesquisa de sangue oculto nas fezes ou colonoscopia). O controlo da
doença cancerosa avançada também vai continuar a melhorar, não
curando os doentes mas transformando o cancro numa doença crónica,
através da melhoria da radioterapia e dos tratamentos biológicos e
da imunoterapia cada vez mais personalizados. Apesar destas
melhorias, e voltando ao princípio, temos é de prevenir. Aliás este
é um conselho fundamental para todas as áreas da medicina - antes
de se preocupar em curar a(s) doença(s) preocupe-se em conservar a
saúde!
O
cancro é o preço a pagar pela capacidade de evolução do homem?
Chegaremos a um ponto em que esta será uma doença
crónica?
O enunciado da pergunta
contém a resposta. O cancro "do" homem, fruto da desregulação do
crescimento celular e da aquisição de imortalidade (ou
quase-imortalidade) das células é o preço a pagar pela nossa
condição de seres vivos (ainda) em evolução. Esticámos demais a
duração da vida e demos cabo do ambiente (tabaco, poluentes
atmosféricos, alimentos carcinogénicos, disruptores endócrinos,
etc) criando as condições para que ocorram cancros como
consequência de erros genéticos espontâneos ou induzidos por
tóxicos em células com capacidade de reparação cada vez mais
diminuta à medida que a idade avança.
Defende que as principais causas para o cancro se
devem a agressões ambientais e apenas uma percentagem residual a
fatores hereditários. Sabendo que nos meios urbanos, o stress, a
poluição e um estilo de vida desregrado imperam, é exagero admitir
que as grandes urbes são autênticas incubadoras de doenças
cancerosas?
É verdade que cerca de 95 por
cento dos cancros se devem sobretudo a causas ambientais, embora
haja quase sempre uma maior ou menos predisposição hereditária. A
poluição atmosférica causada pelo fumo do tabaco, automóveis,
indústrias, lixo rico em plásticos, etc. é causadora de um grande
número de cancros e poderá levar a um aumento da sua incidência em
ambientes urbanos. Não está provado que a vida agitada e o stress
aumentem o risco de cancro a não ser através da alteração dos
comportamentos (por exemplo: gente que passa a vida sentada, a
comer doces e a beber para aguentar ; o stress…). Suponho que não
está provada a maior incidência de cancro nas pessoas que vivem nas
cidades em relação às que vivem no campo. Como a esperança de vida
é geralmente maior nas pessoas que vivem em zonas rurais (desde que
não abusem do sal e não se exponham demais ao sol), como há muita
gente do interior que fuma e bebe em excesso e como existem
substâncias cancerígenas em pesticidas e nos produtos usados para
conservar os alimentos em áreas menos urbanizadas, estou convencido
que as coisas são capazes de se equilibrar. Há depois diferenças,
isso sim, no acesso a rastreios e ao diagnóstico precoce que
poderão levar a um aumento da mortalidade por cancro em populações
afastadas dos meios urbanos.
Ultimamente temos tido conhecimento de muitos jovens, na
faixa etária dos 20/30 anos, acometidos por doenças cancerosas,
algumas delas que se revelam letais. Esta tendência significa que a
aparição dos cancros não escolhe idades?
É verdade que está a aumentar
a incidência de cancro em crianças, adolescentes e adultos jovens.
Há várias razões para isso. Desde logo, porque há muitas famílias
com cancros hereditários em que a prevenção, por exemplo, por
cirurgia profilática, resolveu a situação; estas pessoas não tendo
morrido em idades jovens podem ter, e têm, filhos com maior risco
de desenvolver cancro. Depois, porque os fatores de risco exógenos
sejam a obesidade, o tabagismo e/ou excesso de álcool, atuam em
pessoas cada vez mais jovens. E, finalmente, porque melhorámos a
nossa capacidade de diagnóstico o que faz com que situações que
anteriormente poderiam passar despercebidas são agora detetadas e,
graças aos meios de comunicação social, amplificadas em termos de
divulgação.
A relevância individual e
social deste assunto é potenciada pelo facto de os cancros em
adolescentes e adultos jovens, para além do interesse que despertam
pelo seu anacronismo, serem geralmente (muito) mais agressivos do
que os cancros em doentes com idade avançada.
Estreou na TVI 24 um programa chamado "28 minutos e 7
segundos de vida", em que Manuel Forjaz, doente oncológico há cinco
anos, relata a sua experiência diária, procurando passar a mensagem
que ter cancro não é uma fatalidade. Não sei se já teve
oportunidade de ver o programa, ainda assim pergunto-lhe o que
acha, em linhas gerais, de um programa com este conteúdo? Pode ser
motivador para os portadores destas doenças?
Não vi ainda o programa mas
já me falaram dele. Tenho a certeza que é importantíssimo que as
pessoas percebam que o diagnóstico de cancro não é uma sentença de
morte e que vale a pena acreditar que o doente pode ser
curado se o cancro for diagnosticado numa fase precoce e que, mesmo
em casos mais avançados, a doença pode, muitas vezes, ser
transformada numa doença crónica. Sou, por outro lado, totalmente
contra declarações do género "Venci o cancro" ou "É preciso muita
força de vontade para vencer o cancro". Acho estas afirmações pouco
inteligentes e uma maldade para todos quantos tendo a pouca sorte
de ter uma doença cancerosa não tratável, se sintam "ainda por
cima" uns falhados por não terem força de vontade suficiente para
conseguir "vencer o cancro".
Corremos o risco de recuar décadas com o desinvestimento em
investigação científica em Portugal?
Sim, e quando isso suceder
deixaremos de ser uma sociedade do mundo ocidental.
Paul
Nurse, Prémio Nobel da Medicina em 2001, disse ao jornal "i" que
«cortes nas bolsas dá ideia de que fazer ciência é como jogar no
casino». Concorda?
Concordo, pois houve
concursos em que a taxa de aprovações oscilou entre 5 e 9 por
cento. Isto é entre 20 candidato foi escolhido um ou, quando muito,
dois. Dado o nível muito bom da maioria das candidaturas, a seleção
de um ou dois em 20, 21 ou 22 é pura sorte, do género "moeda ao
ar". A coisa é ainda pior se nos lembrarmos da falta de
transparência nos concursos. Não sei como Paul Nurse caracterizaria
a situação se soubesse disto mas calculo que não faria uma
apreciação simpática acerca da competência desta equipa da
FCT.
Milhares de jovens qualificados abandonam terras lusas em
busca de uma oportunidade noutras paragens. É uma geração
promissora, e com formação ministrada e paga "made in Portugal",
que vai contribuir para a riqueza e o progresso de outros países.
Sente-se frustrado quando se admite, de forma resignada, que este
país não é para jovens?
Sinto-me mais assustado e
triste do que frustrado. Esses jovens são bons, estão bem
preparados e vão triunfar na sua grande maioria. Tenho muita pena
que os benefícios desse triunfo não se reflitam diretamente em
Portugal. Mas nós, que vivemos em democracia há 40 anos e já
elegemos não sei quantos governos, deixámos que o sistema
partidocrático se estabelecesse e se esclerosasse, isto é, somos
todos nós os principiais culpados da situação.
O
tridente investigação - universidade - emprego está seriamente
ameaçado?
Está. Sobretudo se as
empresas não decidirem incorporar mais valor nos seus
processos e melhorar a qualidade dos seus recursos humanos, e se as
universidades e os institutos de investigação, pelo seu lado, não
conseguirem interagir mais entre si e com as empresas. Além da
fragilidade do nosso tecido empresarial é impressionante a
dificuldade que as universidades têm sentido para incorporar
harmónica e sinergicamente, no seu seio, os institutos de
investigação e os institutos de interface. Espero que os bons
resultados que decorrerão, espero, da integração plena do "I3S" no
tecido "Facultário" da Universidade do Porto se torne um exemplo
concreto das vantagens deste processo para todas as instituições
envolvidas, sejam faculdades, sejam institutos de investigação,
sejam hospitais, sejam empresas do universo do Health Cluster. É
claro que para tal será necessário que o atual modelo de consórcio
dê lugar a uma única instituição de investigação, inovação e
pós-graduação.
Disse
que esteve governo estava a fazer uma «destruição criativa». De que
modo?
Ao fragilizar as instituições
de ensino superior e de investigação de uma forma cega, com cortes
transversais muito acentuados, o governo está a destruir o
"tecido". Isto é, o governo não fez qualquer avaliação
institucional, nem se preocupou em proteger e consolidar o que
funcionava e reformular e/ou extinguir o que não funcionava. O
"criativo" vem da crença que é possível importar uma dúzia de
génios e pô-los a florescer numa terra de ninguém.
Afirmou em entrevista que nos concedeu há cerca de seis anos
que «a grande revolução em Portugal vai acontecer quando
conseguirmos que as atividades letivas nas escolas, nos liceus e
nas universidades tenham uma forte componente científica».
Continuamos distantes desse momento?
Estamos infelizmente muito
mais afastados, não só por razões financeiras - maior número de
alunos por turma e menos dinheiro para disciplinas de laboratório -
como também pela contínua destruição do entusiasmo e da autoridade
dos professores. É trágico que em Portugal se dê mais importância
ao "saber retórico" do que ao "saber fazer" (passe a vulgata) e que
não tenhamos percebido que a Ciência (e as Ciências) é (são) o
elemento mais determinante da cultura do século XXI.
O
coordenador do Programa Nacional de Doenças Oncológicas (Nuno
Miranda) disse em entrevista que «os portugueses têm de dizer
quanto querem gastar em saúde». No atual contexto, é inevitável o
racionamento na área da saúde ou a saúde devia ser o único setor
imune à austeridade?
Estou totalmente de acordo
com o Doutor Nuno Miranda. Precisamos de interiorizar que a Saúde
tem custos e que, como os recursos são finitos, temos de decidir a
melhor maneira de os utilizar. Tal significa estabelecer
prioridades, distinguir o essencial do acessório, expulsar os
vendilhões ("Curamos o seu cancro com uma sessão de radioterapia de
meia dúzia de minutos", "Tratamos doenças cancerosas avançadas com
sucesso usando vacinas de células dendríticas" e sordidezes
paralelas a la Fradique) e ter um plano coerente de racionalização
(Não de racionamento). Deveríamos começar pelo estabelecimento da
Rede de Referência Oncológica Nacional e pela melhoria da Rede de
Bancos de Tecidos e Tumores e, ao mesmo tempo, importar as boas
práticas de países mais avançados do que o nosso.
O
bastonário da Ordem dos Médicos defende menos alunos nos cursos de
Medicina e alerta que dentro de alguns anos nove mil médicos podem
estar no desemprego. Defende este rumo de forma a recuperar algum
prestígio perdido da classe?
Que vai haver desemprego
médico (e grande) ninguém tem dúvidas. Como já há desemprego de
médicos dentistas, farmacêuticos, enfermeiros e técnicos de saúde.
Felizmente os nosso profissionais são bem preparados e têm
encontrado (bons) empregos no estrangeiro. Do que fica dito e da
necessidade de continuar a preparar bons profissionais - é
impossível fazê-lo, por exemplo, com 300 novos alunos todos os anos
nas nossas faculdades de Medicina de maior dimensão - resulta que
temos de planificar o futuro dos diferentes cursos na área das
Ciências da Saúde em função das necessidades previsíveis e da
capacidade instalada. No entanto, nada impede que algumas
instituições que tenham "vagas", um bom corpo docente, qualidade
acreditada e vontade, passem a formar profissionais para países
estrangeiros.
O estabelecimento
de numerus clausus mais apertados nos diferentes cursos - e não só
em Medicina - deve ser feito com base nas premissas anteriores
(previsão das necessidades e capacidade formativa) e não para
recuperar o prestígio de qualquer classe. Um parêntesis para
referir que a tendência será no sentido de criar cada vez mais
equipas multidisciplinares com hierarquia técnica e papeis
relevantes para enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais,
etc. Mais do que discutir separadamente o problema de cada
instituição de ensino superior ligada à Medicina, é fundamental
reconhecer a especificidade dos cursos na área das Ciências da
Saúde pela necessidade de assegurar o treino profissional. Esta
necessidade e o reconhecimento do valor das sinergias e da
qualidade faz com que se devesse avançar para organizações em que
hospitais universitários constituíssem com as respetivas
faculdades e/ou escolas superiores e os respetivos institutos de
investigação interfaculdades, centros académicos de ciências da
saúde. Estes centros deverão ser o nó de uma rede com Hospitais
Afiliados (IPOs, outros Hospitais Gerais ou Especializados),
Centros de Saúde e Unidades de Saúde Familiar, Unidades de Saúde
Pública e, a jusante, Hospitais /Unidades de Cuidados Continuados e
Paliativos. Este modelo pressupõe a existência de um sistema
informático comum (e bom!) e a resolução do problema da articulação
da carreira docente com a carreira médica e com outras carreiras
"na" Saúde. É indispensável avançar na regulação desta realidade
que se pode resumir, "sobressimplificadamente", do seguinte modo:
os profissionais que trabalham nos hospitais universitários
têm especificidades de trabalho e objetivos diferentes dos
profissionais que trabalham em hospitais não universitários que
justificam diferenças, nomeadamente no que se refere a um menor
"workload" da rotina hospitalar. Estas "diferenças" deverão
traduzir-se na obrigatoriedade da participação no ensino pré
e pós-graduado e na prática de investigação científica com
desejável aquisição de graus académicos. Aviso à navegação: nem o
ensino nem o doutoramento obscurecem a necessidade dos
profissionais dos hospitais universitários serem, antes de mais,
excelentes em termos
assistenciais.
Por
sermos um país com um défice de cientificidade, impera o senso
comum, a retórica e as opiniões avulsas das dezenas de treinadores
de bancada que enchem os ecrãs televisivos. Esta forma de estar,
para além de raízes culturais, tem na base lacunas educativas de
muitas décadas?
São todos os fatores que
enumera (e mais alguns), em conjunto, que explicam o
"estado-das-coisas". As lacunas educativas de muitas décadas
condicionam a nossa cultura e a nossa prática. Sempre fomos um país
pequeno, periférico, marítimo, pobre, com bom clima e mau solo.
Orograficamente muito difícil, com "montes e vales". Neste caldo
desenvolvemos uma sociedade de altíssimo contexto (somos todos
primos, genros e cunhados uns dos outros, e associamo-nos em
sociedades secretas ou semi-secretas de diferentes matizes que se
estendem do religioso ao politico), habitada por uma gente
desconfiada e minifundiária. A escravatura associada aos
Descobrimentos e a Inquisição são duas nódoas particularmente
negras na nossa história. É natural que a religião católica tenha
contribuído para o tal "estado-das-coisas", não tendo conseguido
impor a importância dos valores. As elites também não e os partidos
políticos ainda menos. O altíssimo contexto e a promiscuidade
tornam impossível distinguir o essencial do acessório e acabaram,
se é que elas alguma vez existiram, com a avaliação idónea e a
recompensa ao mérito. Acho que merecemos ter os "reality shows" que
temos, assim como treinadores de bancada e comentadores às dúzias,
para já não referir os mentirosos esporádicos ou compulsivos que a
sociedade tolera e muitas vezes premeia. É pena porque há muitos
jovens portugueses que são (muito) inteligentes e trabalhadores e
poderiam ser diferentes se nós fossemos diferentes. Não
somos.
Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados