Entrevista

Laborinho Lúcio, ex-Ministro da Justiça
A justiça não é imune ao erro

laborinho.jpgO juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, Laborinho Lúcio, defende que o setor precisa de políticas, em vez de medidas, devidamente conjugadas com uma revisão constitucional. O presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho considera que o ensino superior está «a reencontrar o seu melhor caminho», mas ainda subsistem «problemas sérios» que importa eliminar.

É reconhecida a sua intensa participação em movimentos cívicos, nomeadamente na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Um estudo recente indica que 29 mulheres foram assassinadas e 39 foram vítimas de tentativa de homicídio, em 2015. Na sua opinião, onde está a raiz do problema?

Seria um erro, procurarmos isolar as «causas» da violência doméstica. Em vez de causas, devemos falar de fatores. Por um lado, a afirmação dos direitos da mulher introduziu uma cultura de igualdade que muitos, infelizmente, não interiorizam. A passagem de uma família autocrática e hierárquica, para uma família democrática e heterárquica, nem sempre é acompanhada por sujeitos dispostos a serem protagonistas saudáveis da mudança e, assim, reagem muitas vezes violentamente às afirmações de autonomia e de liberdade individual daqueles que durante muito tempo se haviam recolhido numa posição de submissão. Por outro lado, o constrangimento de uma comunidade construída sob o signo da competição, com sequelas nefastas ao nível do emprego, da estabilidade económica, da segurança quanto a valores essenciais da vida em sociedade, é, só por si, fator de descontrolo, de agressividade e, no limite, de violência grave. Finalmente, o isolamento das famílias, fechadas num privatismo, querido ou imposto pelas circunstâncias, contribui também como facilitador da violência dentro de portas onde muitos entendem ainda não dever imiscuir-se.

Seria, porém, incorreto ficar por aqui. Este é um tema de uma grande complexidade que, obviamente, não pode encontrar resposta numas breves palavras como estas.

Fazem falta mais campanhas de sensibilização?

Esse é um domínio onde muito tem sido feito. Em todo o caso, tendo em vista os resultados, sempre poderemos dizer que mais campanhas de informação, sensibilização e prevenção nunca serão excessivas.

Para além da violência de género, as agressões visando crianças e jovens (algumas mortais, como o caso do adolescente de Portimão) têm crescido. É exagero dizer que tratamos mal as nossas crianças? Que papel pode ter a escola para prevenir situações desta natureza?

Essa é outra face do mesmo problema. A violência sobre as crianças não se traduz apenas em violência no seio da família, mas é aí que ela ocorre ainda com mais frequência. Há hoje, entre nós, uma rede claramente melhorada com vista à proteção dos direitos da criança. Do trabalho de um número muito significativo de técnicos tem resultado um imenso ganho de causa no combate aos maus tratos, à negligência, ao abandono e aos abusos que vitimam as nossas crianças. Isso não impede, porém, de dizer que muito há ainda a fazer. Desde logo, no plano cultural, levando as populações a interiorizarem os direitos da criança. Não bastam as grandes proclamações sempre que nos confrontamos com situações, algumas trágicas, de violência sobre as crianças e os jovens, é fundamental também que, no dia-a-dia, sejamos agentes ativos do respeito que lhes é devido, a elas e aos seus direitos. Muito do que disse ao responder à sua primeira pergunta cabe também aqui. Ora, como é fácil de compreender, a escola tem e deve ter um papel decisivo neste campo. A matéria da violência doméstica, em geral, aquela que é exercida entre cônjuges, ou sobre as crianças e os jovens, e sobre os velhos tem de passar a figurar nos currículos escolares e ser tema de encontros a promover pela escola com pais, encarregados de educação e cidadãos em geral. Do mesmo modo, o estudo dos direitos da criança mostra-se fundamental, tanto na formação de professores, como enquanto matéria curricular a trabalhar em contexto de aula. É essencial que prestemos uma especial atenção ao modo como olhamos as nossas crianças. Numa sociedade altamente pressionada, corre-se o risco de desleixar o que não exerce pressão, e as crianças não têm poder para o fazer. Cabe-nos, a nós, não permitir que assim aconteça.

laborinho2.jpgFoi um magistrado de carreira, agora já aposentado. Que memórias guarda desse tempo?

Isso seria o bastante para um bom livro de memórias. É muito difícil isolar uma meia dúzia de recordações que sirvam para responder à sua pergunta. Diria, numa síntese necessariamente grosseira e pouco significativa, que guardo na minha memória a imagem de muitos homens e mulheres marcadas pelas mais diversas circunstâncias da vida e sobre cujos comportamentos eu tinha de agir, aplicando a lei. Durante toda a minha «carreira» como magistrado essa foi sempre a grande interpelação, isto é, como aplicar a lei por forma a ligá-la à realidade, não desvirtuando aquela, mas não negando a crueza da vida e olhando sempre aos efeitos que da minha ação resultavam para as pessoas e para a sociedade em geral. Esta é, para um juiz, uma tarefa sempre inacabada, daí que a escolha como memória, porque ela permanece, mesmo para lá do exercício prático da profissão.

A justiça atualmente tem muito mais visibilidade do que tinha no seu tempo, nomeadamente quando exerceu o cargo de ministro do setor. A exposição mediática expôs com crueldade as fragilidades e originalidades da justiça portuguesa?

Um dos objetivos que tracei para a minha ação como ministro da Justiça, foi exatamente o de abrir a Justiça ao Cidadão. Torná-la transparente, fazer com que a Justiça se transformasse em coisa comum, como ela deve ser tida e entendida. Sempre afirmei que o Cidadão é o vértice do sistema de Justiça. Só que, a tal afirmação, importava dar consequência prática. Foi nessa linha, aliás, que criei o Programa Cidadão e Justiça, que funcionou durante todo o tempo durante o qual estive no Ministério. É claro que a exposição mediática a que hoje assistimos, veio expor as fragilidades da Justiça portuguesa. Nem sempre da forma mais correta, importa sublinhá-lo, o que contribui, não raras vezes, para que se crie uma perceção errada do que ela é, e de como funciona. Esse é o risco que importa incorporar quando o que está em causa é a liberdade de informação e o direito que os cidadãos têm ao conhecimento da forma como os Poderes do Estado são exercidos. Julgo, por isso, que os excessos que daqui resultam são mais do que compensados pelos benefícios que se retira da maior visibilidade da Justiça e do seu funcionamento. O conhecimento é, porém, aqui, decisivo. Por um lado, nem sempre se critica conhecendo, e isso é mau. Do mesmo modo que o desconhecimento acaba por constituir terreno fértil para a desinformação e para a formação de perceções erradas. Por outro, também nem sempre, por dentro das instituições, se aceita a crítica e se age de acordo com a boa razão desta. É, pois, corrigindo ali e aqui que conseguiremos crescer como comunidade culta e responsável. Pelo caminho, por entre vícios e virtudes, não creio que a exposição mediática deva ser reconduzida ao terreno onde proliferam apenas os vícios. A solução não está, pois, em impedi-la, mas sim em procurar reduzir os efeitos perversos que também produz. Aliás, é a exposição das fragilidades e originalidades da nossa Justiça que permitirá ultrapassar as primeiras e fundamentar as segundas.

Os portugueses têm motivos para acreditar na sua Justiça e nos seus agentes?

Não tenho dúvidas em responder afirmativamente. Importa, todavia, não esquecer que a administração da Justiça não é uma atividade de ciência certa, pelo contrário e, por isso, não é imune ao erro. Tal, porém, nada tem que ver com a sua fiabilidade que, repito, como regra, julgo dever ser-lhe reconhecida. Creio mesmo que essa não pode deixar de ser uma tarefa a empreender entre nós. Não sou nada favorável ao culto da instituição. Mas, da mesma forma, censuro o desmoronamento, muitas vezes gratuito, das instituições. Nenhuma instituição, nomeadamente as instituições do Estado, deve ser subtraída à crítica dos cidadãos. Mas importa que esta seja uma crítica consciente e responsável, o que, neste caso, nem sempre se verifica.

Como ex-ministro da Justiça, assume, com frontalidade, a sua quota parte de responsabilidade pelo que não corre bem na justiça. Pensa que para credibilizar os cargos de natureza pública fazia falta essa assunção de responsabilidades por todos os governantes depois de abandonarem os cargos?

Quem fez todo o seu percurso público ligado à Justiça, como magistrado, judicial e do Ministério Público, responsável pela formação de magistrados, Ministro da Justiça e deputado à Assembleia da República, não pode jamais deixar de se considerar, em parte, responsável pelo que não corre bem na Justiça. Aliás, só assim, poderá aceitar-se que, do mesmo modo, reivindique uma boa parte da responsabilidade por tudo aquilo que nela não corre mal. Tenho para mim que o exercício da ação governativa não deve apenas ser recordado pelos próprios, enaltecendo os êxitos que, muito legitimamente, se atribuem. Julgo mesmo que a experiência dos seus fracassos e o reconhecimento público destes poderia contribuir decisivamente para a melhoria da decisão política. Não, necessariamente, para confessar pecados, mas para dar testemunho dos constrangimentos que, nesses casos, impediram o sucesso. Nem sempre temos meios para o que queremos realizar. Nem sempre conseguimos que o resultado das nossas medidas seja o que fora imaginado e, por último, nem sempre acertamos quando decidimos. Por que razão não nos dispomos, então, a reconhecê-lo e dar conta dos fatores que determinaram os insucessos, contribuindo, assim, para que estes não perdurem como impedimento ao êxito de quem nos sucede? Não creio que, daqui, resulte qualquer desprestígio para o governante que assim proceda. Ao invés, acredito que isso apenas o dignifica. Julgo mesmo que é por se não agir desse modo que acabou por se instalar o hábito de não valorizar a opinião daqueles que, no passado, exerceram cargos políticos, não sendo raro serem esses criticados por não terem feito no passado aquilo que dizem agora dever fazer-se. São, afinal, excelentes experiências anteriores que acabam por perder-se na voragem do discurso político e da opinião mais apressada. E é pena que assim seja.

Lecionou no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), entidade que forma os juízes. Um dos seus lemas era que o julgamento é uma peça de teatro. Quer explicar essa dinâmica?

Não se trata de considerar que «o julgamento é uma peça de teatro». Claro que não é. O que existe é uma profunda relação histórica entre o Teatro e a Justiça. Relação que se foi sempre mantendo ao longo dos tempos, umas vezes com implicações diretas de um na esfera do outro, outras vezes como mera curiosidade extraída das coincidências que era possível encontrar nas práticas de ambos. Coisa diferente é a expressão da autoria de Luis Francisco Rebello segundo a qual «o palco é sempre um tribunal», sendo que sobre ela, aí sim, eu desenhei outra, perguntando se não será «um tribunal também um palco?». E esta sim, era matéria que tratávamos, ainda que ao de leve, no Centro de Estudos Judiciários.

É um firme defensor da revisão da Constituição. O que considera imperioso mudar?

Também aí a resposta não consegue caber no âmbito necessariamente restrito desta entrevista. Direi apenas que entendo que importa rever o modelo de gestão das magistraturas, caminhando para uma solução de corresponsabilização e de cooperação entre os vários órgãos de soberania, e abandonando a atual solução de completa autonomia entre os diversos sectores da Justiça, uns em relação aos outros, e de todos relativamente aos restantes órgãos do Estado. Entendo que o quadro constitucional em vigor tende a voltar-se contra as próprias instituições da Justiça que, interpeladas hoje pelo lado da sua responsabilidade, vêm a encontrar-se sozinhas, fechadas no reduto da sua independência, aí sofrendo o impacto de opiniões negativas que, as mais das vezes, as têm, erradamente, como responsáveis exclusivas. A tradicional doutrina da divisão de poderes que, no essencial, deve manter-se, não pode deixar de se confrontar hoje com a dispersão do poder e dos próprios poderes públicos para outras esferas, nomeadamente as da economia, das finanças, dos mercados em geral. Em vários aspetos, é relativamente a esses que cumpre assegurar a independência dos tribunais e, aí, não pode desprezar-se a cooperação entre os vários poderes do Estado, chamados, então, mais pelo lado da sua interdependência. É aí que importa falar de corresponsabilização. Numa época em que tudo parece apontar para que as palavras de ordem devam ser, repito, cooperação e corresponsabilização, a polarização de poderes autónomos acaba por gerar entropias que desvirtuam os objetivos iniciais e impedem que se prossiga os que agora se perfilam como prioritários. O que não podemos, penso eu, é repetirmos constantemente o discurso sobre o mau funcionamento da Justiça, vermos sucederem-se os Governos, todos eles anunciando medidas redentoras capazes de mudarem o panorama, e termos a sensação de que, feitas as contas, pouco ou nada muda verdadeiramente. Esta é uma questão política. É de políticas que a Justiça precisa. É errado confundir-se políticas com medidas. Estas devem traduzir a execução daquelas. Faltando aquelas, de pouco servem estas. Talvez a origem do mal esteja noutro lugar. Será que revendo a Constituição poderemos lá chegar mais depressa? É essa a minha convicção.

laborinho4.jpgAfirma que não podemos usar a escola «para fazer engenharia social». Quer dizer que há experimentalismo a mais?

Não me refiro a «experimentalismo». O que recuso é uma escola que forme para o pensamento único, pugnando, antes, por uma escola que promova o pensamento crítico. Por outro lado, numa escola massificada, marcada pela diversidade e pela complexidade, não é aceitável que se prossiga numa linha que não tende para a inclusão. Pelo contrário, esta inclusão terá sempre que constituir o primeiro objetivo da escola pública. A não ser assim, então a escola acabaria a certificar a exclusão dos excluídos que assim entravam e que assim saíam. E essa seria outra forma de engenharia social. Aqui não de construção, mas apenas de confirmação. E isso seria a negação da própria escola. Não quero uma escola que se empenhe privilegiadamente a formar os nossos jovens para o desenvolvimento económico. Isso é importante, mas não basta. Do mesmo modo, não me chega uma escola que tenha como objetivo único formar para a democracia e para a cidadania. Esta alternativa não me interessa como convite à opção. O que gostaria de ver a funcionar normalmente era uma conceção de escola e uma estratégia educativa voltadas, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento económico, para a democracia e para a cidadania. Uma escola comprometida com a qualidade do pensamento, com a importância do treino da escolha, com o compromisso com as competências hoje essenciais, onde a formação da autonomia individual e a solidariedade fossem objetivos, esses sim, fundamentais. A qualidade da maioria dos nossos professores merece isso. Do mesmo modo que uma esperança fundada na capacidade dos nossos jovens deve exigir que assim seja.

Preside ao Conselho Geral da Universidade do Minho. Como vê, de uma forma geral, o estado do ensino superior em Portugal? O sistema binário, de cooperação entre politécnicos e universidades, após anos de afastamento, começa finalmente a ganhar entrosamento?

Julgo que, depois de um período de certa estagnação, o ensino superior em Portugal está a reencontrar o seu melhor caminho. O conhecimento constitui hoje o capital mais sólido para enfrentar um futuro cheio de interrogações a todos os níveis. Um conhecimento em sentido amplo, universal, que não seja capturado por uma dimensão funcional que avalie a sua importância apenas em termos de transformação em valor de mercado. A uma sociedade da informação, do conhecimento, da inovação e das competências, não pode deixar de corresponder uma sociedade das pessoas, da cultura, da reflexão e do pensamento. Garanti-lo, é uma missão irrecusável das instituições de ensino superior, enquanto instituições completas, de ensino e investigação, e comprometidas com uma permanente ligação à comunidade. Essa, a sua base identitária, reforçada, necessariamente, com o reconhecimento e respeito pela sua autonomia. Também aqui há um longo caminho a fazer. Creio, porém, que novos horizontes se vão abrindo e que é possível olhar o futuro do ensino superior em Portugal com um sentimento, sempre criticamente reservado, de esperança. Diria que, garantida, como está, a qualidade instalada, a palavra decisiva cabe aos decisores políticos de quem cabe esperar boas e oportunas tomadas de posição. Claro que subsistem problemas sérios, que invadem áreas como as do abandono escolar, do financiamento do ensino superior em geral e a definição dos respetivos critérios de atribuição, o estatuto da investigação científica, respetivos conteúdos e modelos de avaliação, entre vários outros. O que me parece, porém, importante fazer ressaltar numa entrevista que, pela sua natureza, não permite uma abordagem exaustiva dos temas que aborda, é a importância crucial a atribuir ao ensino superior, o valor a reconhecer ao alargamento do acesso a ele e o dever de introduzir no espaço público a inequívoca valorização da formação superior enquanto instrumento essencial para o progresso de Portugal e dos portugueses.

Como povo somos aquilo que é a nossa educação?

Em boa parte, sim, mas não só. Seja como for, a pergunta vale aqui mais do que uma qualquer resposta. É que a pergunta já traz, em si, o peso da responsabilidade que tomba sobre a educação. E, seja qual for a resposta, a educação não pode jamais ignorar a pergunta. Mas é claro que um povo é muito mais do que aquilo que é a sua educação.

Escreveu, em 2008, o livro «Educação, Arte e Cidadania». É da união destes três vértices do triângulo que reside o êxito de uma nação e da sua gente?

Estes três vértices são fundamentais, mas há muito mais para lá deles a suportar o êxito de uma nação e da sua gente. Em qualquer caso, a pedra de toque do êxito que refere é, sem dúvida, o conhecimento, e o conhecimento nas várias dimensões que o termo comporta. Ora, aí, ao triângulo constituído pela Educação, pela Arte e pela Cidadania deve ser reconhecido, sem dúvida, um papel decisivo.

Nuno Dias da Silva
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