Entrevista

Henrique Cymerman, jornalista
«O Daesh defende o modo de vida do século VII e usa a tecnologia do século XXI»

HenriqueCymerman_net.jpgO Papa Francisco chamou-lhe «o anjo da paz», mas para o comum dos mortais Henrique Cymerman é o repórter de muitos cenários de guerra, em especial no Médio Oriente.

Refere no seu livro - «O terror entre nós» - que há duas grandes ameaças ao mundo, neste momento: o jihadismo e a extrema-direita. Porquê?
Por motivos muito objetivos. Nos últimos três anos, o jihadismo atingiu um grau de ameaça enorme para o mundo ocidental, mas não só. 98 por cento das vítimas do Daesh ou do Estado Islâmico são muçulmanas. O que se passa no ocidente é sintomático. Metade do exército italiano está a patrulhar as ruas das cidades. Podem não acreditar, mas eu atualmente vejo mais segurança nas ruas da Europa do que em Israel, o país onde vivo. O jihadismo é, por isso, uma ameaça, declara-se enquanto tal e promete lutar contra os infiéis, ou seja os cristãos e os judeus, por diferentes meios. Um destes meios é o ataque perpetrado pelos chamados «lobos solitários», com facas, bombas, camiões, etc.

E o que é que a extrema direita tem de ameaçador?
As enormes mudanças registadas desde a II Guerra Mundial têm-se traduzido, nomeadamente, nas vagas de refugiados. Na Síria, cerca de 12 milhões de pessoas perderam as casas nos últimos sete anos. Há 1 milhão de mortos no Médio Oriente em sete anos, para além do número enorme de feridos, de violações, de torturas, etc. É brutal. Muitos deles foram para a Europa, sobretudo para a Alemanha. E há uma reação das forças fascistas e neo-nazis locais que tentam lutar, de alguma maneira, contra a chaga de emigrantes de outros povos. O que se constata é a subida da popularidade da direita, em geral, e de grupos de extrema direita muito perigosos, racistas, que apoiam todo o tipo de discriminações. Trata-se de uma ameaça enorme.

Voltando aos radicais islâmicos. Onde estão as raízes desta jihad à escala global?
A «jihad global» não é uma guerra de civilizações, mas uma guerra no coração do mundo muçulmano. Quero com isto dizer, que os muçulmanos não são só o problema, são parte da solução. Eu acho que devemos unir o ocidente com a maioria racional do mundo muçulmano para tentar isolar os radicais que são em percentagem muito baixa. Calcula-se que os jihadistas dispostos a cometer atentados são cerca de 0,5 por cento. Mas 0,5 por cento de 1600 milhões de pessoas é muita gente.

Reside em Israel, um estado por natureza securitário. Os habitantes do ocidente estão condenados a viver numa redoma por medo do terror?
O objetivo dos terroristas é o de semear o pânico e alterar os hábitos das sociedades ocidentais. E querem isolar-nos, provocar medo, que tenhamos pavor de sair à rua com os nossos filhos e que estes vão a uma discoteca ou apanhem um autocarro. Eu não sou a favor de lhes dar o gosto de sentir que ganham nessa luta. Mas para isso é preciso tomar todo o tipo de medidas que sejam dissuasoras.

Medidas de que tipo?
Nesse aspeto a experiência israelita é muito positiva. Em Israel as pessoas vivem com total normalidade o facto que quando vais a um centro comercial as pessoas vejam em meio segundo a tua bolsa para certificarem-se que está tudo em segurança. Da mesma forma que encaram com normalidade ser sujeito a um interrogatório quando chegam ao aeroporto. As pessoas veem isso como parte da rotina que aumenta tanto a sua segurança, como a das suas famílias. Por isso, acho muito provável uma certa «israelização» da Europa em termos de segurança, nos exemplos que atrás referi. Parte das medidas de segurança que se tomam em Israel vão acabar por ser adotadas na Europa, por exemplo, nos aeroportos.

Quer dar um exemplo concreto?
Há círculos de segurança em redor do aeroporto internacional de Telavive, que deve ser o mais seguro do mundo. Ou seja, a segurança não começa quando tu entras no terminal do aeroporto, mas o filtro começa antes da entrada do aeroporto. Isso impediria, por exemplo, o atentado terrorista em Bruxelas, que aconteceu antes do check-in.

Há muita ignorância e generalizações sobre o que é o terrorismo?
Sem dúvida. Há muita ignorância quando se fala sobre este tema, até mesmo entre jornalistas. E também existem muitos estereótipos. A importância deste livro é a de contar de forma bastante equilibrada o fenómeno terrorista, com uma visão académica (que é dada pelo Aviv Oreg) e do terreno ou sociológica e política, que é da minha responsabilidade. E tanto eu como o Oreg vamos mais longe e propomos várias soluções no livro para confrontar este problema e não nos limitamos a contar os fatos que acontecem.

Quais são os caminhos para o fim do terrorismo?
A luta militar ou o combate ideológico por via da contra-narrativa. A via militar é bastante clara e assenta no uso, por exemplo, de drones. Quando ao financiamento, o Daesh tem sido bastante debilitado por via da redução da entrada de dinheiro na organização da venda de petróleo. Finalmente, na questão ideológica estamos muito longe de atingir os objetivos. Quando falo com generais americanos que estão no Iraque eles asseguram que estão a trabalhar no questão da contra-narrativa, mas eu não acredito, simplesmente porque não vejo qualquer resultado. Nesse aspeto, os únicos que tiveram êxito foram os grupos jihadistas. Chamo-lhe o «sheik do Google» ou o califado digital, que creio foi um dos grandes êxitos do Daesh. O Daesh pode desaparecer algum dia, nos próximos anos, mas as ideias deles estão aí e vão ficar para sempre através da internet. E os próximos grupos que vão surgir vão recuperar os materiais de propaganda em que o Daesh foi precursor. O Daesh defende o modo de vida do século VII e usa a tecnologia do século XXI.

O que é que separa o Daesh e a Al-Qaeda?
Do ponto de vista de estratégia, os dois falam de criar no mundo inteiro um estado que se guie pelas leis islâmicas, as originais, do princípio do Islão do século VII. Esse é o denominador comum. A diferença está no lado tático. Enquanto a Al-Qaeda desenvolve a sua atividade muito longe das redes sociais e da internet, tudo é offline, o Daesh utiliza o Califado digital. Essa é a sua arma nuclear, o seu veículo de propaganda.

A Al Qaeda é mais prudente?
Muito mais. O Daesh atua como uma organização que não tem tempo a perder. E que tem de conseguir o máximo de êxito em muito pouco tempo, enquanto a Al-Qaeda defende que tem todo o tempo do mundo e prefere ir passo a passo. O modus operandi é distinto.

Negociar com terroristas está fora de questão?
Depende dos terroristas. Os que são do Daesh e da Al-Qaeda é melhor esquecer. É perder tempo e não vale nem a pena pensar. São galáxias diferentes e é impossível combinar a água e o fogo. Bem sei que houve sucesso nas negociações com a ETA, em Espanha, ou o IRA, na Irlanda, mas são situações e organizações distintas.
A OLP matou na década de 70 vários atletas israelitas nos Jogos de Munique. Isto foi terrorismo puro e duro, mas nos anos 90 foi possível sentar as partes na mesa de negociações. Arafat voltou para Gaza e criou-se a Autoridade Nacional Palestiniana. Por isso, não gosto de generalizações. De qualquer forma, na maior parte dos casos negociar com terroristas é uma espécie de aspirina para curar um cancro.

O Daesh tem sido debilitado, mas tem-se expandido ao Iémen, Líbia e até à América do Sul. Quão preocupante é esta progressão?
Muito. Eles, hoje em dia, estão praticamente em todos os lugares. Estão a criar-se santuários do Daesh no Médio Oriente. E tenho as minhas dúvidas que eles tenham desaparecido por completo da Síria e do Iraque. Para além disso, importa não esquecer que estão no Afeganistão, na Jordânia e sobretudo no deserto do Sinai, no Egipto. E também andam pela Europa, nos Estados Unidos e provavelmente na América Latina.

Um combatente do Daesh disse-lhe, após ter sido capturado pelas forças iraquianas: «Primeiro conquistaremos Jerusalém, depois atacaremos o Vaticano e logo a seguir Portugal e Espanha, o Al-Andaluz». Madrid e Barcelona já sofreram na pele o terror. Dos contactos que tem tido, Portugal está nos planos dos terroristas?
Esquecido não está, porque Portugal e Espanha são uma obsessão para estes grupos islâmicos. A Península ibérica é desde há muito um objetivo islâmico. Ouvi isso pela primeira vez há uns 18 anos, antes mesmo do atentado de Madrid e do 11 de setembro. Uma vez conheci o filho de Bin Laden, Omar, e desde então encontro-me com ele todos os anos. E ele contou-me que, em 2004, quando houve o atentado de Madrid, Portugal era uma plataforma de organização logística muito importante devido à nossa posição estratégica. Nessa altura, as nossas forças de segurança eram vistas como não demasiado problemáticas, a entrada e a saída da fronteira estava facilitada, etc. De lá para cá, sei que os serviços de segurança portugueses melhoraram muito e são muito mais firmes e preparados, bem como a partilha de informação também progrediu. Mas importa não esquecer que Portugal já não é o país do fim da Europa. Está na moda (especialmente no mundo judaico) e isso é bom, mas somos a porta da Europa e a ponte para África e para a América Latina. É este ponto estratégico que tem de exigir das autoridades a tomada de medidas para evitar alguma tragédia.

henriquepapa.jpgAcompanha há muito tempo o conflito israelo-palestiano. É uma contenda eterna e irresolúvel?
O principal problema reside na falta de esperança. Nos anos 90 estava-se convencido que a paz era possível. Isto dos dois lados. O que aconteceu foi que a segunda intifada no ano 2000 provocou nos dois lados 200 bombas humanas e centenas de mortos em Israel e na Palestina. Foi o pior inimigo para alguma réstia de esperança de paz que pudesse existir. As opiniões públicas de ambos os lados estão totalmente extremadas e a desconfiança é mútua. Não há um sócio do outro lado da fronteira.

Como ultrapassar essa desconfiança?
Em primeiro lugar, o passo fundamental para chegar, algum dia, a um acordo é educar para a paz. Uma paz bilateral parece-me impossível. A solução que me parece viável é meter no pacote de negociação a região de uma forma alargada. Há países na região que querem a paz no Médio Oriente: a Arábia Saudita, o Egito, os Emiratos, a Jordânia, Marrocos, etc. Isto para dizer que o problema Israelo-palestiniano transcende as fronteiras da Palestina e de Israel.

Acredita na mediação de Donald Trump neste conflito?
Porventura vou surpreendê-lo. Não fiquei contente com a vitória de Trump e admito que ele não conhece muitas coisas relacionadas com o Médio Oriente, mas ele possui um instinto de homem de negócios. E ele percebeu que surgiu uma possibilidade de negociar a paz entre os israelitas e o mundo árabe. Ele chama-lhe o «Great Deal» (o grande acordo) e a equipa do presidente americano, liderada por Jason Greenblatt, é provavelmente das melhores que eu já vi no Médio Oriente. Acredito que dentro de semanas ou meses, não consigo precisar, a administração Trump vai apresentar o melhor plano de paz alguma fez feito.

Alimenta algum otimismo, portanto?
Sim, e está a emergir uma nova geração de líderes no mundo árabe que pode vir a ser partners de tudo isto, principalmente o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, que tem apenas 32 anos e que provavelmente vai ser rei muito em breve.

Realizou a última entrevista ao primeiro ministro de Israel, Yitzhak Rabin, antes do seu assassinato. Estes fazedores da paz estão destinados a morrer?
Foi um momento muito duro na minha carreira. Já passaram 23 anos e continuo a sentir como se fosse ontem. A minha mulher, que é israelita, trabalhou com Rabin durante dois anos na equipa estratégica do primeiro-ministro, antes das eleições que ele ganhou em 1992. O trabalho que aquele homem fez para colocar um ponto final a um conflito que sempre pareceu eterno foi enorme. O assassino de Yitzhak Rabin conseguiu o seu objetivo, porque fez descarrilar o processo de paz. Mas houve vários culpados. O terrorismo do Hamas e da Jihad islâmica teve muitas responsabilidades. Enquanto estes grupos tiverem a última palavra, não há paz possível. É preciso isolar estes grupos, no fundo, os radicalismos.

Qual é o segredo para manter relações tão próximas com figuras políticas tão antagónicas?
Não sei. Ainda estou no meio do jogo. Um dia vou refletir sobre isso. Mas todos estes líderes perceberam que eu sou um jornalista honesto, profissional e bem intencionado. Penso que todos viram, à lupa, isso nas minhas qualidades. O sheik Ahmed Yassin, o líder do Hamas, sabia que eu era judeu, e era a mim que ele chamava quando pretendia transmitir algo à imprensa internacional. O mesmo se passava com Arafat. Concedeu-me 14 entrevistas.

A entrevista com o Papa Francisco no Vaticano foi um dos seus trabalhos mais recentes de mais fôlego. Como é que foi privar com o Sumo Pontífice?
Antes de o conhecer, sei que ele via e gravava as minhas crónicas do Médio Oriente, ainda era Cardeal de Buenos Aires, Jorge Bergoglio. Ele é uma pessoa extremamente preocupada com tudo o que se passa na região e o tema do povo judeu é algo que o ocupa muito. Depois da entrevista, reforçámos a nossa relação com o trabalho de preparação que fiz da sua visita à Terra Santa, Israel, Jordânia e Palestina.

O Papa ganhou mais um admirador…
O Papa Francisco é, para mim, o estadista número um. No mundo atual é o líder que mais esperança me dá. Tenho pena que já tenha 81 anos, por isso, só lhe desejo muita saúde para continuar mais alguns anos

Nuno Dias da Silva
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