Opinião

‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XXXI)
Dispensa da aula

luis-souta.jpeg«amateurs look for inspiration; the rest of us get up and

go to work.»

(Philip Roth, Everyman, 2006:82) 

Anda chuvoso o mês de Março. Finalmente um tempo próprio da estação do ano. Nas terras altas do Barroso, os nevões são desejados tanto pelos media como pelas 700 crianças que ganham, com eles, uma folga suplementar; isto com a ajuda da Protecção Civil que obrigou o Agrupamento de Escolas Doutor Bento da Cruz, em Montalegre (Trás-os-Montes e Alto Douro), a encerrar as portas, por três vezes, só no presente mês. As carrinhas municipais, que num corrupio diário recolhem os alunos nas aldeias de Padroso, Pitões das Júnias, Sezelhe, Meixedo…, não podem, por esses dias, circular em vias intransitáveis. Que país este sempre desadaptado das estações do ano! Neva e a vida escolar pára!? O poder central foi fechando as escolas de ensino básico, na generalidade das zonas rurais de todo o país, alegando não haver número significativo de crianças. Em contrapartida, arrebanha-as para a sede de concelho pois, supostamente, beneficiam aí de melhores condições pedagógicas e de outra sociabilidade… e, como está à vista, de menos dias de actividade lectiva. O antropólogo Jorge Dias escrevia, em 1968, num texto sobre o «carácter nacional português»: «Na paisagem serrana, de tons severos, (…) é lamentável que o conforto da lareira, à volta da qual se reunia a família no Inverno, foi substituído por um fogão a gás» e pela televisão (diria hoje) que, nos seus múltiplos canais, lhes devolve a imagem branca dos campos de uma periferia recentralizada para efeitos de 'turismo televisivo'.
Na escola do Prof.S., apesar das infiltrações de água e das quebras frequentes no aquecimento central, não há 'borlas meteorológicas'. Por aquelas bandas, só as idiossincrasias da velha 'cintura industrial' (leia-se, incêndios na SAPEC), levam a paralisações. Sabemos como a assiduidade é desafiada pela 'sociedade civil do entretenimento' que acena, insistentemente, ao estudante com eventos a que «não pode perder!». Ali, há igualmente a concorrência interna, em especial, a dos encontros à 5ª que aliciam os estudantes a trocar as aulas regulares por sessões com convidados externos que abordam temas sociais do mundo contemporâneo. Os estudantes do 1º ano pedem-lhe «dispensa da aula» e lá lhes explica, pacientemente, o sem sentido dessa expressão no ensino superior. São os estudantes (maiores e autónomos) que têm de ponderar as várias opções em função das suas prioridades: não ir à aula e ter falta ou ir ao Encontro e debitarem-lhe umas horas (que acumula em 'pontos') nessa uc (sui generis) de «Carteira de Competências». Esta lógica do evento paralelo às aulas (no quadro de uma instituição 'onde há sempre qualquer coisa a acontecer') acaba por acentuar a fragmentação curricular (imposta por Bolonha). Ao invés, nenhum lhe solicitou «dispensa da aula» para assistir à apresentação pública das duas candidaturas para a Presidência do Instituto. No anfiteatro, só compareceram professores (não muitos), funcionários (que aproveitaram para fazer uma pausa no seu trabalho monótono) e quatro estudantes (os que integram o Conselho Geral). A democracia académica (instituída pelo RJIES e plasmada nos Estatutos dos diversos institutos), assente no princípio da representatividade, substituiu a eleição directa por órgãos representativos, reduzindo aos limites o número dos eleitores. A comunidade académica, atomizada, passa ao lado dos actos eleitorais. É evidente a distância entre o discurso valorizador da educação para a cidadania e a realidade do alheamento (quase total) nas eleições. E depois queixam-se (os partidos e os governantes) que os jovens andam arredados da vida cívica. Arredados porque o sistema os afasta através de dispositivos estatutários que repousam nos 'núcleos duros' (ditos representativos mas que que não representam, de facto, ninguém, só eles mesmo; e, também por isso, não há quem lhes peça contas). Em suma, as instituições de ensino superior não se constituem como bons laboratórios de cidadania e participação. Só os 'instalados' levam estes processos a sério pois perpetuar o sistema é preciso. Daí, a prática generalizada das listas únicas, o fechamento, a aversão ao debate e à diversidade de pontos de vista. Privilegia-se o pensamento único em detrimento do pensamento divergente. De quando em vez, lá emergem uns outsiders a que os regulamentos possibilitam certa visibilidade temporária, mas que acabam sempre da mesma maneira - derrotados pelo apparitich.

 

 

Luís Souta
(Este texto não segue o AO90)
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
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