Entrevista

André Letria em entrevista
Editoras respeitam mais a ilustração

André LetriaAndré Letria começou a carreira de ilustrador há quase vinte anos e venceu vários Prémios, como o Prémio Gulbenkian e o Prémio Nacional de ilustração. Filho de José Jorge Letria, um dos mais reconhecidos escritores de literatura infantil portugueses, já assinou livros em conjunto com o pai e com outros nomes da literatura infantil como Luísa Ducla Soares, Alice Vieira ou António Torrado. Extra ilustração realizou a curta-metragem Zé Pimpão, O Acelera, e criou e realizou a série de animação infantil Foxy&Meg premiada no festival britânico Stokes Your Fires  e por cá no Festival Zone. Ao Ensino Magazine o ilustrador afirma que a literatura infantil «Está numa fase muito positiva» tem conseguido renovar-se e está saudável e a profissão de ilustrador é hoje mais respeitada e valorizada do que há 15 anos atrás. 

Trabalha como ilustrador de Livros infantis desde 1992. Em que momento percebeu que era isto que queria fazer?

Não foi assim uma decisão muito clara. Foi mais o resultado de várias circunstâncias que aconteceram ao mesmo tempo. Na altura estava a estudar na Faculdade de Belas Artes. Isso soube desde sempre que gostava de fazer, uma actividade que tivesse haver com pintura e me pudesse manter ligado ao desenho. A escolha para a ilustração foi um bocadinho por acaso. Uma vez que estava na Faculdade comecei a fazer coisas ligadas a isso, mas não tão direccionadas para a pintura, propriamente dita. Comecei, se calhar como não poderia deixar de ser, com trabalhos relacionados com o meu pai. Sendo escritor de livros para crianças, havendo esse contacto tão próximo, mais tarde ou mais cedo acabaríamos por nos encontrar. Houve um convite, um bocadinho informal, de uma Editora - as Edições Paulinas - que me perguntou se estaria disponível para experimentar fazer uma capa para uma colectânea de textos de teatro, do meu pai, para crianças. Essa foi a minha primeira experiência como ilustrador, mas sem saber exactamente que seria isso que iria fazer nos anos seguintes. Foi mais um trabalho extra Faculdade, para tentar tapar alguns buracos que poderia haver na Editora. A partir daí as coisas começaram a acontecer e a correr bem, algumas ainda ligadas ao meu pai, outras com outros escritores, e outros editores, e por isso mesmo cá estou, hoje em dia, a fazer a mesma coisa.

As Histórias protagonizadas pela raposa Foxy e pela galinha Meg foram adaptadas a uma série de animação, nomeada para o Festival britânico Stokes Your Fires, na categoria de melhor animação profissional. Como é que estes personagens saltam do papel para o ecrã e se tornam conhecidas internacionalmente?

Os livros partiram de um convite feito pela Editora Ambar, que já não existe como editora, apenas como produtora de material de escritório. Mas na altura tinha uma produção bastante grande, e com a ideia de fazer disso um sector importante, dentro da produção de livros para crianças. Uma vez que já tinha trabalhado com eles, acharam que fazia sentido criar uma colecção com algumas personagens que nascessem de produção original, nacional, e convidaram-me para criar uma colecção de livros dirigida ao público mais pequenino. Isso foi o princípio destas personagens. Elas nasceram para livros e para um público muito jovem, para dar a conhecer às crianças aqueles conceitos básicos dos opostos, das viagens, dos animais da quinta, coisas desse género. Não fazia ideia que elas se iriam transformar naquilo que são hoje, personagens animadas, com uma série de animação já concluída. Provavelmente é isso que acontece quando elas ganham vida própria. Se elas funcionam como personagem para livro, se houver interesse de outras pessoas, como aconteceu no caso do produtor de animação que me convidou, talvez o passo seja muito pequeno para se tornarem no que são hoje em dia, qualquer coisa que não se limita só às páginas impressas dos livros, como começou por ser. Para além desse Festival inglês a série acabou de receber na semana passada um segundo prémio, do festival Zone. É mais uma prova de que de facto as personagens nasceram bem, continuam bem vivas e de saúde, e a mim deixa-me muito satisfeito que seja assim. Elas foram imaginadas com os ingredientes necessários para continuarem a vida delas, já quase sem a minha intervenção. Espero que elas continuem sempre ligadas a mim, mas na verdade algumas coisas deixam de ter só haver comigo, com as minhas decisões, individualmente, como acontecia nos livros. Neste momento, para se fazer uma série de animação, como foi o caso da Foxy & Meg, envolve equipas grandes, com outras pessoas que também tomam outras decisões, para além daquelas que são precisas tomar quando se fazem livros, como aqueles da Ambar.

Já trabalhou em parceria com vários escritores e também com o seu pai o escritor José Jorge Letria, nomeadamente nos livros Avô Conta-me Outra Vez, Letras e Letrias, e Domingo Vamos à Luz. Como é trabalhar em parceria com o seu pai?

Nós temos a vantagem de sermos pai e filho e isso ajuda muito na forma como as coisas nascem.  Não nos limitamos a trabalhar um para o outro, com material já acabado, que nos chega às mãos vindo do outro lado. Às vezes isso acontece, recebo muitas vezes textos que estão acabados, sobre os quais eu tenho de trabalhar, como aconteceria com outro escritor qualquer. Mas há muitos outros casos em que criamos projectos e imaginamos livros em conjunto antes do meu pai começar a escrever ou eu começar a ilustrar. São ideias que são partilhadas no seio da família e que por vezes até nascem de conversas de família, e não de conversas de trabalho. Isso é uma das grandes vantagens que posso salientar, em comparação com o trabalho com outras pessoas. De resto é uma ligação profissional como acontece com qualquer outro escritor, com quem acabo por trabalhar. A partir de um momento que existe um texto, trabalho sobre ele da mesma forma como trabalharia com outra pessoa.

Existe uma proximidade que se há-de manter sempre, uma vez que somos pai e filho, e isso pode facilitar o trabalho. Se for possível alguma alteração, discutir alguma coisa num processo a meio. Mas de resto é uma ligação profissional como outra qualquer. Depois há outras pessoas que estão envolvidas, que precisam de ver também a nossa parte cumprida, têm expectativas em relação a nós como profissionais. Há essa parte familiar, mas uma vez que o trabalho começa ela fica posta de lado e vemos as coisas como dois profissionais.

A profissão de ilustrador é vista de que forma em Portugal? 

 É vista de uma maneira muito mais respeitosa do que acontecia, talvez há quinze anos. O público encara o trabalho da ilustração como fundamental para a leitura de um livro e para a fruição dos álbuns ilustrados. Há escolhas que são feitas pelo público que já não dependem só do texto. A ilustração ganhou um peso que permite às pessoas ter interesse em escolher os livros também pela forma como são ilustrados. Também se estende aos editores que já não escolhem os ilustradores de qualquer forma, escolhem-se os ilustradores com critério para cada texto em particular. Isso fez com que houvesse mudanças nas editoras, ao ponto de haver até cargos de direcção artística, que não existiam antes, e têm como responsabilidade a escolha da parte visual. As Editoras passam a ter um critério que defina a sua imagem junto do público. Tudo isto faz com que o trabalho da ilustração em Portugal seja hoje bastante mais confortável e vista de uma outra forma, com maior respeito e dando-lhe maior valor.

O seu trabalho de realização de curtas metragens é fruto de que circunstâncias?

É também um bocadinho fruto do puro acaso. Não é nada que tivesse procurado e decidido fazer convictamente, como se isso fizesse parte de um projecto da minha vida profissional. Acontece mais uma vez a partir dos livros. Tenho só duas experiências como animador, e nas duas tenho a ligação com um produtor chamado Humberto Santana, da produtora Animanostra. É ele o responsável principal por eu ter enverdado por esta área. Fui contacto por ele, ele andava à procura de pessoas que estivessem interessadas em participar nos concursos que são organizados anualmente pelo Instituto de Cinema, e, achou que um livro que eu tinha ilustrado para um texto do meu pai, chamado Zé Pimpão, O Acelera, poderia dar um bom projecto para apresentar nesses concursos. Foi assim que começou a minha primeira experiência de animador. Fizemos um projecto que foi aprovado pelo Instituto e como consequência foi trabalhado até dar o que acabou por ser a curta-metragem com o mesmo título, Zé Pimpão, O Acelera. O filme não se pode dizer que tenha tido êxito comercial, porque estas coisas são muito complicadas em Portugal. A vida das curtas- metragens é uma vida curta também, têm pouca divulgação e depende muito dos Festivais para onde as coisas são escolhidas. Mas a verdade é que num desses festivais o filme acabou por ter também um prémio e isso fez que houvesse interesse das duas partes, minha e da produtora, em continuar esta experiência. O passo seguinte foi o da série de animação Foxy&Meg, mais uma vez também nascido a partir de uma colecção de livros para crianças. Limita-se a isso, não é que seja pouco porque qualquer um dos projectos teve dois anos de trabalho. A série de animação são 26 episódios, de três minutos cada um. Não é pouco trabalho, mas de facto são só dois episódios ligados à animação.

Uma análise sobre a literatura infantil que se faz neste momento em Portugal?        

 Está numa fase muito positiva. Tem conseguido renovar-se, o que é sempre um desafio importante. Houve uma fase em que não apareciam escritores novos mas parece-me que isso está a acontecer cada vez mais, o que é muito saudável. Novas visões sobre as coisas e novas formas de escrita e de contacto com o público. De uma forma geral este sector dos livros para crianças, não só por causa da ilustração, mas também por causa da escrita, está bastante vigoroso e bastante saudável. Felizmente tive a sorte de trabalhar com muitos escritores, desde que comecei a actividade como ilustrador, desde o António Torrado, até à  AliceVieira, passando pela Luísa Ducla Soares. Mas para além desses - sei daquilo que conheço e daquilo que vou vendo todos os dias - que há outras gerações que estão também a despontar. É um período saudável, só espero que esta crise não faça diminuir o investimento que as editoras têm feito nos últimos anos, para que continuemos a ter bons livros, como os que têm aparecido até agora.

Já venceu o Prémio Gulbenkian, o Prémio Nacional de Ilustração. Que papel tem um prémio numa carreira?

Pode ser visto de duas maneiras diferentes. A questão financeira, que ajuda numa área frágil, nesse aspecto de sobrevivência financeira. Portanto, o dinheiro que se ganha com um prémio não pode ser desprezado. De facto permite que as escolhas que sou obrigado a fazer como ilustrador possam ser mais convictas e não só escolhas baseadas na necessidade de sobrevivência financeira; depois há o destaque e a visibilidade que ele proporciona. Ao sermos distinguidos com um prémio faz com que a atenção das pessoas se vire para nós e isso mais uma vez permite que possamos ter trabalhos de maior qualidade e com mais condições para os fazer.

Como é trabalhar para o melhor público do mundo, as crianças?

O facto de ser o melhor dá-nos também uma grande alegria e aumenta muito a responsabilidade. Não sei exactamente o que é isso de ser o melhor público do mundo, depende no fundo do que for o objectivo de cada um, na sua actividade. Tenho a experiência também de trabalhar com ilustração editorial, para jornais e para revistas, e há pessoas que se sentem bem a trabalhar assim e provavelmente consideram esse público o melhor. Como tenho essa sorte de poder variar, os convites têm aparecido para áreas diferentes, mas mantendo sempre os livros, sinto-me bem a fazer as duas coisas. Também me agrada variar um bocadinho o estilo e a linguagem e a abordagem dos trabalhos. Mas sinto uma grande felicidade em poder manter sempre o trabalho dos livros para crianças. Se calhar se tivesse de optar era por aí que ficaria - felizmente não tenho. Faço isso sempre com um sentimento de grande responsabilidade, o facto de estarmos a trabalhar com crianças quer dizer que estamos a trabalhar para pessoas que estão a aprender tudo agora. Essas pessoas vão estar a olhar para o nosso trabalho de uma forma menos crítica do que um adulto faz quando escolhe convicto aquilo que quer comprar numa livraria. As crianças estão mais desprotegidas, uma vez que estão a aprender tudo nessa fase de crescimento. Aumenta o sentimento de responsabilidade em cada coisa que faço para este público. É ao mesmo tempo um sentimento de prazer de um trabalho que faço muito agradável com essa responsabilidade de estar a trabalhar para o público especial.

Em que projectos se encontra a trabalhar actualmente?

Em várias coisas ao mesmo tempo. Estou a começar a preparar um novo concurso para o Instituto do Cinema; estou neste momento a acabar livros que ainda vêm do ano passado, compromissos que tenho com várias Editoras; e estou a tentar manter a produção da minha Editora, que criei o ano passado e cuja produção foi inaugurada com o livro Domingo Vamos à Luz. São várias frentes de trabalho que estão a acontecer ao mesmo tempo. É um bocado complicado, mas é o que têm de ser.

Eugénia Sousa
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
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