Entrevista

Silva Lopes, Economista
Faltam incentivos aos bons Professores

José da Silva Lopes«Passámos da carroça e do burro, para o automóvel e a auto-estrada»
O ex-ministro das Finanças não tem dúvidas: Portugal não conseguirá sair desta situação de crise tão cedo e sem a ajuda externa. O endividamento continua a um ritmo galopante, muito devido aos investimentos dispendiosos em auto-estradas e estádios de futebol, mas o vício de pedir dinheiro emprestado está a terminar. Silva Lopes diz que resta continuar a apertar o cinto e fazer com que os ricos contribuam de forma mais substancial para o sacrifício nacional. Sobre a educação, o ex-Governador do Banco de Portugal lamenta que peque, à semelhança de outros serviços públicos, pela ineficiência. Crítico impiedoso dos pedagogos e da falta de disciplina nas escolas, Silva Lopes refere que são os grupos de interesse que dominam o Ministério da Educação.

Define-se como um pessimista. Diz mesmo que estamos a atravessar a pior crise económico-financeira das últimas décadas. Era previsível esta hecatombe?

Esperava um cenário negativo, mas confesso que não tão mau como está a ser. Como é que aqui chegámos? Basicamente por duas razões: perdemos competitividade internacional e gastámos muito e mal. Quanto à questão da competitividade, a Europa, para onde as nossas exportações tinham acolhimento privilegiado, abriu as fronteiras aos países de leste e às nações não europeias e a concorrência aumentou bastante. Entretanto, o mercado nacional foi ocupado por empresas estrangeiras em áreas em que tínhamos produção. Foram factores que contribuíram para que o crescimento fosse muito reduzido de 2000 até aos dias de hoje. Por isso é que o rendimento em média disponível pelos portugueses pouco ou nada progrediu.

E como explica que tivéssemos sido perdulários em período de vacas gordas?

Apesar de não crescermos, o consumo não cessou. O consumo aumentou muito mais do que a produção. Por outro lado, o investimento registou uma tendência de queda nos anos recentes, inclusive no domínio da habitação. Apostou-se muito em investimento pouco eficiente e com escassa perspectiva de futuro. Seria preferível apostar na construção de uma fábrica competitiva com vista ao crescimento do país.

Já para não falar dos grandes investimentos públicos, os materializados e outros idealizados, muitos deles com reduzida relação custo-benefício…

O país encheu-se de auto-estradas, que reconheço é um investimento que traz grande comodidade para quem gosta de passear de norte a sul, mas sem grandes repercussões para o crescimento económico. Temos mais automóveis por habitante que os holandeses e os belgas. Passámos directamente da carroça e do burro, para o automóvel e a auto-estrada, mas no resto ficámos iguais. Cometeram-se disparates enormes. Por exemplo, os estádios do Euro 2004. Em Leiria querem deitar o estádio abaixo. Defendo, meio a brincar, meio a sério, que se mantenha o estádio, a ganhar erva, para servir de exemplo à população de como se gasta dinheiro de forma perdulária. Seria um monumento à estupidez nacional. O endividamento foi muito grande. Anualmente estamos a gastar, em média, mais de 10 por cento do que aquilo que podemos. Isto é incomportável. A solução tem sido ir ao estrangeiro pedir emprestado, mas qualquer dia fecham-nos a torneira.

Aos erros estratégicos do Estado soma-se o descontrolo e desgoverno por parte dos particulares. Há algum fenómeno de imitação?

Depois de na década de 80 termos tido uma alta taxa de poupança, especialmente quando os emigrantes enviavam para cá dinheiro, a taxa de aforro dos particulares é, provavelmente, uma das mais baixas da Europa. O mesmo se passa com o aforro do Estado e das empresas. Um país que insiste em viver à custa do empréstimo externo não consegue sair deste ciclo vicioso. Eu sinceramente pensava que a crise estalava por volta de 2005, o que teria sido melhor para nós.

Teríamos recuperado mais cedo?

 Em 2005 as condições económicas mundiais eram melhores e a nossa dívida ainda não era tão avultada. Seria mais fácil recuperar. Agora a situação é especialmente complexa. Os mercados estão a emprestar cada vez menos a Portugal que está a viver muito à sombra do Banco Central Europeu. Temos de sacrificar o investimento para não castigar demasiado o consumo. A taxa de investimento ameaça o crescimento económico no futuro de modo preocupante. Perante este quadro, não há outro remédio que não seja apertar o cinto, tanto do lado do Orçamento do Estado, das famílias e das empresas.

Como se costuma dizer, o doente não morre da doença, acaba por morrer da cura?

O grande problema do apertar o cinto é que faz diminuir a produção nacional. Com a retracção do consumo, adquire-se menos produtos produzidos cá, as famílias vão menos aos restaurantes, frequentam menos hotéis dentro de portas, etc. O resultado é o que já conhecemos: menos produção, menos crescimento e mais desemprego. O desemprego vai continuar a subir.

O défice não é o maior problema que enfrentamos?

Fala-se muito do défice orçamental, mas o desequilíbrio externo é que é verdadeiramente gravoso e, pelo menos até final de 2010, ainda não estava a ser combatido como deve ser. No meu entender não saímos disto tão depressa.

Quando acontecer, a nossa recuperação será mais lenta que a dos outros países europeus?

Certamente, porque o nosso desequilíbrio externo não tem paralelo. Temos perspectivas de crescimento económico no médio prazo francamente pessimistas face aos restantes parceiros europeus, exceptuando porventura a Grécia. Nos próximos 5/6 anos não vejo que a situação se altere. Talvez consigamos aumentar algo as exportações. Internamente creio que se o Estado não tivesse cortado 5 por cento na função pública, dentro de alguns meses os funcionários públicos não receberiam o seu salário.

Colhe o argumento que se ouve da "vox populi" que são sempre os mais desfavorecidos a sofrerem a maior fatia dos sacrifícios?

Quem sofre verdadeiramente com as restrições orçamentais são os desempregados e a parcela mais pobre da população que perde os apoios sociais que tinha. Disso não tenhamos dúvidas. Se compararmos com as pessoas que mantiveram o seu emprego, constata-se que estas até não sofrerem um abalo tão forte. Os grandes protestos estão a vir de grupos bem organizados, que estão longe de ser os mais necessitados, mas que não querem abdicar de ceder o seu bocadinho. Hoje em dia ninguém quer perder direitos adquiridos, toda a gente acha que deve ganhar mais. Os polícias, os professores, etc. Quando devia acontecer o contrário, deviam ganhar menos.

Pensa que os portugueses já interiorizam a crise nos actos concretos do dia-a-dia?

Registou-se uma grande transformação cultural na sociedade portuguesa. A poupança é um valor do passado. Aforra-se pouco ou nada. O poder do marketing e o firme desejo de querer manter aparências faz disparar o consumo. O que é censurável é que os portugueses se revelem extremamente imprudentes visto que certas funções que o Estado Social garantia há uns anos atrás, em breve podem não existir.

Subscreve que pagamos muitos impostos, mas ao contrário de outros países não temos contrapartidas reflectidas, por exemplo, na Saúde, Justiça ou Educação?

A carga fiscal em Portugal não é excessiva em relação à média europeia. Não é isto que surpreende. Chocante é a ineficiência dos serviços públicos. No domínio da educação devíamos se calhar investir ainda mais dinheiro, e melhor, devido às tais razões de natureza social que atrás referi. O sistema de Saúde é bem melhor que o da Educação e da Justiça. Existe uma clara ineficiência, mas não é dos piores no contexto europeu. Mas isto explica-se pelo paradigma cultural: Aqui, à mínima dor de cabeça, corre-se para as urgências. Em Inglaterra, sistema que conheço bem porque a minha filha trabalha lá, os médicos dão aos doentes apenas aquilo que devem dar e não tudo aquilo que eles lhe pedem. Aqui os médicos não têm autoridade suficiente para se impor. Neste sector como na educação os lóbis são ainda mais diversificados e quiçá mais poderosos, mas não vejo outra alternativa que não seja racionar os medicamentos.

Os mais poderosos ficaram, uma vez mais, à margem dos sacrifícios?

Concordo com a crítica que os ricos estão a pagar pouco a crise e não estão a contribuir suficientemente para o sacrifício nacional. Contudo, existe um pormenor que dificilmente se conseguirá iludir: os mais abastados têm facilidade em escapar, conseguindo depositar o seu dinheiro no estrangeiro, eventualmente em paraísos fiscais, fugindo aos impostos, etc. Não é uma situação desejável, mas é o mundo em que vivemos…

A ajuda internacional, nomeadamente a entrada do FMI ou o recurso ao fundo europeu de estabilização financeira, tem sido o tabu das últimas semanas. É inevitável que Portugal solicite auxílio de instâncias internacionais?

Não vejo alternativa. Há meses que alimentamos a esperança de escapar, mas é apenas uma questão de tempo, visto que os mercados não nos estão a emprestar dinheiro. Só nos resta o Banco Central Europeu, mas não durará muito tempo. Se ficarmos isolados e sem ninguém que nos empreste o país cai num caos absoluto, com consequências difíceis de imaginar. O empréstimo externo é o ar que nos faz sobreviver.

O FMI ou o fundo de estabilização financeira vão fazer o que ainda não foi feito?

Sem dúvida. As medidas serão mais dolorosas ainda. Os sacrifícios serão ainda maiores, mas creio que nos trarão mais benefícios do que desvantagens.

O empresário António Carrapatoso defendeu que o Estado deve ser  gerido como uma empresa.

Há muitos problemas associados ao funcionamento do Estado. A máquina estatal está capturada por lóbis e continua a não atrair os mais competentes. Trabalhar para o Estado já não tem o prestígio de outrora. É vulgar auferir mais numa pequena empresa do que ganha um ministro num alto cargo executivo do governo. Quanto aos lóbis eles sentam-se à mesa do orçamento sempre que lhes deixam. Como o Estado não se consegue impor, vão-se sentando e deixando-se estar.

Os melhores têm medo ser salpicados pela lama política?

Essa é uma razão, mas a "massa" é outro factor determinante. Infelizmente, as pessoas são mais avaliadas pelo tamanho do carro do que pelo mérito, são mais reconhecidas por terem passado férias num destino de moda do que por alcançarem uma grande realização profissional, etc.

Defendeu recentemente que os políticos responsabilizados por situação de défice orçamental devam ser penalizados pelo Tribunal de Contas. Que trâmites processuais teriam que ser ultrapassados?

Em primeiro lugar, essa é uma proposta que deve ser estudada. É preciso definir com rigor o que é que se entende por défice orçamental. Há muitas práticas de desorçamentação que denunciam que não se cumpriu o défice, quando à primeira vista não é isso que parece. E a desorçamentação anda por todo o lado. Veja que as câmaras municipais deram em criar empresas municipais e é lá onde colocam os custos, quando no fundo estão endividadas até ao cucuruto. Mais um exemplo: o governo da Região Autónoma da Madeira nunca cumpriu os orçamentos e depois consegue sempre obter o dinheiro que desbaratou com ajuda do governo da República. Com este tipo de comportamento vamos em direcção ao abismo.

Os prevaricadores deviam sofrer penas de prisão?

Não defendo esse limite. Preconizo sim que se percam direitos públicos. Muitos dirigentes autárquicos e regionais já deviam estar inabilitados da política há muito tempo pela forma como administram os dinheiros públicos. Estou em crer que seria um passo importante para promover uma cultura de responsabilização.

Qual é o maior problema do sistema educativo português?

São vários. Residem, fundamentalmente, no Ministério da Educação, nos pedagogos e na falta de disciplina existente nas escolas. Mas há um ponto que importa ressalvar: Portugal é dos que pior desempenho têm em matéria de ensino na União Europeia e que gasta em termos de proporção do PIB o equivalente, mais ou menos, à média europeia. Resumindo, gasta o mesmo que outros, mas apresenta muito piores resultados.

A culpa é do sistema?

José da Silva LopesO sistema de ensino é ineficiente, mas a principal responsabilidade reside nas famílias. Os filhos de pais analfabetos têm menos possibilidade de sucesso escolar do que os filhos de pais com um nível de instrução médio ou alto. O Banco de Portugal fez um estudo recente que demonstra que a ineficiência do ensino é atribuída ao facto de termos um sistema social em que a ignorância e pobreza familiar ainda dominam. Por estes factores até admito que Portugal invista mais que os outros países europeus, visto que o Estado tem de fazer o esforço que a família não faz por falta de condições.

A falta de exigência é a eterna pecha que há que ultrapassar?

Tem de acabar a ideia de que o aluno vai passando sempre sem dar provas. É inaceitável. É uma lógica negativa para os alunos maus e perigosa para os alunos bons. Andam todos a passo de caracol por causa dos menos capazes. Conheço o caso dos Estados Unidos, onde estudam os meus netos, em que existe uma turma central e depois os mais avançados e os com mais dificuldades têm aulas extra em turmas separadas. É fundamental que se adopte este modelo. Lamento que os interesses corporativos, nomeadamente os sindicatos, e episodicamente uma associação de pais, dominem excessivamente a educação e prejudiquem fortemente o seu natural desenvolvimento. Na educação seguramente que a maioria dos ministros que por lá passaram, nem 30 por cento do que o sector precisava fizeram. Toda a gente sabe que quem manda no ministério da 5 de Outubro são os grupos de interesse e não o ministro. E sempre que se quer fazer alguma coisa neste país, seja a avaliação, fechar escolas com dois alunos ou outra coisa qualquer, os sindicatos opõem-se.

A crispação decorrente do braço de ferro entre sindicatos e a ex-ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, prejudicou o normal funcionamento do sector?

Bom não foi. Admito que o modelo de avaliação preconizado por Maria Lurdes Rodrigues se tornou demasiado complicado e pecou por inoperância. Não podemos é tratar por igual o professor que é mandrião e nada sabe da profissão, ao que trabalha e sabe o que está a fazer. E actualmente tratam-se todos da mesma maneira. Não pode ser. Acho extraordinário como no acesso à carreira docente não se fazem exames. Há uma coisa que se chama concurso documental que é uma verdadeira farsa. E isto passa-se há anos. Do mesmo modo que acho pouco próprio o sistema de incentivos que existe em Portugal para a classe docente. O comportamento racional de um professor seria não trabalhar. Aqui progride-se pela antiguidade, em vez de se avançar pelo mérito. Para quê ser competente, dedicado e esforçado?

O debate entre o público e o privado, tanto em termos de qualidade como nos apoios estatais, são tema recorrente. Toma partido por qual?

Eu entendo que o privado só deve ter auxílio do Estado quando não cobra propinas. Se cobrar, estamos a dar a estas instituições não públicas uma vantagem competitiva enorme.

Relembro uma frase sua: «Há qualquer coisa de atávico de não valorizar em Portugal o conhecimento e a formação». O ensino juntamente com a Justiça são duas marcas do desastre do Portugal moderno?

O ensino português é um desastre. O analfabetismo decaiu, mas o nível de literacia nacional é provavelmente o mais baixo de toda a Europa. Um escândalo. Sem mão-de-obra qualificada não se pode ir a parte nenhuma e não temos oportunidade de concorrer com países que possuem sistemas educativos muito mais evoluídos. O crescimento económico depende, fundamentalmente, da qualidade profissional dos recursos humanos. Empresas eficientes e competitivas precisam de gente capaz. No que diz respeito à Justiça, temos uma legislação excessivamente garantística. Os exemplos estão aí. O caso BPN que envolve o Oliveira e Costa tem 800 testemunhas!?! Qual é o sistema que permite isto? Dentro de 10 anos prescreve. O Maddof foi condenado em 6 meses.

As universidades salvam a honra do convento?

De facto, há que reconhecer que enquanto o ensino primário e secundário regrediram para um nível insatisfatório, as universidades progrediram. O ensino superior português produz recursos humanos de qualidade média e muitos deles dão o salto para o exterior. Temos várias instituições que fazem boa figura em qualquer parte do mundo. 

A cara da notícia
O homem que salvou o país da bancarrota

José da Silva Lopes, nasceu em Seiça, Ourém, a 10 de Maio de 1932. Licenciado em Finanças, pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG), iniciou a sua carreira como técnico do Ministério da Economia, de 1955 a 1969, vindo a ter um papel importante nos processos de adesão de Portugal à EFTA e no Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entre 1969 e 1974 foi, simultaneamente, vogal do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos e director do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério das Finanças, tendo sido chefe-adjunto das negociações do Acordo de Comércio Livre com a CEE, em 1972. Foi governador do Banco de Portugal, de 1975 a 1980, num dos períodos mais conturbados da história económica portuguesa. É a si que se devem as negociações para os planos de estabilização do FMI que impediram uma crise grave em Portugal. Fez parte dos primeiros quatro governos do pós-25 de Abril e, mais tarde, foi ministro das Finanças e do Plano, em 1978. Representante de Portugal junto do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, entre 1991 e 1993, exerceu funções como consultor do FMI e do Banco Mundial, a partir de 1980. Foi Deputado à Assembleia da República, entre 1985 e 1987. Entre 1988 e 1995, presidiu sucessivamente a Comissões para a reforma dos Sistemas Fiscal e Financeiro. Foi presidente do Conselho Económico e Social entre 1996 e 2003. Na banca privada foi técnico consultor do Banco Lisboa & Açores, de 1965 a 1969, e presidiu ao Conselho de Administração do Montepio Geral, de 2004 a 2008. É actualmente vogal do Conselho de Administração da EDP Renováveis, desde 2008, e deputado eleito pelo PS na Assembleia Municipal de Ourém, desde 2009. Tem proferido conferências em Portugal e no estrangeiro, publicou várias dezenas de artigos e é autor do livro A Economia Portuguesa desde 1960 (1999, Gradiva). Recebeu das mãos do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, a Grã-Cruz da Ordem de Cristo (2003).

Nuno Dias da Silva
António Pedro Ferreira / Expresso
 
 
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