Um Homem da meia Maratona (um conto de Entrudo)
Hoje vou ocupar o meu sítio para traçar, neste
exíguo espaço que me cabe, o perfil aproximado e não merecido pelo
tempo desperdiçado, do homem da meia maratona, que é como quem diz,
metade homem, metade maratona.
Não merecido, em primeiro lugar,
porque é sabujo e refractário a qualquer vacina de cidadania e de
confronto honesto. Além do mais, corre apenas com quem tem de o
seguir, nunca ultrapassar. Zanga-se porque quer dar ares de
saudável e número um entre todos os números um que o
rodeiam. É o seu circo preferido.
Desconheço, no entanto, se corre
por gosto. Sei que me canso de o ver correr. A maior contradição em
mim é de, apesar disso, ter um desejo profundo que o ponham a
correr para sempre…
Das transumâncias que lhe vi fazer
até às planícies do sul, nunca soube se foram por lã, leite ou erva
fresca. Sei apenas que as fez. Sei da lábia com que as diz ter
feito e oiço falar das habilitações truculentas que lhe são
atribuídas e de que peço escusa para interpretar, tal é o enleio.
Digamos que teve as suas oportunidades em tempo de vacas gordas.
Aliás, tenho bons amigos e excelentes cidadãos que nunca
frequentaram qualquer escola. O meio-maratonista, porém, gosta de
dizer que é letrado, licenciado, superior nas coisas do saber, mas
não passa dum saloio esperto com vocação para a patranha
política.
Anuncia mil vezes a única vez que
afinal não fez e tem desculpas para os incautos, do género: aquele
menino está a fazer-me caretas. É um queixinhas.
Os queixinhas não são de fiar.
Fundamentalmente porque efabulam, como é o caso, mentem e, ainda
por cima, gesticulam como náufragos, para que os outros se
compadeçam e o deixem continuar a meia corrida, que só ele parece
não se aperceber de que vai para o abismo.
Na fala, não na língua, tem o seu
melhor aparelho. Se em idiomas estrangeiros é língua de trapo, na
sua é capaz de por um cego a ver, sendo que este continua a ver
tudo escuro.
A maratona (meia) é outro ardil. As
camisolas suadas são a imagem de que lhe saem pelos poros o que lhe
entra pelas ideias: água. Água nas promessas, água na retórica,
água nas contas que todos temos de pagar. Os subsídios para esta
corrida estão a esgotar-se e ainda não obteve os mínimos para o
próximo campeonato. Os pódios da Europa são provavelmente as suas
próximas ambições. Lá fora, a corrida é tentadora, os patrocínios
são chorudos e apetecíveis e faz-se um figurão.
Oxalá a equipa não lhe renove o
contrato, já que a contratação por outra está fora de questão,
mesmo da segunda bê e do fundo da tabela.
Por último, queria apenas
acrescentar que há dias retive do seu discurso algo que me intriga.
Dizia-se convencido de que uma mulher trazia a sua fotografia no
bolso. Aparentemente a frase é ingénua, embora mais pareça
ironia própria de machão no bar da coxa.
Esta era a peça que me faltava. No
bolso? As mulheres não põem quase nada, e muito menos fotografias,
no bolso. Quando muito, na bolsa. Querem ver que o
meio-maratonista corre de calções apertados!...