Entrevista

Maria da Graça Carvalho, ex-ministra da Ciência, Inovação e Ensino Superior
«Existe um défice de doutorados em Portugal»

_MG_3476.jpgMaria da Graça Carvalho é uma referência nacional e internacional no domínio da ciência e da inovação. A antiga ministra fala do programa Horizonte 2020, do potencial científico de Portugal, do ensino superior e do projeto europeu.

Foi distinguida com o Prémio Maria de Lourdes Pintassilgo, atribuído pelo Instituto Superior Técnico (IST). Qual a importância desta distinção?

Fiquei, ao mesmo tempo, contente, surpreendida e honrada com o prémio. Considero esta distinção muito importante principalmente pelo simbolismo. Maria de Lourdes Pintassilgo foi uma das primeiras mulheres engenheiras em ambiente fabril. Trabalhou, entre outros locais, na CUF. Mas esteve sempre de uma forma feminina. Defendeu que a igualdade não é imitar os comportamentos masculinos, mas reside na diversidade. E são esses os valores que as mulheres devem trazer para a sociedade, para a profissão e para a política: a sua maneira de ser e de resolver os problemas, necessariamente distinta da dos homens.

E de que forma é inspirador por este prémio levar o nome da primeira mulher ministra e que liderou um governo em Portugal?

Maria de Lourdes Pintassilgo esteve na política e ficará para a história por ter sido, até à data, a primeira e única primeira-ministra no nosso país. Não querendo comparar, não posso deixar de notar que tenho um percurso que se desenvolveu no mesmo sentido. Nunca estive em ambiente fabril, mas numa primeira fase da minha carreira, fui professora do Técnico e investigadora na área da engenharia, com muitos projetos em parceria com a indústria: trabalhei em ambiente de fábrica, que é uma realidade que verdadeiramente gosto. Numa etapa posterior, estive na política, primeiro como ministra do XV e XVI governos e depois deputada ao Parlamento Europeu, cargo que Maria de Lourdes Pintassilgo também desempenhou. Não deixa de ser interessante esta semelhança de percurso.

Agora está na pele de conselheira dos decisores da Europa…

Sim, agora estou em funções como membro da Unidade de Aconselhamento Científico da Comissão Europeia, uma administração pública internacional das mais prestigiadas e competentes do mundo.

Dizia o comissário Carlos Moedas no discurso durante a cerimónia de atribuição do prémio que «não podemos ainda falar em igualdade de género na ciência e na investigação». O que falta para encurtar esta distância?

Falta ainda muito. Em Portugal, no ensino superior, nos alunos de pós-graduação, mesmo nos investigadores, as mulheres estão em maioria, mas quando começamos a avançar ao longo da carreira o número de mulheres vai diminuindo de forma vertiginosa. Na carreira académica começamos por ter muitas alunas de doutoramento e doutoradas, mas já temos menos professoras associadas e muito menos professoras catedráticas. Se falarmos de reitoras, a situação ainda se agrava mais. E isto acontece tanto na ciência e na vida académica como em outros setores da sociedade. Estou a referir-me, nomeadamente, ao setor empresarial em que a situação é especialmente flagrante. Veja que, no universo das empresas cotadas na bolsa de Lisboa, só uma empresa é que tem uma presidente mulher e nos conselhos de administração, só 12 por cento da composição dos seus membros são mulheres.

Isso deve-se a alguma resistência social?

Há um ecossistema com hábitos masculinos muito enraizado, que faz com que os homens que estão nas empresas convidem para trabalhar as pessoas que estão mais próximas, que também são homens. Trata-se de uma barreira difícil de penetrar. Por isso, é que eu sou defensora das quotas, como medida transitória, para permitir que as mulheres rompam com este ecossistema instalado e comecem a entrar nestes circuitos. Entretanto, também se assiste, para já noutros países, que não em Portugal, a uma regressão no ;  número de mulheres nalgumas áreas tecnológicas, nomeadamente na computação e nas tecnologias da informação, que são grande áreas de futuro. Falo, por exemplo, da Suíça e dos Estados Unidos, países que tinham números muito significativos de mulheres nestas áreas nos anos 80. É precisamente nas empresas tecnológicas que o desnivelamento no número de mulheres e homens é mais acentuado. É o caso da Google, Linkedin, Apple, que têm um número de mulheres muito reduzido e as que existem não estão geralmente em funções técnicas.

O prémio que recebeu distingue duas mulheres formadas pelo IST. O que é que esta escola de referência lhe deu, em termos de qualificação e de valores?

Algo muito importante que destaco é o método de estudo e de trabalho: como organizar um trabalho, um projeto, um relatório, o trabalhar em grupo. Isto é algo que se aprende no Técnico, e em especial, na engenharia mecânica, que é a minha área. Lembro-me que havia uma cadeira, Organização da Produção, que na altura de estudante era mal compreendida e o tempo veio a confirmar a sua enorme utilidade, porque, no fundo, dá-nos a conhecer métodos para organizar o nosso trabalho. Depois, algo que eu tenho e que é também inato, mas que foi cimentado ao longo do curso: a capacidade de olhar para problemas muito complexos e tentar percebê-los, simplificá-los, modelá-los e tirar conclusões.

_MG_3662.jpgNo fundo, está a elencar uma abordagem científica e factual…

É uma abordagem científica e de engenharia para resolver problemas complexos. E tive sempre essa preocupação quando fui professora no relacionamento com os meus alunos. O segredo para resolver problemas complexos reside na metodologia de trabalho empregue, com a particularidade que para além da vida académica, também a podemos usar, e com bons resultados, na vida quotidiana.

É isso que explica o elevadíssimo, quase total, índice de empregabilidade dos alunos saídos do Técnico?

Sem dúvida. Os métodos que aqui são ensinados servem para múltiplas áreas. Quando em engenharia mecânica ensinamos os alunos a modelar e a resolver problemas complexos, a aplicação pode ser em engenharia, mas também nos serviços, no comércio ou na banca. Saber modelar sistemas complexos tem aplicação em múltiplas áreas.

É uma vantagem tremenda face aos cursos de lápis e papel, muito pouco práticos…

Os cursos de engenharia pretendem dar resposta a problemas complexos e no quadro de uma sociedade cada vez mais dependente das máquinas.

É investigadora, professora, autora, conselheira, foi deputada, eurodeputada, ministra. Em qual destas peles se sente mais confortável?

Provavelmente investigadora, apesar de a docência também ser importante. E porque não existiu uma sem a outra. É um binómio que não se pode separar. A minha atividade de professora estava muito ligado aquilo que eu fazia na investigação. Mas, para ser franca, onde eu me sentia mais realizada era na formação de alunos de doutoramento. Formar pessoas que depois se tornam grandes investigadores, grandes professores ou pessoas com cargos de relevância na sociedade deu-me uma grande realização pessoal.

Veio da academia para a política. Sentiu um impacto forte e um choque entre esses dois mundos?

Sabe que, também na política, sempre tive uma perspetiva de aplicar os mesmos métodos que aplico na engenharia. Por exemplo, no início da minha atividade governativa deparei-me com um problema complicado para resolver: tinha havido um aumento de propinas e os alunos estavam na rua em protesto. Os alunos argumentavam que muitos ficariam excluídos do sistema por razões económicas e foi preciso analisar em concreto o que se passava. A minha primeira tarefa foi analisar o problema e resolvê-lo. Tinha de ter dados, quantificá-los, saber o número de casos, perceber quais os melhores modelos utilizados nos diversos países e comparar os vários cenários, definir vantagens e desvantagens e só depois propor uma solução em Conselho de Ministros. E assim foi. Propus que se mantivesse o valor das propinas, mas que se aumentasse consideravelmente a ação social, de modo a que todos os alunos que não pudessem pagar as propinas vissem estas serem pagas pela ação social. A contestação praticamente cessou. Recordo-me, inclusive, que o meu grau de risco de segurança que era definido pelo corpo de segurança pessoal da PSP foi reduzido para zero. Isto para dizer que resolvi um problema político seguindo a mesma metodologia com que eu costumava dar resposta a um problema de engenharia ou científico.

Teve papel preponderante na aprovação do programa Horizonte 2020, estimado em 77 mil milhões de euros e que é gerido pelo comissário português, Carlos Moedas. Qual a sua importância?

É o maior programa de ciência, inovação e investigação do mundo e tem como objetivo financiar investigação fundamental, mas também a passagem dos resultados da investigação fundamental para a prática e a inovação. Mas é preciso referir que o programa Horizonte 2020 não vai resolver os problemas da Europa por si só. É preciso que os Estados Membros também sigam o exemplo da Europa e apostem cada vez mais na ciência e na inovação. Para além disso, é necessário que os Estados Membros ponham em prática medidas que conduzam à criação de um ambiente propício à inovação. Enquanto no caso da ciência é crucial que haja investimento público, no caso da inovação só investimento público não chega. É preciso que se criem condições para que a inovação floresça. Mesmo que se financie a inovação, se em paralelo existir muita burocracia, se o mercado não funcionar convenientemente, se a administração pública não colaborar, se as leis do trabalho não forem favoráveis à atração dos mais qualificados, a inovação não vai acontecer. A inovação é a passagem do conhecimento para a realidade, para a economia e para a sociedade.

De que maneira o comissário Moedas tem procurado melhorar estes aspetos?

O Comissário Moedas tem desenvolvido toda uma política para dinamizar o ecossistema da inovação. Trata-se de um sistema muito complexo, que não é linear e que - repito - não depende apenas da existência de financiamento.

A Europa estar a braços com muitas dificuldades e a várias velocidades não é um obstáculo adicional?

Felizmente há bons resultados em vários países, incluindo Portugal. O nosso país é um dos casos em que os indicadores da ciência e da inovação têm mostrado progressos assinaláveis ao longo dos anos. Mas não se pode parar o trabalho. Este esforço representa uma batalha contínua. 

O ministro Manuel Heitor disse em entrevista o ano passado, pouco depois de ter assumido a pasta da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que quer vencer o problema do emprego precário na ciência, que passa por mais autonomia das instituições e contratos laborais mais flexíveis. É o fim dos cientistas de bolsa em bolsa e dos precários?

Há aqui duas questões a analisar. As bolsas devem existir quando são verdadeiras bolsas. O que o ministro Manuel Heitor está a procurar fazer, e muito bem, é evitar que as bolsas sejam usadas em condições em que não são bolsas e são usadas para substituir necessidades permanentes de trabalho. Agora, a bolsa genuína é um instrumento que existe em todo o mundo e é muito útil, mas não deve ser usado com outras finalidades.

Mas a precariedade ainda é grande na comunidade científica?

Sim, mas está a ser feito um levantamento dessa precariedade pelo Governo. Não é fácil, precisamente por ser necessário distinguir entre as verdadeiras bolsas e o uso abusivo de bolsas. É um trabalho difícil, mas que é da maior justiça que seja feito.

Portugal ainda é um país com potencial científico por explorar?

Sim, é verdade. O número de cientistas e de doutorados tem aumentado de uma forma constante. Este facto é fruto de uma política que tem sido seguida de uma forma continuada de atribuição de um número crescente de bolsas de doutoramento. Há cerca de 15 anos eram atribuídas, salvo erro, 500 bolsas por ano. No meu tempo no Governo, há 10/12 anos, passou-se para 1000 ou 1200 e neste momento atingiu-se a marca das 2500 por ano. Só conseguimos ter excelência se alargarmos a base e o domínio de onde partimos. É por isso imprescindível ter cada vez mais cientistas, na academia, em institutos de investigação, mas principalmente nas empresas. E é com pessoas muito qualificadas que se constrói uma sociedade baseada no conhecimento. Ainda existe um défice de doutorados em Portugal, especialmente nas áreas da tecnologia da informação e da computação, em que existe manifestamente um défice de engenheiros, mestres e doutores.

O presidente desta casa onde estamos, o Técnico, Arlindo Oliveira, escreveu um artigo no «Público» chamado «uma revolução na edução», em que afirma que «dois terços dos alunos que agora iniciam a sua formação escolar irão trabalhar em profissões que ainda não existem». A formação ao longo da vida e a adaptabilidade serão duas armas mais poderosas de quem quiser vingar?

Sem dúvida. Já no meu tempo, o Técnico me preparou para esses desafios que agora são cada vez maiores. A capacidade de analisar, pensar, trabalhar e de organizar aprende-se na Universidade. Para além disso, há uma evolução da ciência e da tecnologia que é vertiginosa, em que as coisas mudam com uma velocidade tremenda. Perante este cenário de mudança constante é preciso ensinar os alunos a lidar com os problemas mais do que com o conteúdo dos problemas.

Há dificuldade em fixar licenciados em certas áreas como engenharias. A fuga de cérebros pode ser estancada?

O sistema académico e o sistema público não são suficientes, nem deve ser, para absorver todos. É muito importante que os doutorados e os engenheiros tenham um papel importante na sociedade e que não fiquem confinados ao sistema público ou académico. Uma forma de diminuir o número de licenciados e doutorados que vai para o estrangeiro é melhorar a economia. Essa é a grande solução para a fuga de cérebros. Mas também há o raciocínio inverso. Eu não tenho ainda dados suficientes para afirmar o que vou dizer, mas acredito que um dos motivos que levou Portugal a reagir relativamente bem à crise foi a grande qualificação dos seus jovens. Não só porque alguns foram para fora, como outros tiveram a preparação e a imaginação de criarem alternativas, como o nascimento de start-ups. A base de qualificação foi essencial. Ter feito um curso, ter feito Erasmus, ter tido acesso a informação foi essencial para dar novos horizontes, promover novas ideias e dinamizar novos conceitos e novos negócios. Acho que é isso que está a acontecer em várias cidades do país, em que Lisboa é, porventura, o melhor exemplo.

Pensa então que este processo de reação à crise, doloroso para muitos, pode, ao fim e ao cabo, ter ilações positivas?

Nunca é bom as pessoas terem de ir para o exterior por imposição. Mas a mobilidade é positiva. Falo por experiência própria. A minha experiência no estrangeiro valorizou-me e deu-me perspetivas que nunca teria tido de outro modo. No entanto é negativo um país formar os seus recursos humanos para outras economias de forma generalizada. Esta situação acontece, por exemplo, nos cursos de enfermagem, em que estamos a beneficiar outros países com o investimento nos nossos recursos humanos. O prestígio dos enfermeiros portugueses está no topo ao nível europeu e estes jovens são imediatamente absorvidos ou no Reino Unido ou na Suíça. Acontece que o curso de Enfermagem é uma licenciatura complexa e dispendiosa. Espero que, com a melhoria da economia em Portugal a situação se altere. Há muita necessidade de técnicos da saúde no nosso país em consequência do envelhecimento da população.

Concorda com o argumento dos politécnicos que querem atribuir doutoramentos como as universidades?

Eu entendo que os politécnicos têm uma missão diferente das universidades e um papel muito importante, mais próximo dos setores locais e regionais. Defendo que devem existir politécnicos e universidades, mas acho que os politécnicos que tenham capacidade para isso deverão dar doutoramentos, com um perfil diferenciado relativamente aos doutoramentos que as universidades atribuem. A capacidade de uma instituição dar doutoramentos deve ser baseada numa avaliação de qualidade com base em indicadores estabelecidos, por exemplo, por uma agência independente.

A concretizar-se, não podemos estar perante uma banalização dos doutoramentos?

Não, pelo contrário. Todas as instituições, sejam politécnicos ou universidades, podem dar doutoramento se desenvolverem investigação que justifique essa atribuição e desde que cumpram critérios de qualidade para tal. A índole dos doutoramentos será diferente consoante a missão da instituição.

Uma questão final sobre a União Europeia e o mundo. Como profunda conhecedora dos corredores de Bruxelas, como vê o projeto europeu, no rescaldo do brexit?

Estou otimista. Acho que a Europa é mais necessária do que nunca porque os problemas são complexos, cada vez mais globais e para enfrentá-los temos de estar juntos. Aqueles que queiram estar juntos, naturalmente…

A situação atual é propícia a que os Estados Membros se unam cada vez mais para terem a capacidade de enfrentar questões tão complicadas com a globalização, o mercado internacional, as crises das migrações, as alterações climáticas. Um país, de pequena e média dimensão, não consegue sozinho combater estes desafios.

Com Trump a ignorar a Europa, o desafio do velho continente será combater a irrelevância?

A Europa nunca será irrelevante em termos mundiais. É uma Europa de valores, que defende o ambiente, os direitos humanos, a cultura, a qualidade de vida, o conhecimento e não é por acaso que é o local mais procurado do mundo para viver. É esta a nossa força.

Nuno Dias da Silva
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