Entrevista

Carlos Anjos, presidente da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes
«Uma política de cidadania começa no jardim de infância»

IMG_5314.jpgA cada 20 minutos há uma queixa de violência doméstica em Portugal. Para mudar o paradigma, Carlos Anjos defende penas mais duras para os agressores e um forte investimento numa educação para a cidadania.

Preside, desde 2011, à comissão de proteção às vítimas de crimes e violência doméstica. Quais são as atribuições deste organismo?
Esta comissão existe em todos os países da União Europeia, por ter sido idealizada pelo Conselho da Europa. Os leitores já ouviram, certamente falar, aquando da leitura de um acórdão em que o condenado é obrigado a pagar uma indemnização de determinado montante à vítima. Acontece que na esmagadora maioria dos casos o criminoso, por não ter dinheiro para pagar, as indemnizações ficam por liquidar. É aqui que entra a comissão.

Que apoio é dado, por exemplo, a uma vítima de violência doméstica?
A comissão foi originalmente criada para dar resposta às vítimas de crimes. Posteriormente, surgiu um outro diploma que deu competências a esta comissão para apoiar as vítimas de violência doméstica que queriam sair de casa e não tinham capacidade económica para tal. O apoio pode ser mensal - por um período até seis meses - que pode ir até ao salário mínimo nacional, prorrogado por mais seis meses. Na prática, o Estado paga às vítimas de violência doméstica que não tenham rendimentos um salário mínimo nacional para que elas se consigam reorganizar, reinserir-se no mercado de trabalho e, de alguma forma, conseguir ter uma capacidade vivencial e social maior.

Que casos mais dramáticos chegam até à comissão?
Chegam as vítimas mais fragilizadas da violência doméstica, nomeadamente as institucionalizadas em casas-abrigo ou que não têm qualquer capacidade económico-financeira, etc. No que diz respeito aos crimes violentos somos confrontados com situações em que as vítimas não encontraram reparação económica da parte dos agressores. Nós temos um particular cuidado com os chamados «filhos da violência doméstica», em que a mãe ou o pai morre e o outro vai para a cadeia. Nesse dia a criança fica órfã de pai e mãe.

O caso do filho de Luís e Rosa Grilo é um exemplo…
Não completamente, porque o jovem tem família e vai herdar cerca de meio milhão de euros. Mas a esmagadora maioria dos casos em Portugal não é assim. Os miúdos ficam numa completa desproteção e os casos mais graves, quando os tutores acolhem as crianças, recebem uma compensação financeira por parte da comissão para suprir as dificuldades.

O tema da violência doméstica está na ordem do dia. Só nos primeiros dois meses do ano foram assassinadas 10 mulheres. O que está na base deste flagelo?
A violência doméstica é um crime de poder. As relações entre pessoas são sempre de poder, em que um dos membros do casal tenta ser o líder. Ter ascendente sobre o outro. Mas é preciso afirmar que este não é um problema só português, ele existe à escala mundial. A estatística sobre os dados de violência doméstica nos países do norte da Europa são ainda mais dramáticas do que em Portugal. Nos países nórdicos regista-se uma supremacia dos casos de violência psicológica sobre os casos de violência física. No sul da Europa, pela forma de estar que carateriza os latinos, a violência tende a ser mais física.

A que se deve essa manifestação distinta de violência?
Creio que tem a ver com a educação, ou melhor dizendo, a má educação que tivemos. Eu costumo dizer que é um problema da moral judaico-cristã, porque o género não era paritário. Os homens e as mulheres tinham direitos diferentes, pelo menos na prática. E isso transportou-se para a vida comum. Mas devo confessar que não estou nada otimista com os números divulgados. A estatística de violência no namoro já supera os registos nas relações entre adultos. Um inquérito recente da Universidade do Minho, feito a jovens universitários, dizia que 70 por cento dos jovens considerava normal a agressão entre si. É uma conclusão que não augura nada de bom.

Defende uma legislação mais dura?
Vamos a casos práticos usando o Direito Penal. Se eu assaltar um supermercado, roubar uns chocolates, apontar uma pistola à funcionária da caixa e tirar-lhe 15 ou 20 euros, eu cometo um crime de roubo. Em tese posso ser punido até 16 anos de prisão. Mas se eu violar uma mulher sou punido, no máximo, até 10 anos. Tirando o homicídio, que tem a pena máxima de 25 anos, nos outros crimes - todos contra as pessoas - as penas são relativamente baixas. Após a revolução de abril, o legislador deu uma importância acrescida aos crimes contra o património superior aos crimes cometidos contra as pessoas, seja os abusos sexuais de menores, a violação, etc.

A moldura penal para a violência doméstica segue o mesmo padrão…
Se um individuo cometer o crime de violência doméstica, a pena máxima é de cinco anos - sabendo nós que no sistema judicial português as penas até esse número são tendencialmente suspensas. Aqueles que ouvimos dizer que estão presos por violência doméstica, encontram-se nessa situação por terem cometido homicídio ou homicídio na forma tentada, num contexto de violência doméstica. Das cerca de 28 mil queixas registadas por ano, existem cerca de 1400 condenações e serão, porventura, cerca de 20 indivíduos que recebem ordem de pena efetiva, já que os restantes levam pena suspensa. Pagam uma multa simbólica e o crime até acaba por compensar.

Para além das leis, como é que se muda este panorama?
Primeiro, é preciso ter uma política de cidadania nas escolas que, infelizmente, não temos. Temos de começar no jardim de infância a desenvolver uma forte política de investimento na cidadania. E não podemos estar à espera dos pais que, na minha perspetiva, nunca educaram bem os filhos. Se o tivessem feito não estávamos no ponto em que estamos. E não me venham dizer que a educação tem falhado apenas nos mais pobres, porque o crime de violência doméstica é transversal a toda a sociedade, incluindo as classes mais altas.

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O caso de Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães é paradigmático…
Exatamente. Ou seja, há vários casos de figuras públicas envolvidas, algumas delas chegaram - inclusive - a protagonizar campanhas contra a violência doméstica. Quero lembrar que Manuel Maria Carrilho foi ministro da Cultura, e sendo também filósofo de formação, deveria simbolizar o espetro máximo dos bons costumes. Isto quer dizer que falhámos. Mas sendo uma questão de natureza estrutural, só iremos ver resultados dentro de duas ou três gerações. Para além da questão dos valores, para mudar o paradigma, a justiça terá de ser muito mais brutal, no sentido de não ter contemplações com quem pisar o risco. Quem prevaricar, irá para a cadeia.

Defende alterações ao Código Penal?
Acho que há dois caminhos: alterar o Código Penal em que de facto os crimes contra as pessoas - onde se incluem a violência doméstica - vejam as molduras penais mais reforçadas. Por outro lado, aceitar ou acatar a recomendação do Conselho da Europa e colocar na lei que os crimes de violência domestica, abuso sexual contra mulheres, menores e idosos, independentemente da quantificação da pena, deveriam ser punidos com prisão efetiva. O valor simbólico, até para a sociedade, de um individuo que cometa um crime desta natureza e receba dois anos de prisão efetiva é completamente diferente de um individuo que seja condenado a dois anos de prisão suspensa. Estou convicto que se cumprir a pena na cadeia dificilmente o irá repetir.

Recentemente foi a vez dos acórdãos do juiz desembargador Neto de Moura suscitarem grande celeuma. São decisões como as que vieram a lume que fazem passar a mensagem que até o tribunal é tolerante com certos crimes?
Os juízes não vieram de Marte, nem aterraram ontem em Portugal. São uma classe formada por homens e mulheres que receberam os mesmos valores e ensinamentos que nós, com a diferença de eles terem ido para magistrados. E têm na sua génese os mesmos défices culturais. Eles são parte da sociedade. E segundo a imprensa relatou também já foram agressores e vítimas nos casos de violência doméstica. Desenganem-se os cidadãos que pensam que é por frequentarem o Centro de Estudos Judiciários que se tornam seres humanos virtuosos. Mas é preciso sublinhar que a violência doméstica entrou no nosso ordenamento jurídico em 2007. Temos já bons exemplos de jovens juízes na primeira instância e que já frequentam cursos sobre as matérias do género e outras associadas, mas para os magistrados mais velhos, que agora estão nos tribunais superiores, há não muito tempo a violência doméstica era considerada coação ou maus tratos. Não é, por isso, de estranhar que muitos destes magistrados olhem a violência doméstica com um certo paternalismo, invocando o velho ditado popular: «entre marido e mulher, não metas a colher». E com a particularidade de estes juízes, ate pelo estatuto alcançado, não serem muito dados a formação continua. Isto que acabei de descrever, apesar de chocar, até ajuda a compreender alguns acórdãos e, no caso particular do juiz Neto de Moura, o inaceitável e incompreensível argumentativo que utiliza.

Como é que se controlam dezenas ou centenas de potenciais agressores, sinalizados ou não, para evitar desfechos dramáticos?
Não é possível. Para ter uma noção, a cada 20 minutos há uma queixa formalizada de violência doméstica. As cifras negras serão, certamente, maiores - estou a falar de quem não apresenta queixa. A polícia e as restantes autoridades fazem uma avaliação de risco quando as vítimas apresentam queixa o que vai determinar, caso o risco seja elevado, medidas especiais. Quero recordar que temos, nos últimos anos, uma média de cinco mil casos de risco elevado em Portugal, o que é quase metade da nossa população prisional. Não é possível, nem razoável prender todos estes indivíduos, por isso é que as autoridades recorrem com frequência a mecanismos como a pulseira eletrónica, mas nem assim é o remédio para evitar que as agressões ou os crimes se verifiquem. Veja o caso de Manuel Palito, que tinha pulseira e, ainda assim, matou. Podem chamar-me securitário, mas creio que a única medida de coação que impede a morte da vítima é a prisão preventiva. É preciso endurecer as medidas decretadas pelos juízes, até como fator de disuassão para outros. Urge ser mais proativos e mais duros com os agressores.

Foi agente da PJ durante 30 anos e passaram-lhe pelas mãos centenas de crimes. O caso da morte do triatleta Luis Grilo é, pelos ingredientes envolvidos, um dos mais mediáticos dos últimos tempos. Caso o corpo não tivesse sido encontrado, podíamos estar perante o crime perfeito?
Havia um professor meu na polícia que dizia: «não há crimes perfeitos, o que há são investigações imperfeitas». Atualmente a polícia dispõe de meios tecnológicos que não existiam há uns anos atrás, mas é preciso saber que estes meios também estão ao serviço dos criminosos. É um jogo de gato e do rato, em que por norma quem vai à frente é o criminoso, que tem o domínio da ação, porque é ele que decide o momento do crime. Mas em resposta à sua pergunta dou-lhe para já um exemplo: o caso do corpo do empresário dissolvido pela Máfia de Braga. Aparentemente era um crime preparado com extrema minúcia, mas a compra de tanto ácido sulfúrico, associada a outros meios de prova, permitiu desmontar o crime e os criminosos. No que diz respeito ao caso do triatleta, tudo aquilo foi montado para ser um desaparecimento. Se o cadáver não tivesse aparecido, acredito que as hipóteses estariam todas em cima da mesa. Os portugueses são grandes treinadores de bancada, não apenas no futebol, mas também para comentar o mundo do crime. E importa lembrar que até ao aparecimento do corpo do Luís Grilo, o amante de Rosa, o António Joaquim, pura e simplesmente não existia na investigação. Aparentemente estávamos perante um casamento feliz, segundo as palavras da própria Rosa. Mas a descoberta do cadáver veio levar a linha de investigação para outra direção e surgiu o caso extraconjugal com o António Joaquim.

Nas horas e dias que se seguem a um crime ou a um desaparecimento, os polícias reparam muito se existe um comportamento frio e um discurso estruturado dos envolvidos. A postura de Rosa Grilo levantou-lhe suspeitas?
Isso são apenas indícios, não são provas. É um feeling ou uma base de trabalho. Aconteceu o mesmo com aquela rapariga do Montijo que matou a mãe, com a ajuda do marido. O que une estes três crimes que estamos a falar, o do Montijo, o de Luis Grilo e o da Máfia de Braga, é que foram todos altamente planeados e não aconteceram por acaso. Em todos aconteceu um facto que os autores não esperavam e que lhes descontrolou a história, mas tal deve-se aos méritos da investigação.

É referido com frequência que a PJ é das melhores polícias do mundo. A polícia de investigação tem estado em greve, exigindo mais meios humanos. A quem interessa uma polícia por arames?
Quero acreditar que não interessa a ninguém. Portugal é um país com uma falta de meios crónica, em diversas áreas. E a área da segurança, e mais concretamente a PJ, também sofre com isso e o problema não é de hoje. A polícia tem hoje, no país inteiro, cerca de mil homens (o que é manifestamente pouco) e as viaturas de trabalho têm quase todas mais de 300 mil quilómetros. Estou em crer que a chegada da troika a Portugal representou uma paralisação na admissão de recursos humanos e até na renovação dos recursos técnicos e estamos a pagar esses anos de marasmo. Atualmente temos necessidade de substituir a frota automóvel toda, os computadores todos e renovar os recursos humanos que se vão reformando e isso custa dinheiro que o país não tem. Isto já para não falar dos salários que também registaram um recuo. É natural que, à semelhança dos professores, dos enfermeiros e de outras classes, os profissionais da PJ também queiram ver as suas condições de trabalho melhoradas.

Um estudo da Comissão Europeia estima que os custos da corrupção em Portugal ascendam a 18, 2 mil milhões de euros por ano, o equivalente ao orçamento do Ministério da Saúde. A corrupção continua a minar a sociedade, sem que se faça nada para a deter?
Para mim, a corrupção é o problema mais preocupante da sociedade portuguesa. Temos dado mais atenção à violência doméstica porque são vidas que se perdem, mas enquanto país a corrupção tem infligido danos incalculáveis em termos económicos e de desenvolvimento de Portugal. Estou em crer que um país economicamente mais próspero também teria menos casos de violência. Se o Estado não tivesse financiando as gestões ruinosas no Banif, no BPN, no BPP, no BES e na própria CGD, provavelmente o país teria capacidade financeira para resolver as reivindicações de todos os grupos profissionais que estão a protestar, baixar os impostos e apresentar uma economia mais competitiva. Não podemos fazer nada disso enquanto vemos nos jornais pessoas que há 20 anos não possuíam qualquer património e hoje são das mais ricas do país. E fico surpreendido por nenhum governo ter atacado de frente este problema, não mobilizando um investimento para a PJ e o Ministério Público combaterem a sério este flagelo.

O problema é só de meios ou também de leis?
Também é de legislação. Repare: fizemos leis para punir o bandido que assalta o banco, mas o Código Penal não prevê que se prenda o individuo que rouba o banco por dentro e que sendo administrador dá cabo da entidade. Não é compreensível que se faça tudo, e mais um par de botas, nos bancos portugueses e não tenhamos ninguém preso ou pelo menos responsabilizado. Como é possível?

CARA DA NOTÍCIA
Polícia durante 30 anos

Carlos Anjos é desde 2011 presidente da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (CPVC), tornando-se o primeiro não magistrado a exercer o cargo. É um órgão administrativo independente responsável, por si ou através dos seus membros, pela concessão de adiantamentos de indemnização por parte do Estado às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, que funciona junto do Ministério da Justiça. Foi durante 30 anos quadro da Polícia Judiciária, onde chegou a inspetor-chefe. Presidiu à Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ. Atualmente é comentador residente no canal CM TV e articulista no jornal «Correio da Manhã», onde aborda e comenta matérias relacionadas com o crime. Sportinguista dos quatro costados, acredita que o clube «não vai morrer» e superará as dificuldades financeiras e o legado do «desgoverno» de Bruno de Carvalho.

Nuno Dias da Silva
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