Editorial
Isto não vai durar para sempre!
Não sei quantos o sabem, por isso me
atrevo a relembrá-lo, que Tomás Morus no seu livro que intitulou de
"Utopia", e que viu a luz do dia pelo já ido e longínquo ano de
1516, nos revela uma extraordinária personagem, de seu nome Rafael
Hitlodeu, nascido e criado em Portugal, mas que cedo abandonou
família, fortuna e a própria pátria para percorrer as sete partidas
do mundo.
E é este português que, num casual
encontro com Tomás Morus, em Antuérpia, nos inícios do século XVI,
lhe revela factos e relatos de usos e costumes de povos
desconhecidos do antropocentrismo europeu de seiscentos.
Factos e relatos que levaram Tomás
Morus a dedicar a segunda parte da sua obra à descrição
pormenorizada de uma ilha imaginária, a que deu o nome de Utopia (a
tal "parte nenhuma"), ilha essa em que a organização social e a
relação do Homem com o Homem eram de tal modo tão perfeitas, de tal
modo tão "ideais", que deveriam ser prosseguidas por todos os
governos que quisessem estar ao serviço dos seus povos.
Deixem-me hoje então falar sobre a
utopia, esse "sonho que comanda a vida", essa utopia que é a escola
que ainda não temos, mas que desejamos a todo o custo, apesar dos
inqualificáveis ataques ao ensino público, aliados ao notório
desprezo pela actividade docente, a que a nossa tutela
recorrentemente se socorre para nos denegrir.
Por isso, hoje, o que deveria ser a
realidade renovadora da escola portuguesa, se constitui como uma
mera utopia para as jovens gerações de professores, que são
obrigados ao desemprego, ou seja, à estagnação dos seus
pressupostos, hábitos e procedimentos formativos. Que desperdício
num país que, em vez de produzir riqueza, apenas sabe produzir
ricos!
Sabíamos e estávamos preparados
para a globalização e para as suas consequências mais visíveis,
tais como as que obrigariam os docentes a mudar de saberes; a mudar
de modos de actuação; a mudar de áreas disciplinares; a mudar de
ciclos de ensino; a mudar de posturas quanto aos modos de eles
próprios aprenderem; a mudar, em consequência, aspectos da sua
profissionalidade. O que não imaginávamos é que tudo isso poderia
ser sacrificado, em escassos meses, no altar dos "mercados", à luz
de pseudo teorias das economias de escala, em que os que produzem
são vítimas dos que usufruem da produção.
Hoje, infelizmente, temos que
reconhecer que quanto à actividade dos docentes, a expectativa da
incerteza é maior do que o conjunto de certezas discursivamente
assumidas pelos rasgos neoliberais dos nossos governantes. Mas que,
inversamente, é a crença na mudança que poderá vir a dar de novo
sentido às incertezas que acompanham os processos de sobrevivência
profissional. Incertezas que acompanham esse conceito, ainda
fluido, da aprendizagem permanente, da reconstrução e da
reestruturação dos saberes. E, sobretudo, a forte crença de que os
responsáveis das políticas educativas mudam, mas a escola e os seus
professores permanecem na história como sendo uma das pedras
basilares da construção dos estados democráticos.
Se reconhecermos que a educação é,
simultaneamente, um projecto de cultura, de humanização, e de
solidariedade, temos que manter essa atitude positiva de grande
abertura aos novos horizontes, às novas solicitações, às novas
oportunidades que o futuro ainda nos virá oferecer, logo que passe
este "tsunami" ultra conservador e aniquilador da escola que a
nossa constituição define como sendo "de todos e para todos".
É por isso que hoje. mais que
nunca, para os professores a utopia deve ser uma das formas de dar
sentido à realidade do que fazem, clarificando a dimensão social e
ética das suas práticas.
Ao longo dos tempos o professor
aprendeu a manter expectativas ajustadas às suas possibilidades.
Apesar dos êxitos e dos fracassos se alternarem na sua actividade,
ele sabe como manter as expectativas positivas e o entusiasmo.
Aprendeu a manter a força das ilusões, apesar dos fracassos
circunstanciais. Quando foi preciso soube ser céptico, mas sem ser
dogmático, soube ser moderado, mas sem ser fraco e, sobretudo,
nunca recusar a luta pela mudança.
Alterar as causas geradoras desta
deplorável conjuntura é um desafio, mas também faz parte da utopia
que nos alimenta e nos motiva a estar presentes sempre que uma voz
nos desafia: na escola, em casa ou na rua.
Prosseguir os caminhos da utopia, é
dar um chuto, valente e certeiro, na solidão profissional que
acompanha o desenrolar dos dias de muitos professores e educadores
que hoje se sentem desiludidos e inúteis.
Agarrar utopia, é romper com a
certeza das incertezas, na certeza da busca da incerteza maior, que
é aquela que sempre acompanha o renascer do novo e a construção da
infinita mudança.
Abraçar a utopia, é aprender a dar, rasgando do dicionário as
páginas que nos explicam como se lida com a dúvida que acompanha a
falta de reconhecimento, o egoísmo e a injustiça social.
Sejamos utópicos, apenas por acreditar em que acreditamos.
Apenas porque abrimos as portas, de par em par, ao impossível e ao
inimaginável.