Entrevista

D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas
A austeridade descasca as pessoas

DSC00642 cópia.jpgLivre, frontal e polémico, assim é D. Januário Torgal Ferreira, o bispo das Forças Armadas e o rosto mais desassombrado da Igreja Católica portuguesa.

Tem 74 anos. Tem memória de uma crise com estas proporções?

Francamente não tenho memória de uma situação pior do que esta, ainda para mais em plena democracia. Despertei muito cedo para as questões da justiça social, muito por «culpa» do seminário e do papel de D. António Ferreira Gomes, que foi Bispo de Portalegre. Repare que durante o longo período do Estado Novo foram afloradas muitas questões do âmbito da liberdade de opinião, reunião, direitos, liberdades e garantias, mas eram sempre as questões sociais que vinham à tona.  Perguntas básicas, do tipo, como é que o sapateiro consegue viver? Como é que o padeiro e o professor ganham tão pouco? Eram sempre as problemáticas da justiça social que emergiam.

Acha que falta coração e sensibilidade social aos políticos?


Isso tem a ver com o carácter e a formação das pessoas. Dou-lhe o exemplo de Francisco Sá Carneiro, natural da minha cidade, o Porto, e que foi presidente do PSD e Primeiro-Ministro. Independentemente do partido a que pertencia, admirei-o sempre e recordo a sua sensibilidade imensa por questões de natureza social.  Sá Carneiro, que era um defensor da liberdade e católico - tinha de ser -  afirmou que se houvesse uma crise nunca deviam ser prejudicados nos seus direitos e garantias a classe trabalhadora e mais empobrecida.  Isto quer dizer alguma coisa.

Nunca imaginou que mais de três décadas depois do 25 de Abril estivéssemos a retroceder socialmente?

Nunca imaginei.  Com o 25 de Abril atingiu-se um patamar de conquistas sociais que estamos a perder, com reflexos no nível de vida. Faço-lhe um desafio. Se  consultar o arquivo da revista «Visão», no dia 28 junho de 2001, na transição de Guterres para Barroso, verá que foi publicado um dossier intitulado «A crise», numa altura em que já se registavam inúmeros cortes. Então, alertei as pessoas para o que estava a ser feito. Por exemplo, num sector que conheço bem,  as forças armadas, é inadmissível que o governo queira participar numa missão internacional e depois não consiga mobilizar os meios necessários para executá-la. É um contra-senso. Bem sei que há muito preconceito em relação às forças armadas e até há quem ache que as mordomias são demais, o que é falso, mas as forças armadas estão submetidas ao poder civil.

Recuou 12 anos no tempo, até 2001. Uma eternidade…

Veja lá, até ao início deste século. Mas nessa mesma revista, que tenho bem presente, também podia citar um artigo de Sousa Franco, que foi ministro das Finanças, em que ele afirma que num momento de crise, duas classes não poderiam ser atingidas: a classe média e os pobres. Curiosamente outro profundo católico, formado pela Doutrina Social da Igreja.
Poucos minutos antes de começarmos esta conversa, vi o senhor ministro das Finanças, entrar-me pela casa a dentro através do ecrã do televisor para anunciar-me que «vão ser necessárias décadas» para isto entrar nos eixos. Como é que os pobres reagirão? Tiraram-lhes tudo. Eles são defendidos por quem? Só se for por Cristo, porque são as figuras de primeiro plano do Evangelho.

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A Igreja, que por vezes é acusada de ostentar em demasia, tem moral para fazer este discurso?

A Igreja é um garante de sensibilidade social, mas não tenho problema nenhum em reconhecer que a Igreja devia ser, em alguns aspectos, mais simples e humilde. Refiro-me a casas, automóveis, paramentos, etc.

Isso pode ajudar a potenciar  reacções menos racionais e mais emotivas da população?

Relativamente à Igreja não, porque o povo sabe que a Igreja é o ultimo reduto da defesa dos pobres e dos mais carenciados. A missão da Igreja é muito importante para ajudar as pessoas em situação de desamparo. Agora é um facto que as pessoas estão agressivas, desiludidas e acham que foram enganadas pelo actual governo por não terem apresentado os problemas concretos com verdade. Foi-lhes prometido tudo e agora estão pior do que antes.

Este governo é o único responsável?

Eu não vou dizer que os que por lá passaram não tiveram culpa. O que eu defendo é justiça social e prioridade aos pobres. Devia existir uma equidade nos salários, nas pensões, etc. É imoral haver pensões de 70 mil euros.

Como explica que os políticos sejam inconsequentes nas suas promessas eleitorais?

O problema que existe em Portugal é que só se resolvem os problemas quando as medidas dão votos, só se publicam leis favoráveis quando as eleições se aproximam, os políticos aparecem, com ou sem boné, a dar beijinhos e abraços aos populares apenas quando estão em campanha eleitoral.  Não existe proximidade com o povo. E mesmo que estes governantes quisessem cultivar essa proximidade seria difícil, até pelo momento de convulsão que atravessamos. Não posso admitir é que um povo seja deseducado e rude relativamente a um governo legal e democraticamente eleito. Mas o povo também é muito avisado nestas situações e costuma dizer na sua eterna sabedoria, «quem semeia ventos, colhe tempestades»…

Disse numa entrevista recente que «a quebra da palavra dada é uma forma de corrupção». Significa isto que os políticos que mentem são corruptos?

Não tenho dúvidas que há uma corrupção moral. A mentira é a corrupção da verdade. As pessoas ficaram muitas escandalizadas quando eu disse que estes são diabinhos e os outros anjos. Os outros não eram, de forma alguma, anjos. Eu disse com ironia, queria revelar que estes ainda são piores, porque prometeram reabilitar, pedindo tempo, e subitamente introduzem austeridade, mendicidade e empobrecimento. Há um aforismo clássico latino que diz assim: «A corrupção daquele que se julga óptimo, é péssima».

Lembro-me bem que Passos Coelho, quando era líder da oposição, disse a Sócrates, a propósito do PEC IV: «Basta». E disse bem. E isso valeu-lhe muitos votos. Perante isto, porque é que o bom povo português terá de apoiar agora o que faz Passos Coelho? Assistimos à morte de uma organização e de uma estrutura, assente numa certeza, num propósito e numa promessa.

Concorda com Medina Carreira quando este diz que os actos eleitorais são autênticas «burlas democráticas»?

Perfeitamente. Como sou livre e frontal,  recebi palmas e insultos por aquilo que disse na "TVI 24" sobre a corrupção deste Governo. Eu não quero nem uma coisa nem outra, eu quero simplesmente estar do lado da verdade  O dr. Bagão Félix , como é uma pessoa educada e bem formada, não quis usar o termo «roubo», preferindo adoptar «confiscação», que é igualmente um vocábulo forte e que significa que pessoas que andaram tantos anos a descontar para o Estado sentem-se, de um dia para o outro, ludibriados.

Perante isto, não nos podemos admirar se eclodirem situações descontroladas. Já em 2008 falei desta possibilidade, porque a situação já então era gravíssima. A última manifestação do 15 de Setembro foi uma eloquente demonstração de um comportamento sem mácula e uma cidadania exemplar. O 15 de setembro foi aquilo que eu considero um verdadeiro plebiscito. E muitos não saíram à rua porque são amorfos e timoratos, mas no dia seguinte foram os primeiros a juntar-se aos que participaram, como se tivessem ganho.

A Igreja tem tido uma postura prudente em temos de comunicação.  D. José Policarpo disse que a «rua não resolve nada». Subscreve?

Muito estimo as palavras do Cardeal Patriarca, mas creio que a rua pode resolver, remotamente. Repare que as pessoas saem à rua em busca de uma certa eficácia fruto das suas acções. D. José Policarpo está a pensar em reformas e soluções, mas, no fundo, a multidão que sai à rua quer dizer ao governo que não está a ser ouvida. «Estamos a ser barbaramente penalizados», «tenham pena de nós», «ajudem-nos». É isto que se «diz» quando o povo vem para a rua. Se a estruturas democráticas estão atentas à realidade, pelos menos dizem que não são surdas nem mudas, então devem ouvir os gritos e responder aos clamores. Uma manifestação é uma voz, um texto, uma mensagem.  Não se lembra da manifestação protagonizada por dezenas de milhares de professores vindos de todo o país que desceram juntos a Avenida da Liberdade contra as medidas do governo Sócrates? Não vi violência, nem desmandos.

O papel da igreja é de crescente complementaridade a um Estado a esvaziar-se de funções?

O papel da Igreja é, para começar, de grande sabedoria e de veicular uma atitude pedagógica para refrear comportamentos violentos. Deve actuar com a Doutrina Social da Igreja e não ter receio de defender os direitos. Mas não gostaria de ver a igreja a contra-vapor, quando o vapor é a luta pela justiça.  A igreja deve ser uma locomotiva, abrir caminho.

Referiu o termo pedagogia. Há um défice de pedagogia nos mais variados quadrantes da sociedade em que nos inserimos?

Falta muita pedagogia e muita lucidez. Veja que este governo não se preocupou em comunicar as medidas de austeridade de forma metódica, organizada e sequencial. O que vimos é um governo com uma crise de soluços e que insiste na teoria de atirar o barro à parede a ver se pega. A estratégia é apresentar de forma inicial um cenário apocalíptico, para depois ir recuando aos poucos. Pinguinha a pinguinha, de forma matreira, um típico tratamento de ingénuos.

O povo ainda acredita neste governo?

Faz-me lembrar o caso daquele elemento do casal que foi infiel e depois regressa, como se nada fosse. Pode haver perdão, mas a marca da desconfiança não desaparece. Uma parte significativa do povo português já não confia e antevê a cada minuto um novo "tsunami". As pessoas andam desconfiadas e isto é terrível. O crescimento económico depende da confiança, mas para registar-se crescimento cultural e psicológico é rigorosamente igual.  Se numa sala de aula um aluno interioriza que o professor tem qualquer coisa contra ele, este individuo é um vencido logo à partida. Também aqui mais vale franqueza em comunicar ideias.

Os professores e os políticos deviam ser, pelo menos em tese, referências e formadores de consciências. Pensa que estão a cumprir essa função?

A ministra da Justiça afirmou, durante a sua alocução nas jornadas parlamentares do PSD e do CDS, que devia haver uma exigência ética para os políticos e que «nós devemos ser um exemplo». Ela estava a "pregar" para os seus colegas, numa altura em que um certo tipo de fazer política está desacreditada.  A política é o espelho da sociedade. Vivemos numa sociedade desvalorizada e de contra-cultura, que resiste a reflectir, quando existe gente sábia e capaz no país para o fazer. É uma lástima termos uma geração fantástica do ponto de vista do desenvolvimento científico, do saber e da aprendizagem, mas que não é estimulada e apoiada como devia ser. Não posso compreender um país que está a atirar jovens para fora das suas fronteiras.

O êxodo do capital humano angustia-o?

É uma doença de personalidade deixar o pai, a mãe  e a restante família na terra natal, abandonando os sonhos e as aspirações.  Esta austeridade vai "descascando" as pessoas, abatendo empresas, cortando com vocações e tirando sonhos às pessoas na idade mais radiosa e mais fascinante. Com isto estamos a gerar um grupo de revoltados.

Os reitores das universidades têm denunciado que os cortes previstos para 2013 podem paralisar os estabelecimentos de ensino. A universidade como centro de saber pode cair por terra?

Sabe que a Universidade portuguesa é das instituições que mais me fascina e mais admiro no meu país. Chegámos a uma altura em que estamos  à  beira do  impedimento do saber e da morte da aprendizagem. Temos centros investigação que são um exemplo, com os seus recursos, meios e trabalho. Há casos espantosos de estudo, publicações, convergência de grupos, invenções, etc. Dispenso-me apresentar nomes para não ser injusto. São pessoas que precisam de confiança e de co-responsabilidade, ouvir dizer «não desistam».  Perante o corte brutal no investimento, é difícil escapar ao desânimo. Não quero cavar mais a falta de esperança, mas não posso deixar de dizer que as capacidades pensantes de um país estão hipotecadas.

Hipotecar as capacidades pensantes é colocar em xeque o futuro da nação?

Portugal é um país selvagem, um país subdesenvolvido, económico e cultural, mas continuo a acreditar que as causas civilizacionais são de índole ética. Vivemos num contexto em que a verdade e a mentira têm o mesmo peso. Ter carácter e palavra já não possui o peso de outros tempos. Isto é a falência ética e moral.  Outrora a palavra de um homem valia mais do que um documento do notário. Isto é mais do que mera poesia.

Disse recentemente que Portugal, como «país indefeso»,  precisa de «reconquistar a independência económica e financeira». A solução é interna ou europeia?


A chave para o problema é uma solução europeia, mas a partir de Portugal. Temos de ser honestos para aqueles que estão a ser calcados. Eles não foram responsáveis pelo desaparecimento do dinheiro que agora estamos tentar pagar. Há «cérebros» responsáveis pelo delapidar do património.

Esses «cérebros» têm identidade?

Há muitos culpados e de há muito tempo a esta parte. Foram os filhos da nação que deram cabo disto. Eu  não digo o nome deles, porque não tenho provas, senão ia à Procuradoria-Ggeral da República. O «desvio colossal» foi provocado, em primeiro lugar, por incompetência.  Pensavam que o dinheiro dava para tudo: estádios, auto-estradas, etc.

 

Esta crise vai educar alguns e deseducar irremediavelmente a maioria?


Este dilúvio que se abateu sobre Portugal está a ser pago pelos mais simples e pelos mais humildes. A classe média está a desaparecer e os pobres são autênticos miseráveis.

Nuno Dias
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
Nuno Dias
 
 
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