Editorial

É a isto que se chama democratocracia?

João RuivoNa educação vivemos um momento singular: ninguém sabe o que faz, porque o faz e, mesmo, se o faz. Se exceptuarmos os docentes, que continuam a exercer, diariamente, com sentido de profissionalidade a sua actividade (apesar de tratados como pessoal indiferenciado, desqualificado e descartável) todos os restantes responsáveis do Ministério da Educação (ME) agem com uma indigência quase malévola, raramente prevendo (à excepção das de carácter financeiro) as consequências pessoais, familiares, materiais, técnicas e organizacionais, do impacto de grande parte das suas medidas aprovadas "à la carte".

Os últimos meses têm sido, como diria o nosso povo, "um fartar, vilanagem". Basta considerar os títulos das primeiras páginas dos jornais: "Ministério quer ver professores a comprar escolas"; "Ministério tem milhões para despedir professores"; Ministério tem milhões para o ensino privado". "Quem quiser educação de qualidade, que a pague"; "A inclusão regressa ao passado"; "Professores contratados têm que pagar a sua própria avaliação".

Vale a pena citar mais?

No actual contexto, não é possível vislumbrar uma medida preditiva do comportamento do ministro, ou de um qualquer dos seus secretários de Estado, talvez porque deve haver algum efeito de indução ao "chip" cerebral, quando entram, pela primeira vez, num qualquer elevador da 5 de Outubro.

O que afirmavam antes de entrarem para o governo, já não é palavra que se cite, ou aceite, como vinda de gente coerente e fiável.

Hoje, todos eles agem nos antípodas. Mais parecem personagens erráticas de um qualquer enredo dos antigos teatros de revista em que, de uma semana para a outra, se mudava a narrativa, os cenários e os diálogos, mas os personagens permaneciam, sempre os mesmos.

A generalidade dos professores contratados foi formada em instituições de ensino superior, avaliadas a acreditadas pelo próprio Estado? Tiveram estágios profissionalizantes, tutelados por professores seniores, que assistiram às suas aulas e avaliaram e classificaram a sua actuação? A maioria deles serviu (e bem) o sistema durante décadas?

Para o ME, nada disso interessa, porque o ministério entende que toda a profissionalidade docente se reduz a uma meia dúzia de conhecimentos teoréticos e pode ser avaliada, através de uma simples prova, corrigida, avaliada e classificada, por outros docentes, os quais nem foram preparados para isso.

Se essa prova foi construída, ou não, para ter um efeito de descriminação negativa, o que interessa ao mundo? Se a malfadada prova foi, ou não, estatisticamente validada, que importância tem isso para a ciência e a fidelidade dos seus resultados? Nada, mesmo nada interessa, desde que Nuno, o Incrato, e os seus secretários de Estado metam uns tostões a mais na caixa de esmolas do Orçamento.

E, pasme-se! As instituições de ensino superior que ainda formam docentes, face a todo este cenário, remetem-se a um silêncio que as envergonha, perante tamanho atestado de suspeita incompetência que o ME lhes pretende passar!

Admiro, também, que, até hoje, ninguém se tenha dado ao trabalho de coligir o que pensavam, ministro e alguns dos seus secretários de Estado, sobre estas matérias, meses antes de subirem as escadas do poder.

Que percurso científico e académico permite, a alguns deles, a insistência no disparate constante, tão nítido no nervosismo com que, publicamente, anunciam cada nova medida a implementar, e a acrescentar ao rol do vai vem de decisões inconsequentes, mas todas elas com um objectivo certeiro: o de promover a total desarticulação organizacional da Escola Pública que tínhamos - fiável e confiável - como o provaram centenas de estudos científicos, efectuados na última década.

Diariamente lançam-se para as escolas instruções aleatórias, descoordenadas, que uma boa parte dos responsáveis regionais e locais não sabe como interpretar e aplicar. Num dia avançam--se, impensadamente, mil passos, para, no dia seguinte, se regredirem dois mil: e, em ambas as situações, sem qualquer esclarecimento convincente, do porquê do fazer e do desfazer.

Nos pais, nos alunos, nos docentes, no pessoal não docente, no conjunto da comunidade educativa, cresce a incredulidade. Ninguém dá a cara por ninguém. É o reino do "Deus dará", do desencanto, das rotinas, do tempo preenchido em deslocações, em reuniões, em burocracias redundantes, em incongruências organizacionais e, sobretudo, na produção de muito estímulo à resiliência.

Como qualquer mortal sabe, estas situações ajudam em tudo, menos à promoção da qualidade do ensino que devíamos estar a proporcionar aos nossos alunos e, logo, ao futuro do nosso país.

Na Europa, Portugal introduziu, hoje, um fenómeno invulgar e inimaginável há meia dúzia de anos atrás: os milhares de professores que ficaram desempregados e foram obrigados a emigrar ou a mudar de profissão, constituem o maior desperdício de formação e de qualificação (e aí também estamos a falar de gasto de verbas, de tempo perdido, de estruturas malbaratadas…) a que a Europa jamais assistiu, em qualquer outra profissão.

Um dia, estes (des)governantes deverão prestar contas pelo que fizeram à Escola Pública portuguesa, que com tanto custo foi erguida sobre os escombros do salazarismo. Que o tempo seja curto e o juízo justo.

 
 
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