Entrevista

Rui Tavares, historiador
"Há uma grande falta de reciclagem nas universidades"
RT2.jpgO escasso rejuvenescimento no ensino superior, a esquerda e a direita, o prazo de vida da "geringonça", o "brexit", a Europa na encruzilhada e a receita para combater o "trumpismo". Temas para refletir com a ajuda de Rui Tavares.
Estamos a seis anos da comemoração do 48.º aniversário do 25 de abril, ou seja, os mesmos 48 anos que durou o regime do Estado Novo. Que balanço pode fazer do período democrático em termos das conquistas consolidadas e das que se perderam?
Aqui há uns tempos dei-me conta dessa trivialidade que é concluir que ainda não tivemos mais um dia de liberdade do que aqueles que tivemos de opressão. E dei-me conta como era importante apercebermo-nos da fragilidade dessa liberdade. Mais ainda nos anos em que vivemos, sob o domínio da "troika", em que boa parte das conquistas sociais do 25 de abril foram revertidas e outras ficaram em risco, nomeadamente as relacionadas com o Estado social e o desenvolvimento económico. Foi com esse norte que orientei a minha atividade política recente, no LIVRE, em que reforcei a mensagem da necessidade de uma convergência à esquerda no sentido de segurar as conquistas do Estado Social. Por exemplo, o Serviço Nacional Saúde, a Segurança Social, o acesso ao ensino superior - esta é essencial e a primeira que a seguir ao 25 de abril as famílias da classe média e da classe baixa (como a minha) agarraram com as duas mãos a hipótese de dar aos filhos uma formação superior. Eu venho de uma família em que tanto o meu pai como a minha mãe tinham como escolaridade a 3.ª e a 4.ª classe. Tiveram cinco filhos, todos completaram o ensino superior e, em alguns casos, adicionaram mais de um ciclo do ensino superior. Essas conquistas não são apenas individuais ou familiares, mas têm a ver com um sonho antigo de país para estas pessoas que Portugal consiga aproveitar ao máximo o desenvolvimento, o conhecimento, o cosmopolitismo, a abertura ao mundo, as liberdades, a realização pessoal, etc. E que todos estes projetos possam ser garantidos no nosso território e não emigrando.
Estes sonhos estiveram ameaçados?
Estiveram. E acho que, paulatinamente, houve uma tomada de consciência de que isso esteve em risco e conseguiu mexer a política em Portugal, mas não nos deve fazer entrar numa atitude complacente em que só as mudanças na política é que podem evitar que as conquistas e o rumo não se percam.
O jornalista Gustavo Sampaio lançou recentemente um livro chamado «Porque falha Portugal?». O título é um bom mote para a próxima questão…
Ainda não tive oportunidade ler, mas li um dos anteriores dele, «Os privilegiados» e gostei particularmente da análise séria e documentada, com uma forte base empírica. Mas respondendo à questão, penso que o principal problema de Portugal é político, à semelhança aliás, da maioria dos países. Acredito na capacidade que as sociedades têm de dialogarem e de decidirem relativamente aos seus rumos, fazendo, no fundo, a sua política e a estratégia funcionar em prol da coletividade. Quando este aspeto está bem resolvido do ponto de vista cívico-político o resto consegue-se.
RT4.jpgDevíamos aprender com algum país?
Por exemplo, o que a Finlândia faz em matéria de ensino. Creio que se devia imitar o "ethos", ou seja, a essência do debate que eles fazem. Eles conseguem colocar-se de acordo relativamente ao tipo de ensino que querem ter e depois trabalham nele durante 10, 20 ou até 30 anos. Os frutos virão depois quando as gerações sucessivas chegarem à idade adulta.
Como é possível alcançar consensos sobre uma área tão sensível como o ensino?
Primeiramente, passa por uma renovação muito grande dos partidos políticos, que mantêm-se como estruturas muito centralizadas, disciplinadoras e castradoras da iniciativa individual. Os partidos à esquerda perceberam que tinham de trabalhar em conjunto e operaram uma certa abertura de cada um deles ao exterior, mas ainda não houve abertura ao seu próprio interior. Não ouvem a militância e não ouvem os cidadãos em geral. Para além disso, o sistema de escolha de deputados e organização dos grupos parlamentares não facilita, porque é a direção do partido que escolhe quem quer.
Os independentes não trouxeram sangue novo à política?
Não creio que por si só resolva a questão fundamental que é a da falta de abertura dos partidos. Não há democracia sem partidos, mas estes também deviam reconhecer que não pode haver partidos sem muito mais democracia. E aquilo que temos hoje em dia são direções partidárias com apêndices de alguma militância mas, acima de tudo, com um grande grau de funcionamento subsidiado pelo Estado e até parasitação dos grupos parlamentares. Um artigo recente do "Público" demonstra que os partidos, em grande medida, pegam nas condições de trabalho que são dadas aos grupos parlamentares e utilizam-nas em favor do trabalho partidário. Isto tem que mudar, até para que muita gente nova possa exercer política, para que, de uma vez por todas, a política não seja uma atividade de casta. Quando o conseguirmos fazer, Portugal terá mais facilidade em circular a sua população pela atividade cívica e política, facilitando o encontrar de caminhos e estratégias coletivas.
Nas últimas legislativas o LIVRE falhou a eleição de um deputado para o Parlamento, após um processo de primárias muito participado. Não se conseguiu fazer passar a mensagem?
Foi importante fazer primárias abertas e um programa com participação coletiva ampla, com centenas de pessoas. O nosso programa, em temas como as políticas energéticas, a economia, a educação, na saúde, etc, estava muito mais aprofundado em comparação com os programas dos partidos tradicionais. Importa não esquecer que os partidos tradicionais mudaram a lei de cobertura das campanhas eleitorais na última sessão antes das ferias parlamentares. Em qualquer país do mundo isto seria um escândalo, porque viciou por completo as regras do jogo e prejudicou qualquer dos partidos emergentes, como o LIVRE. Não tivemos acesso aos debates televisivos onde foi que basicamente se fez o resultado das eleições legislativas. Os partidos tradicionais defenderam o seu monopólio.
RT7.jpgEscreveu o livro "Esquerda e direita", em que defende que faz cada vez mais sentido esta dicotomia. Como explica isso no caso português?
Ao contrário do que as pessoas pensam, em Portugal e no mundo, a esquerda e a direita têm-se clarificado e consolidado. Essa distinção faz sentido porque nasceu com o próprio conceito de soberania popular, ou seja, logo a seguir à Revolução Francesa. É a partir do momento em que deixam de ser os monarcas a dizer- -se devemos ir para um lado ou para outro, que a sociedade reclama para si essa possibilidade. Numa análise mais granular é possível dividir a esquerda e a direita entre conservadores e progressistas, socialistas e liberais, ecologistas e desenvolvimentistas, etc. Eu digo também que alguma polarização política é importante porque dinamiza a sociedade, porque faz com que tenhamos a possibilidade de nos organizar em torno de ideias e de grandes sentimentos sociais e políticos. Contudo, o excesso de polarização pode fazer reentrar os sentimentos feudais que existiam nas sociedades pré-modernas e a principal bitola que eu uso para distinguir uma polarização política positiva e uma destrutiva é quando o compromisso político deixa de ser assumido por todos nós e passa a ser visto como uma questão de desonra pessoal e de desonra do adversário. É isso que tem acontecido no Brasil e nos Estados Unidos, nos últimos tempos, com o bloqueamento das sociedades.
A solução de governo em Portugal é histórica. A esquerda enterrou o tabu sobre a governação?
Sempre achei possível esta solução de governo. Aliás, eu escrevi na primeira edição do livro que o entrincheiramento da esquerda portuguesa não se devia a nenhuma explicação sociológica, estrutural ou política, mas sim porque as direções dos partidos não queriam. Não era preciso procurar explicações mais complicadas. Nós já tínhamos tido entendimentos políticos à esquerda para a Câmara de Lisboa, em plena queda do Muro de Berlim, quando Jorge Sampaio estava em campanha com o PCP.  A cegueira da falta de diálogo entre a esquerda prejudicou durante tempo demasiado o povo português e isso media-se em desempregados, em facilidade no despedimento, degradação do SNS, privatização da Segurança Social, etc. Felizmente atingiu-se um acordo e mais rápido do que muita gente supunha. E do meu ponto de vista não há retrocesso possível e entra-se numa fase em que já não é possível dizer que é inviável governar à esquerda em Portugal com o entendimento e participação dos partidos.
A "geringonça" tem pernas para ir até ao fim da legislatura?
Penso que sim. Isso só não acontecerá se os partidos que lhe deram corpo não quiserem e não entenderem que é importante preservar o essencial do Estado Social, devolver rendimentos às pessoas e inverter a lógica de gradual empobrecimento para sair da crise. Também é preciso manter o país no projeto europeu, se possível mais vivo e com mais voz, tornando-o mais social e mais democrático. Porque eu acredito que o projeto europeu é reformável e logo o país pode ser governado à esquerda, com uma ética mais igualitária, com mais progresso e justiça social, produzindo uma dinâmica que é positiva. O povo português quer um país europeu e desenvolvido, com uma perspetiva internacionalista.
Defendeu quando era eurodeputado ações judicias contra a "troika". Em outubro, transitou em julgado a primeira condenação no Tribunal Europeu. De que forma esta decisão pode dar alento aos cidadãos para avançarem para os tribunais?
A área da saúde é provavelmente a mais evidente. A Fundação para a Saúde publica todos os anos o relatório da primavera com as condições de saúde em Portugal e eu apresentei com a Dra. Maria de Belém Roseira o relatório de 2015 e as suas conclusões eram completamente arrasadoras. Muitos milhares de portugueses perderam o acesso normal e continuado à saúde, muitos deixaram de comprar medicamentos, outros desistiram de ir às urgências devido às taxas moderadoras, doentes oncológicos perderam o acesso a transporte fácil e a preço razoável para os tratamentos, etc. Isto aconteceu noutros países também, por exemplo, na Grécia, que já estava acometida por grandes disfunções no seu sistema de saúde. Em Portugal, o SNS funcionava de forma bastante razoável até aos anos da "troika", felizmente sobreviveu, mas afastou muita gente do sistema, o que é garantido pela nossa ordem constitucional, como é protegido pela carta dos direitos fundamentais da União Europeia. E aqui é que bate o ponto…
Depois de muitos anos a defender que a "troika" implementava políticas que violavam os direitos fundamentais, enquanto cidadãos portugueses e europeus, o Tribunal de Justiça da UE diz, claramente, que é possível aos cidadãos europeus intentarem ações contra as instituições europeias que integravam a "troika" - a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu - porque elas têm a obrigação de respeitar a carta europeia que tem uma importância equivalente à dos tratados.
O tema UE continua a ser marginal no debate na sociedade portuguesa?
Portugal tem um enorme défice de conhecimento no nosso debate sobre políticas europeias. E devo dizer que a esquerda tem uma responsabilidade particular. Uma parte da esquerda fala da Europa como se esta fosse um papão e ao fazê-lo está provavelmente a conquistar espaço mediático e alguns votos, mas está a prestar um mau serviço aos cidadãos portugueses. A saída do euro, o pseudo referendo ao Tratado Orçamental - que nem sequer constitucional é - não são argumentos que ajudam a um debate positivo sobre a Europa. Tenho procurado dar o meu contributo para que o debate europeu em Portugal não seja estéril, mas não é fácil.
Antevê um "brexit" duro ou suave?
Penso que há boas possibilidades de o processo ser rápido, a partir do momento em que for acionado o artigo 50 do Tratado de Lisboa e a que se seguirão dois anos de negociação. Se a negociação chegar a bom termo há um acordo, se falhar o direito europeu deixa de se aplicar no Reino Unido. Acho que o balanço da permanência do Reino Unido na UE foi claramente positivo, porque a economia cresceu 69 por cento desde que começou o mercado único, em 1993, tendo acesso a um mercado enorme de 500 milhões de consumidores. No século XIX o Reino Unido tinha um império, hoje não tem, por isso, estou em crer que se o "brexit" for duro, dentro de 5 a 10 anos, será possível clarificar a situação e poderá, finalmente, fazer-se o balanço sobre se foi bom ou não sair da UE.
«Esta Europa vai mudar, mas não vai morrer», escreveu no seu artigo semanal no "Público". Como vai ser o projeto que integramos?
Não creio que vá ser uma Europa muito diferente. Eu já tinha escrito há meses que o referendo britânico é um problema britânico. A verdade é que no dia seguinte ao referendo os britânicos não sabiam bem o que fazer. Não creio que essa escolha dos britânicos ponha uma dúvida existencial sobre a própria UE. Creio que até muitas opiniões públicas de vários países manifestaram, ao contrário de certa retórica folclórica, que é importante a manutenção no projeto.
Mas a Europa não sai fragilizada por perder um dos seus membros mais poderosos?
A União Europeia tem uma encruzilhada à sua frente. Se a esquerda europeia continuar o caminho de distanciar-se do projeto europeu estará, pela sua ausência, praticamente a garantir que o rumo da UE seja decidido nas reuniões do PPE, o maior partido europeu (que engloba a direita conservadora e democrata-cristã) que junta mais eurodeputados e mais governos. Este partido trocou a ideologia pelos lugares de poder. E o PPE pretende que no futuro a cooperação no seio da UE se resuma a questões militares e de segurança, excluindo o aprofundamento da democracia europeia. E aqui é preciso que a esquerda apresenta propostas que contribuam verdadeiramente para o desenvolvimento da UE, como por exemplo, o salário mínimo europeu, a segurança social europeia, o Plano Marshall para os países do sul, investimentos na área da tecnologia, ensino superior, etc.
Promoveu, durante a sua permanência como eurodeputado, um projeto para as bolsas de estudo de natureza ampla. Que balanço faz dos frutos da iniciativa?
Há duas coisas que me comovem pessoalmente e mexem comigo: bibliotecas e bolsas de estudo. Foi isto que me permitiu criar o meu universo pessoal, estudar e seguir uma carreira profissional e intelectual. Decidi que quando tivesse essa oportunidade material iria ajudar quem precisasse. Não foi uma promessa política, só depois de eleito é que anunciei o que iria fazer, para que não subsistissem dúvidas sobre os motivos por trás da iniciativa.
E como é que as pessoas reagiram?
No primeiro ano o projeto foi feito de forma mais tradicional. Houve candidaturas de todo o género, desde a matemática, a antropologia, artes, música, estudos regionais sobre África, direito e ciência política, etc. No total foram 70 candidaturas e atribuímos sete bolsas, o que é um rácio relativamente normal. A última a ter conseguido chegar ao fim foi uma banda desenhada que é uma biografia de Fernando Pessoa, da autoria de Miguel Moreira e Catarina Verdier. Sempre que vejo este livro numa livraria fico muito honrado por puder ter ajudado a criar esta obra que para mim é muito especial. Também consegui levar, com a ajuda da eurodeputada Ana Gomes, uma biblioteca para Timor Leste.
Quanto é que retirava do seu vencimento de eurodeputado para esta iniciativa?
1 500 euros mensais, em média, o que é um quarto do salário de eurodeputado, que é cerca de 6 mil euros - Ao contrário do que afirma Marinho e Pinto, que disse, entre outros disparates, que o ordenado de um eurodeputado é de 18 mil euros.
O desemprego jovem continua na ordem do dia. Há soluções para estancar este problema?
É uma questão muito séria e que já afeta uma geração muito mais lata que a dos 20 anos, a dos recém-licenciados. O ensino superior português não é rejuvenescido há muito tempo. Há uma grande falta de reciclagem na função pública, nomeadamente nas universidades, o que torna muito difícil que se encontre um lugar disponível na carreira de professor e investigador. Quem queira formar pessoas e dar aulas no seu país, muito mais facilmente encontra lugar no exterior. Portugal precisa de criar oportunidades para toda esta gente e precisa de se abrir ao mundo. Se formos uma nação aberta, deixaremos de ser um país de fuga de cérebros e conseguiremos manter alguns aqui e receber outros. As universidades precisam de se abrir mais à troca de experiências com as suas congéneres de língua portuguesa e fomentar o ministrar de algumas cadeiras em línguas estrangeiras. E há outro ponto: deve investir-se em reabilitação urbana, porque é através deste setor que podemos apostar nas indústrias criativas, culturais, de base tecnológica, do "design" e outras, que atraem jovens de todo o mundo e ao atraí-los, criam emprego, também, para os jovens portugueses. Para os que cá estão e para os que emigraram e desejam voltar. Isto é um plano que demora tempo, porventura 5/10 anos, mas seria bom assumi-lo como estratégia nacional, debatendo-o no Parlamento e com a sociedade civil.
RT8.jpgViveu "in loco" em Nova Iorque a madrugada em que foram anunciados os resultados das eleições americanas, que deram a vitória a Donald Trump. Alguma vez julgou possível este desenlace?
Nas semanas que precederam as eleições acreditei em tudo. As sondagens estavam muito voláteis. O ambiente em Nova Iorque é ainda de uma certa incredulidade. O primeiro dia após a eleição foi muito silencioso, o que é estranho para uma cidade tão cheia de trânsito e barulho, e viam-se caras muito fechadas. Os protestos começam a aparecer em diversas cidades do país, mas para já estão confinados à juventude, aos estudantes universitários e aos imigrantes. Trump manteve uma linha ligada aos pensamentos mais básicos da população, convencendo-a que é justificado ter esses sentimentos e é preciso agir politicamente em função do rancor, do ódio e do medo. E pelos vistos funcionou.
Os protestos visam mais a personalidade de Trump ou o sistema eleitoral americano?
Sobre o sistema eleitoral ele tem razão de ser para não beneficiar os estados maiores em relação aos estados pequenos. Sobre o sistema eleitoral vai ser muito difícil alterar a Constituição dos Estados Unidos. Há quem proponha alternativas, e no ano 2000 surgiu a ideia de que o candidato que perdesse no voto popular, mesmo que ganhasse nos estados, pudesse indicar aos seus eleitores no colégio eleitoral que votassem no candidato que teve mais respaldo popular. Esta situação, a acontecer, é quase sempre com um presidente democrata com mais voto popular e um presidente republicano com mais estados conquistados. Se a proposta fosse para a frente, George W. Bush e Donald Trump não seriam eleitos, como tal, os republicamos nunca apoiariam este processo.
E transpondo esta situação para o caso europeu, estou certo que nós, portugueses, estaríamos a defender um sistema de colégio eleitoral para não dar automaticamente o lugar de presidente da UE a quem ganhasse os votos combinados dos países maiores, ou seja, a Alemanha, a França e a Itália.
Então, o que se contesta verdadeiramente?
Creio que os protestos não se baseiam no sistema eleitoral, mas sim sobre o tipo de sociedade que estes jovens, de um dia para outro, encontram como sendo a sociedade maioritária. Um jovem de uma minoria étnica, filho de emigrantes, da comunidade LGBT, ou negro, depara-se com uma sociedade que maioritariamente recusa e desconsidera estas minorias. E estes jovens, na faixa etária entre os 18 e os 25, que residem nas grandes cidadãs americanas sentem-se cidadãos do mundo, são cosmopolitas e acham abominável que haja quem insulte e rejeite estas minorias. E repudiam liminarmente esta cultura da xenofobia e do nacionalismo. E ainda bem.
Diz que Trump é uma aberração política. Os ingredientes da personalidade só podia ter êxito nos Estados Unidos?
Não creio. Não vamos trocar um tipo de excecionalismo americano por outro. Depende da forma como estamos organizados, da mobilização e do discurso. No Brasil também foi eleita uma mulher e depois foi varrida do poder por uma série de machistas. Antes de Trump foi Obama a fazer história ao ser o primeiro presidente negro na Casa Branca.
Trump é uma aberração política que é recorrente na história e o símbolo de um nacionalismo como ideia que Orwell definia como a tese que podemos identificar os humanos como identificamos insetos num gabinete de entomologia e conseguimos dizer que um é muçulmano, o outro caucasiano, e muçulmano, etc. E não é também cidadão do mundo e preocupado com o destino do planeta? Esta lógica de estar tudo arrumado em gavetinhas é o maior risco de uma certa preguiça intelectual que vai emergindo.
Como antevê a relação de Washington com o mundo? Haverá uma aproximação a Moscovo e um distanciamento face à Europa e à China?
Trump disse sobre a China que instruirá o seu Secretário do Tesouro para declarar este país um «delinquente monetário». Se cumprir com essa promessa, vamos ter um escalar de tensões. Em relação à Rússia, Trump é um produto da política de blocos, que tão bem nos lembramos da nossa infância e adolescência. A sua visão do mundo é um homem forte em Moscovo e um homem forte em Washington a entenderem-se e a decidirem o estado do mundo por sobre a cabeça do resto do mundo, especialmente dos europeus, que estão no meio desses dois blocos. Putin e Trump têm em comum a mesma visão do mundo: cada tirano no seu lugar deve por a sua casa em ordem. O cidadão normal não conta para nada. Perante isto, para a Europa chegou a hora da verdade…
Porquê?
Porque a Europa tem de decidir o que quer ser e acabar com o criticismo da moda. Se achar que é para ir nesta voga de autoritarismo de Trump/Putin e de populismo então acabamos com a União Europeia. Se a UE quiser ter um futuro, alguma palavra a dizer no mundo e assumir o mercado único como a maior economia do mundo - maior ainda que a dos Estados Unidos - terá de ser mais integrada e a nós cidadãos europeus compete-nos garantir que essa integração se faz com base na democracia, nos direitos humanos e no Estado de Direito. A Europa precisa de entender que com a vitória de Trump acabou a história do líder do mundo livre. Ele não é o nosso líder, nem sequer é nosso amigo. As consequências para a liberdade do mundo e a ordem internacional são as mais terríveis. Vou dar dois exemplos. Ele deverá reconhecer a anexação da Crimeia, o que faz passar a mensagem que a força militar é uma forma correta de resolver as disputas territoriais. Nós que pensávamos ter ultrapassado isso há 70 anos. Não admira que a UE passe a discutir se quer ter um exército. Dito isto, as consequências para a militarização do mundo são enormes. 8 de novembro de 2016 ficará na história como um dia negro para o mundo.
As eleições na França e na Alemanha podem ser o golpe final numa Europa crescentemente irrelevante?
É essencial derrotar Le Pen em França e a extrema direita na Alemanha e na Áustria. Os europeus têm de por os olhos no que se passa nos EUA, no Reino Unido e na Rússia e expressarem pela força do voto que não querem ir por aí. A UE é a nossa ferramenta mais poderosa para construirmos um futuro no qual tenhamos voz. Caso contrário, continuaremos a cavar a nossa própria irrelevância. Aqui o papel da esquerda europeia revelar-se-á fundamental.
Como se combate o "trumpismo"?
O "trumpismo" derrota-se com uma resposta anti-trumpista. Em primeiro lugar, levando-o a sério e ouvindo aquilo que ele nos diz. Nomeadamente que está numa guerra cultural de nacionalismo contra aquilo que eles chamam o globalismo. Eles rejeitam os cosmopolitas, os patriotas do seu país e do mundo, isto é o fundamental do pensamento "trumpista". Trump disse-o na convenção republicana: «O nosso credo é a América primeiro, americanismo e não globalismo». E o combate ao "trumpismo" faz-se nas suas raízes culturais no debate público. A uma ideologia nacionalista devemos contrapor uma ideologia cosmopolita e de cidadãos do mundo. Estamos perante uma batalha cultural e não perante uma batalha sócio-económica, na medida em que a teoria de que o voto em Trump é a expressão do desemprego e da desigualdade é factualmente errada. Os EUA estão quase no pleno emprego e a desigualdade nem aumentou.

 

Nuno Dias da Silva
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