Isabel do Carmo, médica
O surto de “Legionella” deveu-se aos cortes orçamentais
Da sua
experiência revolucionária, do ativismo político, das décadas de
serviço no hospital mais importante do país e as novas modas
alimentares. De tudo isto e muito mais fala a médica Isabel do
Carmo.
"Luta Armada", o livro que
acaba de editar, é um contributo para combater a desinformação e o
desconhecimento sobre o período da histórica após a revolução de
abril?
Foram precisamente esses os motivos
que me levaram a escrever o livro. Normalmente são bastante omissas
as referências às ações armadas e ao seu contributo para a queda da
ditadura. Fala-se muito mais de outro tipo de movimentações. Por
outro lado, há muitos aspetos que foram alvo de deturpação. Por
exemplo, a ideia de que se mataram pessoas. Os três grupos armados
que existiam tiveram sempre como objetivo não cometer assassinatos,
o que é bastante original, porque este comportamento não teve
réplica em mais nenhum país.
A quem é que interessa que
este período fique numa certa obscuridade?
Interessa às pessoas de direita, no
fundo, a todos aqueles que querem conotar as organizações de
esquerda, nomeadamente as que se situavam numa esquerda mais
radical, com o terrorismo. E já agora, deixe-me acrescentar, que
para além de interessar à direita, também interessa a uma certa
esquerda bem comportada. É uma visão que repudio e que é totalmente
falsa.
Depois deste livro, de que
modo é que a história a vai lembrar?
Espero que com este livro a memória
histórica a meu respeito seja mais esclarecida. Até porque falo da
minha vida, das minhas motivações, do meu percurso, etc. Desejo ser
recordada como uma mulher que teve posições radicais em relação à
ditadura.
Não havia de todo
alternativa à luta armada?
Não havia, e isso foi sendo
demonstrado ao longo da história da ditadura. Logo no princípio
registou-se uma reação violenta à ditadura, ao contrário daquilo
que passou. A ditadura não foi aceite de uma forma pacífica. Houve
reações, o chamado «reviralho», e mesmo numa fase posterior
registaram-se picos de alguma violência contra o regime. A partir
de determinada altura chegou-se à conclusão de que a transição
pacífica não era possível e a alternativa era lutar de armas na
mão. E lutámos, antes de tudo, pelo derrube da ditadura e pela
liberdade. Mas também o fizemos pelo socialismo e contra a guerra
colonial.
Diz que as bombas tinham
mais impacto do que a propaganda ou a convocação de greves. De que
forma é que estas ações enfraqueceram e desorientaram o regime de
Salazar?
O regime estava habituado a um tipo
de luta não muito forte. Por exemplo, em Espanha, a luta
protagonizada pelos movimentos sociais revelava-se muito mais
intensa. Em Portugal tivemos alguns movimentos sociais fortes e
confrontos, alguns registaram vitimas, como aconteceu nas minas de
Aljustrel, mas depois existiam outras coisas semi-legais, que
podiam ser petições, movimentações associativas, etc, que acabavam
sempre em repressão. A polícia e o regime estavam habituados a esta
rotina de reprimir e prender. Quando começam a dar-se explosões,
visando, nomeadamente, alvos do aparelho de Estado, isso
desorientou a polícia, que desconhecia a origem destes atos. E o
regime, que assentava a sua força na segurança, ficou
baralhado.
Participou num livro de
entrevistas com José Jorge Letria, chamado "A luta também cura".
Sentiu isso?
Foi um trocadilho feliz que deu
título ao livro. Sendo eu médica, e tendo dedicado toda a minha
vida às questões do tratamento dos doentes, mas tendo enxertado na
minha vida aspetos da luta política, é como se essa luta fosse
vista como uma espécie de tratamento.
Tem dito que a luta armada
não faz sentido nos dias de hoje. Porquê?
Na Europa e em Portugal a luta
armada não tem lugar, nem faz sentido. Primeiro que tudo porque é
ineficaz. Qualquer combate com objetivos de transformação social
profunda e de mudança social alicerçada numa luta armada pontual
não seria consequente. O atual sistema não ficaria de pernas para o
ar. Durante a ditadura o regime era muito centralizado e portanto
os acontecimentos eram relativamente circunscritos. Atualmente,
temos um poder mundial, ate porque os estados têm perdido parte da
sua soberania. As grandes decisões são tomadas a nível global, em
grupos mais ou menos restritos e discretos.
E como qualifica as
manifestações violentas e destruidoras que se mobilizam junto, por
exemplo, às cimeiras do G-20?
Tratam-se de atos de ilegalismo,
que eu acho legítimos, que eventualmente enfraquecem a estrutura do
sistema. Duvido que tenham eficácia em termos de mudança radical,
mas simbolizam um ato de revolta social perante o funcionamento do
sistema vigente. Estes ilegalismos, a maior parte das vezes
protagonizados pelos jovens, abalam o sistema, mas não o conseguem
derrubar.
No seu tempo de experiência
revolucionária não havia internet, nem redes sociais. Estas são as
lutas armadas dos tempos modernos?
A internet é a nova arma dos tempos
modernos. Por um lado, uma arma do poder e também contra o poder.
Os «Panamá Papers», os «Paradise papers» e outras grandes denúncias
abalam fortemente o sistema e, quem sabe, um dia pode ir ao nó do
sistema. Estamos perante um mundo novo, em que temos novos meios de
poder, novos meios de produção e também podem - e estão a ser - os
novos meios de revolta. Veja-se, por exemplo, o caso de
Snowden.
Vivemos tempos
desconcertantes. Diz que a «democracia formal não está a dar
resposta». Que sugere?
Uma sociedade civil mais ativa,
mais participante, mais reivindicativa. E isso nem sequer é
ilegalismo, é apenas a sociedade a tomar conta de si própria. A par
do Parlamento, das vias democráticas, dos períodos eleitorais,
haver formas de auto-organização das pessoas em que os cidadãos
decidam sobre as suas instituições e o rumo a dar ao seu dia a dia.
Nesse campo há muito para fazer. Assim haja espírito junto da
população para promover essas formas de auto-organização. Seria bom
seguir o exemplo inglês em que a sociedade civil está super
organizada em variadíssimas associações, o que é meio caminho para
constituir um poder paralelo.
Em vários testemunhos que
tem dado, fala do «ressurgir do cristianismo primitivo». O que quer
dizer com isto?
O que é curioso é que no meio da
situação difícil do ponto de vista mundial, em que muitos chefes de
Estado são pela desigualdade e pelo autoritarismo - alguns deles
até podem ser psicopatas, como é o caso de Trump - em que se
verifica um refluxo dos bens adquiridos, os trabalhadores estão a
ser mais sacrificados, a perder direitos e a trabalhar muito mais
do que as oito horas pelas quais lutaram, surge uma personalidade
em completa contra-corrente e a denunciar o retrocesso que está a
acontecer. O Papa Francisco é muito atrevido naquilo que diz e
verdadeiramente anti-sistema capitalista, é pelos pobres e porque
não dizê-lo, é pela revolta. É uma espécie de reviver do
cristianismo primitivo e um retorno às bases cristãs, o que motiva
muitas associações e movimentos cristãos de base se sintam
amparados num momento tão difícil.
A troika já lá vai, mas
deixou marca, especialmente em Portugal. Ainda há marcas dessa
intervenção?
A intervenção da troika foi o
culminar da vitória do mundo financeiro, em que o dinheiro circula
como se fosse uma lotaria. E este período foi iniciado com as
medidas que começaram a ser tomadas por Reagan em Washington e
Thatcher, em Londres, na transição das décadas de 70 para 80. E o
curioso é que a crise começa no mundo financeiro, precisamente pelo
colapso dos bancos. A esse colapso os bancos acabaram por
sobreviver calmamente à crise por eles provocada, à parte da prisão
do senhor Madoff, elevado a bode expiatório da história. E depois
ainda tiveram o desplante de passar a mensagem que a crise se deveu
às pessoas que gastaram o que tinham e o que não tinham. Outros
viveram acima das suas possibilidades, não fomos nós. Mas como em
todas as crises são as classes mais desfavorecidas que sofrem.
Defendeu em 2013 uma
reunião dos partidos de esquerda no poder. O seu desejo
concretizou-se poucos anos depois. Que balanço faz?
Essa coligação permitiu que se
revertessem muitas situações impostas pelo catastrófico governo de
Passos Coelho. Portugal e os portugueses viveram um período muito
cruel, que em muitos setores da sociedade ainda se notam as
sequelas. Ideologicamente dominou a conceção que deviam existir os
muito ricos e os muito pobres e que os primeiros deviam ser
caridosos com os mais desfavorecidos. À custa deste pensamento foi
subtraído o orçamento da saúde e da educação e esteve em risco a
segurança social.
A "geringonça" tem pernas
para andar até ao final da legislatura ou algum dos parceiros,
eventualmente o PCP, vai rasgar o acordo?
O PCP não tem escolha. Se os
comunistas quebrarem este governo, assente numa maioria
parlamentar, é responsável pela vitória da direita. O PCP foi
inteligente em ter aceite este acordo, mas não está a ser maleável
em termos autárquicos ao recusar lugares nas vereações e alianças
com o PS.
O PCP está a pagar o bom
desempenho económico do governo?
Foi um grande rombo para um partido
com cariz autárquico como o PCP, mas eles precisam de olhar em
frente e jamais podem ser responsabilizados por um eventual
regresso da direita ao poder e, em última análise, abrir caminho à
sua própria destruição. Um papel que o PCP deve assumir passa por,
em sede parlamentar, exigir mais orçamento para a saúde, uma área
que bem carenciada está.
Conheceu por dentro o
Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante décadas. Concorda com os
que dizem que o seu desmantelamento foi evitado?
O SNS foi fruto de lutas que
tiveram origem ainda antes do 25 de abril e que conheceram
seguimento após o período revolucionário, com a criação dos centros
de saúde e que culmina na legislação e na lei de bases. É um SNS
baseado no que existe na Inglaterra e na Escandinávia, tendo como
base o Orçamento do Estado e, consequentemente, os impostos que os
contribuintes pagam. É um sistema igualitário, dotado de
profissionais com uma belíssima formação, sejam médicos ou
enfermeiros. Todos têm uma carreira longa, rastreada e com muitas
avaliações, tornando a sua qualidade reconhecida
internacionalmente. É este capital que faz da nossa cobertura em
termos de saúde extraordinária.
Mas parece consensual que
existiu um retrocesso em muitos aspetos…
O sucessivo avanço do poder
financeiro e da ideologia contra o Estado veio a afetar tudo aquilo
que é feito na base da estrutura do Estado. Os orçamentos para a
saúde registaram forte decréscimo. Os centros de saúde, hospitais e
os equipamentos ao fim de quatro ou cinco anos provocados pela
desorçamentação começam a ressentir-se. As unidades hospitais têm
atualmente muitas carências, apesar de termos procedimentos de
tratamentos ao nível dos melhores hospitais do mundo. Mas a rotina
do hospital, ou seja, o acesso às consultas, o acesso as cirurgias
e as enfermarias não podem deixar de espelhar as dificuldades de
orçamento. Mas nem tudo é negativo. Recentemente abriram unidades
de saúde familiar, o que considero um passo importante.
A saúde está neste momento
mais convulsa do que a própria educação. Há motivos para a
reivindicação de milhares de profissionais?
Os profissionais de saúde que se
têm manifestado, ou seja, os médicos, os enfermeiros e os técnicos
de diagnóstico, têm boas razoes para protestar. As carreiras
ficaram bloqueadas e os concursos nos médicos, baseados no mérito,
não abriram. Tanto nos médicos com nos enfermeiros os salários são
baixos. Eu própria fui diretora de serviços e o ordenado mal
chegava aos dois mil euros líquidos. Perante isto, para
profissionais com 30 ou 40 anos, se lhes acenarem de hospitais
privados, torna-se difícil resistir a essas propostas.
Os hospitais veem-se confrontados
com um excesso de doentes para a sua capacidade de atendimento e
resposta das enfermarias. O espírito de economizar refletiu-se na
redução do número de camas nos hospitais. A região de Lisboa foi
das que mais camas perdeu. Está a chegar o inverno, com ele a
gripe, e vamos assistir a que os centros de saúde a não estarem com
as horas de urgência suficientes para evitar que os utentes
congestionem os hospitais com casos clínicos menores. Eu acho que
os doentes a quem são atribuídas pulseiras verdes deviam ficar
todos nos centros de saúde.
O caso da "Legionella"
também pode estar relacionado com os cortes orçamentais com
reflexos na manutenção hospitalar?
Não tenho dúvidas. O surto de
"Legionella" deve-se aos cortes orçamentais. De um modo geral os
equipamentos dos hospitais estão já muito precários e necessitam de
manutenção e substituição. Um setor tão sensível como a saúde não
pode estar sujeito aos ditames das finanças e o orçamento que está
a ser debatido no Parlamento não é suficiente para as necessidades.
Os hospitais estão cheios de dívidas aos fornecedores, o que torna
impossível discutir com estes numa base de abatimento. Pelo que sei
os fornecedores não se recusam a fornecer os hospitais, mas também
não oferecem preços interessantes.
Rejeita a visão de má
gestão hospitalar?
Ninguém gere uma casa bem quando o
orçamento é baixo. Há vários anos que há uma suborçamentação na
saúde e que agora está cada vez mais patente. Mas, por exemplo,
podia haver a recuperação de medidas que foram abandonadas e que
não teriam qualquer custo adicional: a deslocação dos médicos
especialistas aos centros de saúde o que diminuiria muito as listas
de espera das consultas. E o que se verifica é que certas consultas
hospitalares registam listas de espera acima do que está
estabelecido pela Entidade Reguladora. Quanto às cirurgias, não é o
que se anda a dizer por aí. As cirurgias verdadeiramente urgentes
são feitas em tempo útil e com grande sacrifício dos médicos. No
hospital de Santa Maria opera-se ao sábado de manhã, para receber
uma retribuição diminuta.
Para concluir, falemos
sobre alimentação. Prolifera a literatura sobre como comer melhor,
não só nas livrarias, mas também na internet. Emergem novas
tendências como o Paleo. Como observa estas novas tendências
alimentares?
Fico muito preocupada com estas
receitas mágicas que aparecem um pouco por todo o lado. A maior
parte dos livros que vejo são fantasias e espírito mágico. São
modas que vendem.
A febre do Paleo é uma
moda?
Claro. É ridículo imaginar o que os
homens e as mulheres do Paleolítico comiam. Daquilo que leio sei
que comiam muito mamute. Se estavam ao pé do rio comiam peixe, os
do sul da Europa ingeriam mais vegetais, etc. E depois é preciso
perguntar: porque é que a comida do Paleolítico há-de ser boa para
a nossa saúde? Não temos nada a ver com o modo de vida deles, a
esperança de vida era menor. Era outra coisa. Estas novas modas
alimentares são fantasias que dão dinheiro. Mas há mais. Acabar com
o glúten, acabar com o leite e beber soja, são modas que têm origem
no sítio de sempre, os Estados Unidos, onde existe um mercado de
milhões de pessoas.
Eu, que toda a vida bebi
leite de vaca, devo deixar de ingerir?
Claro que não. O leite é um ótimo
alimento e dos mais completos que existem. A moda de não beber
leite foi das últimas a ser lançada, a maior parte delas com
interesses comerciais.
As doenças oncológicas são
fonte de preocupação para todos. Que explicações encontra para a
disseminação destes fenómenos?
As explicações são várias. Vivemos
o dobro da esperança de vida que tínhamos há um século e a maior
parte dos cancros aparecem nesta etapa da vida que os seres humanos
ganharam, de uma forma geral. É certo que há cancros que se
relacionam com fatores ambientais, alimentação e modo de vida, como
os do cólon e da mama. Mas outros há que nada têm a ver com o
ambiente e que dizem respeito à desorganização celular que é a tal
sorte ou azar de que falam os especialistas nestas matérias. Nós
somos muito antropocêntricos, e pensamos muito na nossa pessoa e na
nossa vida, mas o universo é mais complexo do que o ser humano.
É uma profunda conhecedora
dos comportamentos alimentares dos portugueses. Acha que nos
últimos tempos tem havido uma nova consciência, nomeadamente ao
nível escolar?
A literacia foi especialmente
aumentada em termos alimentares. Há mais a ideia que as pessoas têm
que ingerir vegetais e fruta e cortar nas gorduras. Agora o mercado
está invadido por alimentos hipercalóricos e é neste aspeto que
reside a explicação para a obsesidade infantil e também dos
próprios adultos. É assustador. Nos adultos, em 11 anos, a
obesidade duplicou. Nas crianças tem vindo a aumentar menos, mas
permanece sem diminuir. O meio que nos circunda é muito
obesogénico. Os doces e as gorduras rodeiam-nos e estão disponíveis
a um preço muito acessível. Um bolo ou um chocolate, mesmo com
dificuldades financeiras, qualquer pessoa consegue comprar.
Com aprecia o esforço que
se tem feito nos estabelecimentos escolares para introduzir os
menus vegetarianos e trocar os bolos pelas sandes?
São passos importantes e que têm de ser dados. O aumento dos
impostos sobre o sal e as bebidas açucaradas teve reflexo, noutros
países, no peso das crianças. Devem ser retiradas todas as máquinas
de vendas de snacks dos hospitais e das escolas. Relativamente aos
bares ou cantinas das escolas, em vez de existirem recomendações,
deviam existir proibições. A lei devia ser mais dura e
intransigente. As recomendações continuam a ser pouco seguidas. E o
que fazer quando as câmaras municipais permitem que um restaurante
de fast-food abra mesmo em frente a uma escola? Este combate só se
vence com uma política integrada e radical ao nível de todos os
ministérios, não apenas o da Saúde e da Educação, mas
transversalmente. Mas os interesses e as discussões com a
agro-indústria são insuportáveis e bloqueiam qualquer tentativa que
colida com os seus objetivos.
Nuno Dias da Silva
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