Entrevista

Miguel Poiares Maduro, EX-Ministro e professor universitário
"Fake news combatem-se com pluralismo"

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A partir de Florença, para onde regressou após a experiência política, o ex-ministro Poiares Maduro defende que a estabilidade é fundamental para o desenvolvimento e o progresso do país.

Como é que vê a partir de Florença, onde trabalha e reside, o seu país de origem?
Vejo por vezes com mais paciência e outras vezes com mais impaciência. Mas vejo-o necessariamente de forma diferente e não por estar, atualmente, fora do país, mas condicionado pela experiência que decorre da vivência externa. Isso leva-nos a conhecer culturas diferentes e formas de organização do Estado diferentes. Umas piores, outras melhores.

Quer dar um exemplo do que o impacienta em Portugal?
Um aspeto que tenho procurado combater é o facto de pensarmos e valorizarmos pouco os processos de decisão e as instituições, a capacitação das pessoas, etc. Isso está diretamente relacionado com a cultura de Estado, a cultura política e a própria cultura da sociedade civil. Este é, na minha perspetiva, um dos principais problemas do país, mas há mais, como a falta de meritocracia e a superficialidade com que tratamos certos temas, só para dar dois exemplos.

Teve uma experiência política no governo de Passos Coelho, como ministro adjunto. Como é que um "estrangeirado", que tem feito boa parte da sua carreira fora do país, se integrou no meio político nacional?
O "estrangeirado" é visto em Portugal de forma muito pendular. Ou temos tendência para valorizar, quiçá de forma excessiva, que teve sucesso lá fora, como por outro, temos uma enorme rejeição por quem vive ou viveu no estrangeiro por não compreender o país. Eu entendo que uma pessoa que tem essa experiência acumulada pode iluminar dimensões de dada questão e ser capaz de romper (através de uma visão inovadora) com uma forma tão viciada de lidar com determinado tema.

Acha que o seu contributo ajudou a melhorar a forma «viciada» como olhamos para certas questões?
Procurei dar o meu melhor e combater alguns aspetos comportamentais e de organização, fruto da minha experiência pessoal e académica. Eu costumo dar um exemplo verídico que aconteceu em Bogotá. Esta cidade colombiana deparou-se com um grave problema no trânsito. As multas e a fiscalização mais intensa não melhoraram a situação. Quando um novo presidente da câmara tomou posse, curiosamente um filósofo, fruto do seu conhecimento próprio em termos da ciência do comportamento, ele partiu da premissa que mais do que as sanções pecuniárias aplicadas, as pessoas não gostavam mesmo de ser ridicularizadas. A medida imediata foi substituir boa parte dos polícias de trânsito por…palhaços e estes palhaços gozavam com os condutores que não cumpriam as regras de trânsito. O resultado foi eloquente: o funcionamento do trânsito em Bogotá melhorou em cerca de 30 por cento. E o que nos ensina este exemplo? É preciso possuir um conhecimento, adaptado ao contexto local, para que o conhecimento se traduza numa melhoria do serviço público e da política pública, no fundo, para melhorar o funcionamento da sociedade.

Os políticos estão sempre na mira da opinião pública. O recente caso das falsas marcações de presença por parte de um deputado do PSD voltou a acirrar os ânimos. É um defensor de uma reforma da cultura política, mas não é a forma de funcionamento dos partidos em Portugal um obstáculo a esse objetivo?
Sem dúvida que sim. Por isso, o tal ênfase que eu coloco na importância de reformar as instituições e os seus processos de decisão, porque isso é um dos aspetos que contribui para a tal mudança de cultura. O modo como os partidos recrutam os seus quadros e os incentivos que existem à militância partidária são problemas. Se os partidos têm poucos militantes e se a participação política diminui é muito mais fácil esses partidos serem capturados por pessoas que participam na política nem sempre pelas melhores razões e pelos melhores interesses. Mas também é fundamental ter regras que melhorem e credibilizem o funcionamento das nossas instituições políticas.

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Quer elencar algumas dessas regras?
Por exemplo, regras sobre transparência, regras de prevenção de conflitos de interesses. Eu fiz várias propostas concretas nesse sentido. Acho inaceitável que continuemos a ter em Portugal a possibilidade de os membros do governo e de outros cargos públicos reunirem com interesses económicos, sem nós sabermos quais e com que agenda. Na União Europeia qualquer alto funcionário tem de registar qualquer reunião que mantenha com determinado representante de interesses económicos, políticos ou sociais. Isso fica transparente e as pessoas ficam a par, ajudando a explicar o motivo porque determinada proposta política é apresentada. É importantíssimo ao nível da responsabilização política. O que me impacienta é que continuamos a discutir os pequenos ou os grandes casos, que se sucedem, e não nos sentamos à mesa para definir o que é preciso fazer em termos de regras para que isso não se repita. A transparência é fundamental para o escrutínio por parte dos cidadãos e também para tornar as políticas públicas impermeáveis a qualquer interesse económico ou de outra natureza.

É defensor de comissões de fiscalização independentes para a seleção de candidatos a cargos políticos. Seria algo parecido ao que sucede nos Estados Unidos?
Qualquer detentor de um cargo público de topo, político ou da administração pública, devia estar sujeito, antes do início de funções, a um escrutínio por parte de um órgão independente que tivesse acesso à declaração de rendimentos e de património, comparando isso com as suas declarações fiscais, segurança social, registo criminal e detetasse eventuais conflitos de interesse, etc. No fundo, para garantir o interesse do Estado e dos cidadãos e, não menos importante, defender a integridade dessas mesmas pessoas, quando elas são sérias, libertando-as de especulações ou notícias infundadas.

Uma política de consensos entre os partidos, nomeadamente em matérias decisivas, como a saúde ou a educação, seria um passo positivo?
A política faz-se através da contraposição e da alternativa, mas uma política saudável também tem uma dimensão de compromisso e de consenso que garanta a continuidade de alguns aspetos estruturais de todas as políticas públicas. Ter estabilidade é fundamental para o desenvolvimento e o progresso do país. Infelizmente, em Portugal, à semelhança do que acontece noutros países, a política tem estado muito polarizada. Por exemplo, numa área como a educação, e já agora na ciência, a estabilidade de políticas públicas é fundamental, porque só dessa forma é que se consegue obter resultados. Não podemos passar o tempo constantemente a mudar as políticas educativas. Era crucial chegar a um entendimento comum sobre este tema.

Tutelou entre outras áreas a comunicação social. Como é que observa a constante perda de influência dos chamados "mass media" tradicionais para as redes sociais?
Vejo com alguma preocupação. O espaço público mudou muito. O nosso espaço público sempre foi editado, no sentido em que quando temos muita informação e muitos pontos de vista, não conseguimos absorver toda a informação que nos chega. Normalmente eram os "mass media" tradicionais que faziam esse trabalho, marcando a agenda política e social. E o grau de confiança era razoável, mas perderam importância. Hoje tomamos as nossas decisões políticas e democráticas com base em plataformas digitais e redes sociais, em que os processos de edição resultam de algoritmos, cuja qualidade e controle desconhecemos. Esta questão só se resolverá quando encontrarmos processos de edição credíveis para o espaço público novo do digital.

A proliferação das "fake news", especialmente nesses meios digitais, também o inquietam?
O processo das "fake news" é preocupante, apesar de estudos recentes apontarem que o seu efeito não tende a ser determinante no comportamento político dos cidadãos. Os indicadores dizem que as "fake news" são, sobretudo, importantes na mobilização daqueles que já estão convencidos ou radicalizados, se preferir o termo.

Que mecanismos de combate às "fake news" advoga?
Existe uma nova tendência de mecanismos de censura para combater as "fake news", o que não deixa de me preocupar. É inquietante ver o poder de censura que se dá a grandes empresas como a Google ou a Facebook para determinar o que é falso e verdadeiro. No fundo, são entidades privadas que detêm o quase monopólio desse novo espaço público. Corremos o risco, e inspirando-me naquela expressão anglo-saxónica, de "deitar o bebé fora com a água do banho". Eu penso que a Google e a Facebook devem tornar transparentes a origem das notícias e revelar se elas são ou não são pagas. Em suma, o combate às "fake news" faz-se através do pluralismo e não através da atribuição de poderes de censura, em particular a entidades privadas.

A Europa continua a viver momentos delicados. O "brexit" continua por definir, a Itália desafia Bruxelas e os nacionalismos e populismos conquistam espaço de manobra, em especial na Hungria e na Polónia. Como vê o futuro da Europa?
O que assistimos hoje em dia é a um populismo nacionalista. Os populistas arrogam-se ser os detentores da vontade popular que combatem essa elite que tem governado, segundo eles, contra aquilo que é a verdadeira vontade popular. Um dos grandes riscos do populismo é o seu arrojo por entender que a vontade maioritária lhes permite exercer o poder de uma forma absoluta, negando qualquer mecanismo de separação de poderes ou de controlo independente no exercício desses poderes. O populismo é uma forma de exercício de poder que frequentemente ganha eleições de  uma forma democrática, mas que tem em si mesmo a semente da ditadura e do autoritarismo.

As eleições europeias de maio podem reforçar o poder dos populistas?
Temo que sim, na medida em que os partidos moderados não têm conseguido articular, explicitar e apresentar aos cidadãos uma proposta política alternativa e que seja positiva na abordagem dos receios populares e na desconfiança da política que está na génese do populismo.

Passou pela FIFA onde presidiu ao comité de governação e procurou reformar a cultura do futebol do ponto de vista interno. Assumiu o seu falhanço. Os interesses instalados e sistémicos inviabilizaram o seu objetivo?
Os objetivos eram vastos e ambiciosos. Entre outros, o controlo de integridade dos agentes do futebol, a democracia dos processos eleitorais, a igualdade das mulheres no futebol, a não promiscuidade entre futebol e interesses políticos e económicos, etc. Contudo, não tivemos sucesso e isso deveu-se ao facto de os órgãos independentes - como este a que presidi - estarem na dependência de órgãos políticos do futebol, que se opõem a essas próprias reformas. Trata-se, no fundo, de um conflito sistémico que inviabiliza na prática qualquer processo sério de reforma do futebol.

Quem conseguirá reformar por dentro o desporto mais popular do mundo?
O futebol só será reformável através de uma intervenção externa, que deverá ter origem em autoridades públicas que criem órgãos independentes que controlem os organismos do futebol na sua forma de governação. Isso não está ao alcance de qualquer Estado porque o país que o ousar fazer verá as suas seleções excluídas das competições da FIFA e da UEFA. Creio que a União Europeia e os seus 28 estados poderão ter esse poder para escrutinar e supervisionar os processos de governação do futebol.

É um sportinguista assumido. No dia em que falamos, o ex-presidente Bruno de Carvalho está a ser ouvido em tribunal, na sequência dos acontecimentos de Alcochete. Há ainda casos em investigação como o e-toupeira, o dos emails, etc. É exagero dizer que o futebol é um sítio mal frequentado?
Um dos problemas que temos na nossa sociedade é o seguinte: parece que abdicámos em certas áreas, por exemplo, no futebol e na política, de fazer juízos éticos e remetemos tudo para o domínio da justiça e do sistema criminal. E digo isto porque no caso do Sporting critiquei, em tempo oportuno, o comportamento ético de Bruno de Carvalho, da mesma forma que considero que o que já se sabe do comportamento do Benfica e dos seus dirigentes nos casos que têm vindo a lume devia ser o suficiente para os adeptos encarnados formarem um juízo ético que levasse à demissão desses dirigentes. E o que acabo de dizer para o futebol, aplica-se à política. Já sobre os processos judiciais em curso, não me pronuncio.

Cara da Notícia

Um cidadão do mundo

As novas tecnologias (mais concretamente o Skype) viabilizaram a entrevista entre Lisboa e Florença, a bela cidade da Toscânia, em Itália. É na cidade dos Médicis que vive e trabalha Miguel Poiares Maduro (nascido em Coimbra, a 3 de Janeiro de 1967), sem perder de vista a realidade portuguesa à distância do ecrã de televisão onde sintoniza todos os canais nacionais, generalistas e por cabo. Depois de Tóquio, Yale, Bruges e Telavive, Poiares Maduro fixou-se em Florença. Todas estas cidades estão ligadas à sua prestigiada carreira académica. Mas foi na urbe italiana que se doutorou e onde dirige a School of Transnational Governance do Instituto Universitário Europeu. No entretanto, fez uma pausa na carreira académica para exercer funções de advogado geral do Tribunal de Justiça da Comunidades Europeias. Não é por acaso que se lhe reconhece grande competência na área do direito europeu e constitucional. A sua primeira experiência política foi no governo Passos Coelho, entre 2013 e 2015, tendo desempenhado as funções de ministro adjunto e do desenvolvimento regional. Em 2010, foi distinguido com o Prémio Gulbenkian de Ciência.

Nuno Dias da Silva
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