Editorial
O que pensamos e o que fazemos
A Escola sofreu, ao longo das últimas décadas,
transformações profundas. Mas não é menos verdade que esta
instituição educativa continua a padecer de evidências que nos
permitem catalogá-la (ainda!) como demasiado racional, burocrática,
socialmente desajustada e impregnada de estereótipos
administrativos e academicistas.
Em consequência, instalou-se no mundo interior dos docentes um
efeito cuja perversão ainda está por medir: pese embora tudo o que
aconteça na realidade diária das escolas, os professores estão
convencidos de que a sua profissionalidade e a sua qualidade de
trabalho dependerá, mais que tudo, das suas competências
"operacionais", que os conduzem à aplicação de técnicas rigorosas,
através das quais conseguirão "produzir" a aprendizagem dos seus
alunos.
E disso há inúmeras provas, mesmo para os mais cépticos. Desde
logo, todos abominam os "receituários", todavia quase sempre vivem
dependentes dessa normatividade, que proporciona uma grande área de
conforto, e grande parte dos conhecimentos que guiam a acção
docente. Depois, toda uma literatura especializada nos empurra para
muita elucrubação dos "tradutores-especialistas", aqueles que
acreditam na voz especializada, enquanto intermediário
insubstituível entre a origem científica do conhecimento e a
correcta interpretação e divulgação das normas pedagógicas.
Finalmente, todos sabemos que as narrativas do politicamente
correcto alteraram o discurso e as linguagens. Porém, o "processo
de cretinização técnico-burocrático" do trabalho docente permanece,
no substancial, inalterável. Resultado: a lucidez demasiado
disciplinar e especializada conduz, invariavelmente, à cegueira no
que respeita à apreciação do global, do geral e da diferença.
Neste processo evolutivo, é certo que a ciência substituiu a
religião quanto à construção do discurso pedagógico. Todavia, novas
formas de misticismo afloraram sempre que, no terreno
institucional, se procedeu à aceitação dos poderes, aliados aos
saberes, como meios únicos de legitimação de uns e dos
outros.
Para que a Escola entre numa via de transformação positiva,
revela-se essencial aceitar alguns desafios. Desde logo, importa
nivelar o estatuto da "pedagogia oficial" com o do "conhecimento
prático" dos docentes. Depois, exige-se o rápido reconhecimento da
maioridade dos profissionais do ensino. Reconhecimento que propicie
a conquista da autonomia para pensar o próprio pensamento,
autonomia para reflectir sobre o conhecimento elaborado, autonomia
para construir novo pensamento com base no conhecimento e na
maturação da própria acção docente.
No fundo, encontramo-nos perante um desafio, lançado aos
"práticos", para que conquistem, dentro das escolas, todas as
possibilidades que lhes permitam a elaboração de conhecimento,
através do qual sustentem e teorizem essa mesma prática.
É que a separação entre pensamento e acção, implica que a educação
não seja mais uma preparação para agir. Implica a aceitação de dois
ensinos distintos: um especulativo, o outro prático, um fornecendo
o espírito e o outro a letra, um o método, o outro os resultados. E
tudo isto nos empurra para o sublinhar de uma das maiores
contradições que nos podem ser imputadas a nós, educadores: a
incapacidade para integrar na nossa prática quotidiana, de um modo
coerente, o que pensamos e o que fazemos.