Eduardo Dâmaso, jornalista
Corrupção, disse ele!
É um dos mais reconhecidos jornalistas da sua
geração, nomeadamente no domínio da Justiça. Eduardo Dâmaso expõe,
de forma crua e exaustiva, as teias que são urdidas para a
propagação da corrupção no país e apela a um «sobressalto
cívico.»
Após 38 anos de profissão, considera que este seu livro -
«Corrupção» - se trata mais de uma investigação/compilação
jornalística ou é o seu contributo pessoal e cívico para um crime a
que chama de «invisível» e «sem castigo»?
Este livro é um contributo pessoal e cívico para a discussão
pública de um crime que provoca um grave dano na economia nacional
e distorce princípios essenciais e consagrados na própria
Constituição, como a igualdade entre portugueses perante a lei e o
Estado ou a livre e sã concorrência entre empresas. Assenta numa
lógica de investigação jornalística, na medida em que procura
entender a realidade da corrupção de uma forma um pouco mais
profunda do que aquela que ela assume, muitas vezes, na discussão
política, e nesse sentido implica também uma interpretação sobre o
significado das narrativas, dos processos judiciais, dos discursos
políticos, das estatísticas e das leis sobre o tema.
A associação Transparência e Integridade tem em curso uma
petição pública, lançada em setembro, pela adoção de uma estratégia
nacional contra a corrupção que conta atualmente com cinco mil
assinaturas. Seria necessário um sobressalto cívico para combater
este flagelo que, na sua opinião, prejudica «10 milhões de
vítimas»?
Penso que essa é a expressão exata: sobressalto cívico. Causar
esse sobressalto cívico na sociedade portuguesa seria a melhor
forma de combater a corrupção. Não tenho ilusões sobre os
objetivos. Penso que é impossível aspirar a eliminar a corrupção.
Ela tem raízes históricas, sociais e económicas muito profundas.
Mas se chegássemos ao patamar de tornar consensual, de forma ativa
e empenhada, a necessidade de combatê-la, já seria muito bom. É
preciso acentuar a repressão judicial da corrupção para poder abrir
caminhos mais fortes e mais intensos para a prevenção e educação da
e sobre a corrupção.
Nuno Garoupa, ex-presidente da Fundação Francisco Manuel
dos Santos, afirmou, em entrevista recente, que os «partidos
políticos desistiram de combater a corrupção».
Concorda?
Não sei se é definitivo, mas há muita verdade nessa afirmação. Os
partidos que governaram Portugal nas últimas décadas desistiram de
criar uma estratégia nacional, coerente e organizada contra a
corrupção e tudo o que gira à volta dela, como os conflitos de
interesses, o tráfico de influências, o abuso de poder, o peculato
e outros crimes ou práticas que têm vindo a cavar um fosso enorme
entre os partidos e os portugueses.
Há uma velha máxima que diz que «o importante não é ser
ministro, é ter sido ministro». É isto que explica que as empresas
contratem quase todos os ex-governantes para seus consultores ou
administradores? O objetivo passa por lucrar através do tráfico de
influências?
Sem dúvida! A passagem pelo governo transformou-se, para muitos,
numa mera oportunidade de angariação dos contactos necessários para
levar para a vida fora da política, nas empresas privadas, onde se
especializam em abrir portas, facilitar contactos e negócios com o
Estado. A vida pública está cheia de ex-ministros e secretários de
Estado que enriqueceram em menos tempo do que um fósforo se apaga.
Sem que seja visível a sua competência técnica, o seu currículo ou
sequer a capacidade de fazer, resolver ou decidir em contextos de
serviço ao País, criando riqueza e emprego.
É comum ouvir-se dizer que a "Operação Marquês" é o
processo mais importante da democracia, por envolver o
ex-primeiro-ministro, José Sócrates. Iniciado em 2013, cinco anos
depois o processo ainda está na fase de instrução. Justiça que
tarda é justiça que falha?
Justiça que não respeite um princípio de atualidade não é justiça.
Os processos não podem eternizar-se na investigação nem na
caminhada para julgamento. Muito menos na fase de confirmação
irreversível de sentenças, condenatórias ou absolutórias, nos
tribunais superiores. A causa da morosidade, no entanto,
habitualmente assacada ao poder judicial, tem origens complexas.
Ela radica também - e sobretudo - na forma como o poder legislativo
produz certo tipo de leis, como cria tipos criminais de aplicação
impossível, como é o caso dos crimes de tráfico de influências e
corrupção, ou como desenhou uma teia labiríntica de garantias
processuais que destrói o próprio valor da administração de uma
justiça justa. As garantias processuais são uma das provas de
algodão da natureza democrática de um regime, mas não podem ser
transformadas em instrumentos da impunidade absoluta. No caso do
processo Marquês, há que sublinhar, como em muitos outros, a
instrução é requerida pelas defesas e não pelo Ministério Público.
Ou seja, são os arguidos e não o Estado que aposta numa lógica
dilatória.
Governo, banca e grandes empresas construíram teias que
estão bem presentes nos emblemáticos casos BES, BPN, Banif,
Freeport, Operação Furacão, Face Oculta, Portucale e outros. A
impunidade dos crimes de colarinho branco é o calcanhar de Aquiles
da justiça portuguesa?
Penso que essa é uma realidade que entra pelos olhos. Eles são o
calcanhar de Aquiles da justiça mas, essencialmente, do próprio
País, da sua economia e organização social e política. O naufrágio
da banca e de grandes empresas como a PT ou a Cimpor só é
atribuível a causas de natureza político e financeira, que criaram
um sistema de promiscuidade entre poderes e um verdadeiro pântano
político-social. Foi uma tragédia, de que, em grande medida, a
sociedade portuguesa se alheou, e que se espera agora que a justiça
resolva. São expetativas demasiado grandes para um sistema judicial
que tem uma Polícia Judiciária onde o poder político esteve anos a
fio sem investir, no que respeita ao crime económico. Que tem um
Ministério Público também sem meios e pressionado por estratégias
de controlo político a partir das cúpulas, nomeadamente acentuado o
controlo dos partidos no Conselho Superior de Magistratura. Que
tem, em algumas áreas, uma cultura de respeitinho pela chamada
"dignidade dos cargos", inspirada em modelos dos anos 30 do século
XX, como se viu no caso de Tancos, onde a argumentação para não
ouvir o Presidente da República e o primeiro-ministro recuou às
ideias de Alberto dos Reis, um grande jurista na área do processo
civil mas um homem do regime, professor e amigo íntimo de Salazar,
presidente da Assembleia Nacional durante três mandatos, membro
vitalício do Conselho de Estado, etc. Verdadeiramente espantoso,
para não dizer outra coisa…
Critica o Código Penal e a legislação penal avulsa
por estarem «cheios de crimes inaplicáveis». A raiz do mal está no
legislador ou no «velho Bloco Central dos interesses», como lhe
chamou em editorial recente na "Sábado"?
Essa é, digamos assim, uma das principais teses do meu livro. A
ideia de que o poder legislativo, materializado nas sucessivas
maiorias parlamentares de partido único ou em coligação, foi
instrumentalizado demasiadas vezes por poderosíssimos grupos de
interesses ao longo dos últimos trinta anos, grosso modo dos
governos da AD, no início dos anos 80, para cá. Por isso, tivemos
processos judiciais muito importantes que nunca chegaram a lado
nenhum e que refletiam ataques brutais ao erário público. Foi assim
com o Fundo Social Europeu, entre 1986 e 1988, logo no início da
adesão à Comunidade Económica Europeia, em que mais de 200 milhões
de contos, na moeda da época, desapareceram pura e simplesmente sem
qualquer espécie de consequências. Já viu quantos mil milhões de
euros é que isso daria se fizéssemos uma conversão não apenas
literal, mas tendo em conta outros elementos de valorização da
moeda!? Foi assim que passámos, na mesma altura, do velho regime
fiscal para o novo, que trouxe o IVA, IRS e IRC, numa transição
assente numa lógica de perdões fiscais e de puro favorecimento de
quem já tinha muito dinheiro. Foi assim que uma verdadeira
indústria de obras públicas assente numa estrutura de "sacos azuis"
para pagar subornos atravessou todo o cavaquismo e, depois, os
governos seguintes. Enfim, os exemplos são demasiados. Ao mesmo
tempo, os nossos códigos penal e processual penal exibiam uma
fulgurante eficácia na repressão de crimes de sangue, incluindo o
terrorismo, mas claudicaram por completo nos crimes económicos.
Para quem acredita em coincidências, está bem. Para mim, não…
Em Portugal a produção legislativa é abundante, mas a sua
aplicação prática muito escassa. Causa-lhe estranheza que a maior
parte dos deputados eleitos tenha formação em Direito ou exerça
atividade em grandes escritórios de advogadas ou estamos perante
uma mera coincidência?
A produção de "coincidências" é um método eficaz para bloquear a
discussão pública de assuntos sérios, como este. Transformou-se
numa espécie de adesivo para ir tapando ou inibindo muitas bocas.
Não é segredo nenhum que os grandes escritórios não só dominam hoje
a produção legislativa, que é cozinhada pelos seus advogados por
encomenda de governos, autarquias, instituições e empresas públicas
muito diversificadas, como, depois, vão dominar a interpretação das
leis. É o chamado "win win", se me é permitido o inglesismo.
Os especialistas, nomeadamente a procuradora geral
adjunta, Maria José Morgado, sustentam que os crimes de corrupção
são extremamente difíceis de investigar e também de provar. Que
estratégias e malabarismos os tornam tão difíceis de
intercetar?
Desde logo, a sua deteção. Se não existirem denúncias ou
mecanismos de fiscalização eficazes em áreas essenciais do Estado,
como a contratação pública, dificilmente se poderão investigar os
crimes praticados. Aqui, o essencial é, cada vez mais, investigar
com atualidade, quase em tempo real, para que a recolha de prova
seja eficaz. Se isso não acontecer, a PJ e o MP são empurrados para
um cenário de autópsia ou de pura arqueologia, assente na recolha
de toneladas de documentação e testemunhos sem grande fiabilidade,
correndo contra o tempo para evitar prescrições.
O país precisava, à semelhança do que aconteceu em Itália,
na década 90, de uma operação "mãos limpas" ou pensar nessa
possibilidade é uma utopia?
A circunstância histórica de Portugal é muito diferente dessa
Itália dos anos 90. A Itália desse tempo estava confrontada com a
guerra aberta da Mafia contra o Estado, sobretudo contra os juízes,
por causa do maxiprocesso de Palermo que condenou a penas de prisão
efetiva mais de 300 líderes mafiosos sicilianos e calabreses.
Estava confrontada com um sistema político em decadência absoluta,
mergulhado na corrupção e que evidenciava sinais cada vez mais
fortes e flagrantes de conivência com a Mafia. Tinha o terrorismo
das Brigadas Vermelhas. O Estado quase abandonou o poder judicial
nessa luta terrível contra poderes que poderiam ter destruído o
País. Passaram trinta anos e, ainda hoje, há questões essenciais
por resolver, como a de saber se existiu uma negociação do Estado,
através do poder sinistro dos serviços secretos da época, com a
Mafia. Enfim, acho que a operação "Mãos Limpas" foi um passo muito
importante, deixou um legado essencial na luta por uma sociedade
mais limpa e íntegra, mas não é um modelo automaticamente
reproduzível em qualquer outro país. Por cá, já seria bom se
conseguíssemos ser eficazes na criação da vontade política
necessária para construir uma estratégia nacional contra a
corrupção. E de, com isso, assegurar uma dupla caminhada de
investigação e repressão dos casos mais graves, ao mesmo tempo que
se aposta na sensibilização e educação da sociedade para combater
um flagelo que empobrece os portugueses com menos recursos - que é
a esmagadora maioria - e lhes retira ou diminui direitos como a
saúde, a educação, serviços públicos eficazes, entre muitos
outros.
Refere que a comunicação social tem sido conivente com o
fenómeno da corrupção. De que modo?
Essa é uma realidade mostrada por alguns dos processos mais
recentes. Vimos no caso Face Oculta, em que Armando Vara foi
condenado a cinco anos de prisão efetiva, sobretudo na vertente do
chamado "negócio PT/TVI", como alguns jornalistas, colocados em
direções de órgãos de comunicação social, diabolizaram os
investigadores e outros colegas. Vimos como os investigadores da
operação "Marquês" foram diabolizados em alguns meios. Uma coisa é
termos a nossa opinião e pensarmos de forma crítica sobre a ação da
justiça e dos media. Outra coisa bem diferente é criar barreiras de
fogo contra quem investiga e publica. Isso aconteceu diariamente em
alguns jornais e televisões que não só silenciaram os casos como
atacaram quem os noticiou. Foram os cães de guarda, não da
comunidade mas de interesses particulares.
É dos jornalistas que melhor conhece o sistema judicial
português e diz que este é eficaz e forte nos crimes de sangue e
fraco e moroso nos crimes económicos. Na sua opinião, o principal
problema são as interferências e pressões políticas ou a eterna
falta de meios?
A falta de meios é endémica e uma forma de pressão política. Tudo
o que a PJ e o MP obtiveram na área do combate ao crime económico,
em termos históricos, foi sempre contra a vontade do poder
político. Foi por pressão externa da União Europeia e de
organizações como o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO),
órgão do Conselho da Europa, bem como de outras organizações
internacionais. Ou então, por força da exploração das contradições
de alguns governos, que prometiam combater a corrupção mas nada
faziam, e que em ciclos políticos mais difíceis se viram obrigados
a ter de investir alguma coisa em meios técnicos e humanos. Um dos
principais obreiros nessa luta pela conquista de meios para a
investigação criminal foi o antigo procurador-geral da República,
Cunha Rodrigues.
Que papel pode ter a escola, em sentido amplo, ou seja, os
estudantes, os professores, os encarregados de educação e até a
tutela, para combater, no médio/longo prazo este
fenómeno?
O papel das escolas é essencial. Elas deveriam ser apoiadas na
criação de estruturas programáticas e curriculares sobre os
mecanismos da corrupção, na aproximação e conhecimento das
instituições responsáveis pelo seu combate. Deveriam ser o palco
ideal para levar e dar a conhecer os bons exemplos de homens e
mulheres, verdadeiros heróis anónimos na sua maioria, que passaram
a vida a travar esta luta. Só existirá uma verdadeira prevenção da
corrupção se a educação contra a corrupção for assumida nas
escolas. Sem isso, andaremos sempre dentro de um velho labirinto e
sem grandes hipóteses de encontrar um caminho de saída.
«O jornalismo de investigação é mais perigoso para o poder
do que a oposição», escrevia há dias no "Correio da Manhã", Eduardo
Cintra Torres. É por isso que todos os governos têm a tentação de
domesticar os órgãos de comunicação social?
O jornalismo de investigação pode ser terrivelmente eficaz. Num
primeiro momento, é ele que assegura o escrutínio aos diversos
poderes. É ele que levanta uma ponta aqui e ali e que permite ir
mostrando a complexidade de algumas realidades e a intervenção
pública sobre elas. Veja-se o que está a passar-se com as minas de
lítio. Tem sido a comunicação social, muito em particular o
programa "Sexta às Nove", da RTP, o que deveria ser um orgulho para
a televisão pública, a mostrar as contradições profundas da atuação
do governo num tema de elevado impacto ambiental numa das jóias
naturais de Portugal, em Trás-os-Montes. Pela natureza indomável
que tem, o jornalismo de investigação é quase sempre o alvo
prioritário dos governos, em particular das maiorias
absolutas.
O jornalismo vive uma crise sem precedentes, com poucos
meios financeiros e com a concorrência feroz das redes sociais e
até das "fake news". Como sobreviver num contexto de tamanha
adversidade?
O jornalismo só resistirá se conseguir atrair leitores. Os
leitores são a única garantia de independência de um projeto
jornalístico. São eles a força de quem escreve e investiga. Por
isso, torna-se essencial criar novos leitores. Em Portugal deveria
existir o que há noutros países, que financiam não os meios
diretamente mas o mercado de assinaturas em órgãos de comunicação
social. Em alguns países nórdicos, cada jovem que faz 18 anos tem
direito a escolher a assinatura da publicação que quiser e o Estado
paga. O próprio Estado deveria fazer assinaturas e não comprar
resumos de notícias, o chamado "clipping", que é uma atividade
parasitária do jornalismo. As escolas deveriam ter
assinaturas de revistas e jornais e ser um espaço de encontro entre
jornalistas e leitores. Depois, também seria essencial acabar com o
clima de verdadeira pirataria comercial criado pelos gigantes da
Internet, sobretudo Google e Facebook, que vivem da apropriação de
conteúdos alheios com lucros fabulosos e sem pagarem um tostão às
empresas e aos autores. Estas empresas levam o dinheiro da
publicidade e determinam, com os famosos algoritmos, que títulos
sobrevivem e que títulos morrem. Isto não é próprio de uma
sociedade que preze a democracia, o valor do trabalho e da
distribuição de rendimentos em função de critérios de igualdade,
proporcionalidade e adequação.
CARA DA
NOTÍCIA
Quase quatro décadas de
carreira
Eduardo Dâmaso nasceu em Odemira,
em 1962. Jornalista desde 1981, é diretor da revista "Sábado" desde
abril de 2017. É também diretor-adjunto da CMTV e passou pelos
diários mais importantes do país: exerceu cargos de direção no
"Correio da Manhã," "Diário de Notícias" e "Público". Trabalhou
ainda no "Expresso" e nas agências noticiosas Anop e Lusa. Começou
a carreira no jornal regional "O Setubalense", passou pela Rádio
Universidade de Coimbra e foi comentador de política na RTP. É
autor do livro de investigação jornalística "A Invasão Spinolista",
que foi distinguido em 1996 com o prémio de reportagem Ler/Círculo
de Leitores, bem como de "Portugal, que Futuro", com Henrique
Medina Carreira, em 2009. Uma das investigações jornalísticas que
fez deu origem a um célebre acórdão do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem - «Campos Dâmaso contra Portugal» - que fixou
jurisprudência em matéria de prevalência do interesse público sobre
o segredo de justiça e a reputação de terceiros. «Corrupção - Breve
história de um crime que nunca existiu» é o seu livro mais recente,
com a chancela da Objetiva.
Nuno Dias da Silva
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