Entrevista

Eduardo Dâmaso, jornalista
Corrupção, disse ele!

14154274.jpgÉ um dos mais reconhecidos jornalistas da sua geração, nomeadamente no domínio da Justiça. Eduardo Dâmaso expõe, de forma crua e exaustiva, as teias que são urdidas para a propagação da corrupção no país e apela a um «sobressalto cívico.»

Após 38 anos de profissão, considera que este seu livro - «Corrupção» - se trata mais de uma investigação/compilação jornalística ou é o seu contributo pessoal e cívico para um crime a que chama de «invisível» e «sem castigo»?
Este livro é um contributo pessoal e cívico para a discussão pública de um crime que provoca um grave dano na economia nacional e distorce princípios essenciais e consagrados na própria Constituição, como a igualdade entre portugueses perante a lei e o Estado ou a livre e sã concorrência entre empresas. Assenta numa lógica de investigação jornalística, na medida em que procura entender a realidade da corrupção de uma forma um pouco mais profunda do que aquela que ela assume, muitas vezes, na discussão política, e nesse sentido implica também uma interpretação sobre o significado das narrativas, dos processos judiciais, dos discursos políticos, das estatísticas e das leis sobre o tema.

A associação Transparência e Integridade tem em curso uma petição pública, lançada em setembro, pela adoção de uma estratégia nacional contra a corrupção que conta atualmente com cinco mil assinaturas. Seria necessário um sobressalto cívico para combater este flagelo que, na sua opinião, prejudica «10 milhões de vítimas»?
Penso que essa é a expressão exata: sobressalto cívico. Causar esse sobressalto cívico na sociedade portuguesa seria a melhor forma de combater a corrupção. Não tenho ilusões sobre os objetivos. Penso que é impossível aspirar a eliminar a corrupção. Ela tem raízes históricas, sociais e económicas muito profundas. Mas se chegássemos ao patamar de tornar consensual, de forma ativa e empenhada, a necessidade de combatê-la, já seria muito bom. É preciso acentuar a repressão judicial da corrupção para poder abrir caminhos mais fortes e mais intensos para a prevenção e educação da e sobre a corrupção.

Nuno Garoupa, ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, afirmou, em entrevista recente, que os «partidos políticos desistiram de combater a corrupção». Concorda?
Não sei se é definitivo, mas há muita verdade nessa afirmação. Os partidos que governaram Portugal nas últimas décadas desistiram de criar uma estratégia nacional, coerente e organizada contra a corrupção e tudo o que gira à volta dela, como os conflitos de interesses, o tráfico de influências, o abuso de poder, o peculato e outros crimes ou práticas que têm vindo a cavar um fosso enorme entre os partidos e os portugueses.

Há uma velha máxima que diz que «o importante não é ser ministro, é ter sido ministro». É isto que explica que as empresas contratem quase todos os ex-governantes para seus consultores ou administradores? O objetivo passa por lucrar através do tráfico de influências?
Sem dúvida! A passagem pelo governo transformou-se, para muitos, numa mera oportunidade de angariação dos contactos necessários para levar para a vida fora da política, nas empresas privadas, onde se especializam em abrir portas, facilitar contactos e negócios com o Estado. A vida pública está cheia de ex-ministros e secretários de Estado que enriqueceram em menos tempo do que um fósforo se apaga. Sem que seja visível a sua competência técnica, o seu currículo ou sequer a capacidade de fazer, resolver ou decidir em contextos de serviço ao País, criando riqueza e emprego.

É comum ouvir-se dizer que a "Operação Marquês" é o processo mais importante da democracia, por envolver o ex-primeiro-ministro, José Sócrates. Iniciado em 2013, cinco anos depois o processo ainda está na fase de instrução. Justiça que tarda é justiça que falha?
Justiça que não respeite um princípio de atualidade não é justiça. Os processos não podem eternizar-se na investigação nem na caminhada para julgamento. Muito menos na fase de confirmação irreversível de sentenças, condenatórias ou absolutórias, nos tribunais superiores. A causa da morosidade, no entanto, habitualmente assacada ao poder judicial, tem origens complexas. Ela radica também - e sobretudo - na forma como o poder legislativo produz certo tipo de leis, como cria tipos criminais de aplicação impossível, como é o caso dos crimes de tráfico de influências e corrupção, ou como desenhou uma teia labiríntica de garantias processuais que destrói o próprio valor da administração de uma justiça justa. As garantias processuais são uma das provas de algodão da natureza democrática de um regime, mas não podem ser transformadas em instrumentos da impunidade absoluta. No caso do processo Marquês, há que sublinhar, como em muitos outros, a instrução é requerida pelas defesas e não pelo Ministério Público. Ou seja, são os arguidos e não o Estado que aposta numa lógica dilatória.

Governo, banca e grandes empresas construíram teias que estão bem presentes nos emblemáticos casos BES, BPN, Banif, Freeport, Operação Furacão, Face Oculta, Portucale e outros. A impunidade dos crimes de colarinho branco é o calcanhar de Aquiles da justiça portuguesa?
Penso que essa é uma realidade que entra pelos olhos. Eles são o calcanhar de Aquiles da justiça mas, essencialmente, do próprio País, da sua economia e organização social e política. O naufrágio da banca e de grandes empresas como a PT ou a Cimpor só é atribuível a causas de natureza político e financeira, que criaram um sistema de promiscuidade entre poderes e um verdadeiro pântano político-social. Foi uma tragédia, de que, em grande medida, a sociedade portuguesa se alheou, e que se espera agora que a justiça resolva. São expetativas demasiado grandes para um sistema judicial que tem uma Polícia Judiciária onde o poder político esteve anos a fio sem investir, no que respeita ao crime económico. Que tem um Ministério Público também sem meios e pressionado por estratégias de controlo político a partir das cúpulas, nomeadamente acentuado o controlo dos partidos no Conselho Superior de Magistratura. Que tem, em algumas áreas, uma cultura de respeitinho pela chamada "dignidade dos cargos", inspirada em modelos dos anos 30 do século XX, como se viu no caso de Tancos, onde a argumentação para não ouvir o Presidente da República e o primeiro-ministro recuou às ideias de Alberto dos Reis, um grande jurista na área do processo civil mas um homem do regime, professor e amigo íntimo de Salazar, presidente da Assembleia Nacional durante três mandatos, membro vitalício do Conselho de Estado, etc. Verdadeiramente espantoso, para não dizer outra coisa…

14154261.jpgCritica o Código Penal e a legislação penal avulsa por estarem «cheios de crimes inaplicáveis». A raiz do mal está no legislador ou no «velho Bloco Central dos interesses», como lhe chamou em editorial recente na "Sábado"?
Essa é, digamos assim, uma das principais teses do meu livro. A ideia de que o poder legislativo, materializado nas sucessivas maiorias parlamentares de partido único ou em coligação, foi instrumentalizado demasiadas vezes por poderosíssimos grupos de interesses ao longo dos últimos trinta anos, grosso modo dos governos da AD, no início dos anos 80, para cá. Por isso, tivemos processos judiciais muito importantes que nunca chegaram a lado nenhum e que refletiam ataques brutais ao erário público. Foi assim com o Fundo Social Europeu, entre 1986 e 1988, logo no início da adesão à Comunidade Económica Europeia, em que mais de 200 milhões de contos, na moeda da época, desapareceram pura e simplesmente sem qualquer espécie de consequências. Já viu quantos mil milhões de euros é que isso daria se fizéssemos uma conversão não apenas literal, mas tendo em conta outros elementos de valorização da moeda!? Foi assim que passámos, na mesma altura, do velho regime fiscal para o novo, que trouxe o IVA, IRS e IRC, numa transição assente numa lógica de perdões fiscais e de puro favorecimento de quem já tinha muito dinheiro. Foi assim que uma verdadeira indústria de obras públicas assente numa estrutura de "sacos azuis" para pagar subornos atravessou todo o cavaquismo e, depois, os governos seguintes. Enfim, os exemplos são demasiados. Ao mesmo tempo, os nossos códigos penal e processual penal exibiam uma fulgurante eficácia na repressão de crimes de sangue, incluindo o terrorismo, mas claudicaram por completo nos crimes económicos. Para quem acredita em coincidências, está bem. Para mim, não…

Em Portugal a produção legislativa é abundante, mas a sua aplicação prática muito escassa. Causa-lhe estranheza que a maior parte dos deputados eleitos tenha formação em Direito ou exerça atividade em grandes escritórios de advogadas ou estamos perante uma mera coincidência?
A produção de "coincidências" é um método eficaz para bloquear a discussão pública de assuntos sérios, como este. Transformou-se numa espécie de adesivo para ir tapando ou inibindo muitas bocas. Não é segredo nenhum que os grandes escritórios não só dominam hoje a produção legislativa, que é cozinhada pelos seus advogados por encomenda de governos, autarquias, instituições e empresas públicas muito diversificadas, como, depois, vão dominar a interpretação das leis. É o chamado "win win", se me é permitido o inglesismo.

Os especialistas, nomeadamente a procuradora geral adjunta, Maria José Morgado, sustentam que os crimes de corrupção são extremamente difíceis de investigar e também de provar. Que estratégias e malabarismos os tornam tão difíceis de intercetar?
Desde logo, a sua deteção. Se não existirem denúncias ou mecanismos de fiscalização eficazes em áreas essenciais do Estado, como a contratação pública, dificilmente se poderão investigar os crimes praticados. Aqui, o essencial é, cada vez mais, investigar com atualidade, quase em tempo real, para que a recolha de prova seja eficaz. Se isso não acontecer, a PJ e o MP são empurrados para um cenário de autópsia ou de pura arqueologia, assente na recolha de toneladas de documentação e testemunhos sem grande fiabilidade, correndo contra o tempo para evitar prescrições.

O país precisava, à semelhança do que aconteceu em Itália, na década 90, de uma operação "mãos limpas" ou pensar nessa possibilidade é uma utopia?
A circunstância histórica de Portugal é muito diferente dessa Itália dos anos 90. A Itália desse tempo estava confrontada com a guerra aberta da Mafia contra o Estado, sobretudo contra os juízes, por causa do maxiprocesso de Palermo que condenou a penas de prisão efetiva mais de 300 líderes mafiosos sicilianos e calabreses. Estava confrontada com um sistema político em decadência absoluta, mergulhado na corrupção e que evidenciava sinais cada vez mais fortes e flagrantes de conivência com a Mafia. Tinha o terrorismo das Brigadas Vermelhas. O Estado quase abandonou o poder judicial nessa luta terrível contra poderes que poderiam ter destruído o País. Passaram trinta anos e, ainda hoje, há questões essenciais por resolver, como a de saber se existiu uma negociação do Estado, através do poder sinistro dos serviços secretos da época, com a Mafia. Enfim, acho que a operação "Mãos Limpas" foi um passo muito importante, deixou um legado essencial na luta por uma sociedade mais limpa e íntegra, mas não é um modelo automaticamente reproduzível em qualquer outro país. Por cá, já seria bom se conseguíssemos ser eficazes na criação da vontade política necessária para construir uma estratégia nacional contra a corrupção. E de, com isso, assegurar uma dupla caminhada de investigação e repressão dos casos mais graves, ao mesmo tempo que se aposta na sensibilização e educação da sociedade para combater um flagelo que empobrece os portugueses com menos recursos - que é a esmagadora maioria - e lhes retira ou diminui direitos como a saúde, a educação, serviços públicos eficazes, entre muitos outros.

Refere que a comunicação social tem sido conivente com o fenómeno da corrupção. De que modo?
Essa é uma realidade mostrada por alguns dos processos mais recentes. Vimos no caso Face Oculta, em que Armando Vara foi condenado a cinco anos de prisão efetiva, sobretudo na vertente do chamado "negócio PT/TVI", como alguns jornalistas, colocados em direções de órgãos de comunicação social, diabolizaram os investigadores e outros colegas. Vimos como os investigadores da operação "Marquês" foram diabolizados em alguns meios. Uma coisa é termos a nossa opinião e pensarmos de forma crítica sobre a ação da justiça e dos media. Outra coisa bem diferente é criar barreiras de fogo contra quem investiga e publica. Isso aconteceu diariamente em alguns jornais e televisões que não só silenciaram os casos como atacaram quem os noticiou. Foram os cães de guarda, não da comunidade mas de interesses particulares.

É dos jornalistas que melhor conhece o sistema judicial português e diz que este é eficaz e forte nos crimes de sangue e fraco e moroso nos crimes económicos. Na sua opinião, o principal problema são as interferências e pressões políticas ou a eterna falta de meios?
A falta de meios é endémica e uma forma de pressão política. Tudo o que a PJ e o MP obtiveram na área do combate ao crime económico, em termos históricos, foi sempre contra a vontade do poder político. Foi por pressão externa da União Europeia e de organizações como o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), órgão do Conselho da Europa, bem como de outras organizações internacionais. Ou então, por força da exploração das contradições de alguns governos, que prometiam combater a corrupção mas nada faziam, e que em ciclos políticos mais difíceis se viram obrigados a ter de investir alguma coisa em meios técnicos e humanos. Um dos principais obreiros nessa luta pela conquista de meios para a investigação criminal foi o antigo procurador-geral da República, Cunha Rodrigues.

Que papel pode ter a escola, em sentido amplo, ou seja, os estudantes, os professores, os encarregados de educação e até a tutela, para combater, no médio/longo prazo este fenómeno?
O papel das escolas é essencial. Elas deveriam ser apoiadas na criação de estruturas programáticas e curriculares sobre os mecanismos da corrupção, na aproximação e conhecimento das instituições responsáveis pelo seu combate. Deveriam ser o palco ideal para levar e dar a conhecer os bons exemplos de homens e mulheres, verdadeiros heróis anónimos na sua maioria, que passaram a vida a travar esta luta. Só existirá uma verdadeira prevenção da corrupção se a educação contra a corrupção for assumida nas escolas. Sem isso, andaremos sempre dentro de um velho labirinto e sem grandes hipóteses de encontrar um caminho de saída.

«O jornalismo de investigação é mais perigoso para o poder do que a oposição», escrevia há dias no "Correio da Manhã", Eduardo Cintra Torres. É por isso que todos os governos têm a tentação de domesticar os órgãos de comunicação social?
O jornalismo de investigação pode ser terrivelmente eficaz. Num primeiro momento, é ele que assegura o escrutínio aos diversos poderes. É ele que levanta uma ponta aqui e ali e que permite ir mostrando a complexidade de algumas realidades e a intervenção pública sobre elas. Veja-se o que está a passar-se com as minas de lítio. Tem sido a comunicação social, muito em particular o programa "Sexta às Nove", da RTP, o que deveria ser um orgulho para a televisão pública, a mostrar as contradições profundas da atuação do governo num tema de elevado impacto ambiental numa das jóias naturais de Portugal, em Trás-os-Montes. Pela natureza indomável que tem, o jornalismo de investigação é quase sempre o alvo prioritário dos governos, em particular das maiorias absolutas.

O jornalismo vive uma crise sem precedentes, com poucos meios financeiros e com a concorrência feroz das redes sociais e até das "fake news". Como sobreviver num contexto de tamanha adversidade?
O jornalismo só resistirá se conseguir atrair leitores. Os leitores são a única garantia de independência de um projeto jornalístico. São eles a força de quem escreve e investiga. Por isso, torna-se essencial criar novos leitores. Em Portugal deveria existir o que há noutros países, que financiam não os meios diretamente mas o mercado de assinaturas em órgãos de comunicação social. Em alguns países nórdicos, cada jovem que faz 18 anos tem direito a escolher a assinatura da publicação que quiser e o Estado paga. O próprio Estado deveria fazer assinaturas e não comprar resumos de notícias, o chamado "clipping", que é uma atividade parasitária do jornalismo.  As escolas deveriam ter assinaturas de revistas e jornais e ser um espaço de encontro entre jornalistas e leitores. Depois, também seria essencial acabar com o clima de verdadeira pirataria comercial criado pelos gigantes da Internet, sobretudo Google e Facebook, que vivem da apropriação de conteúdos alheios com lucros fabulosos e sem pagarem um tostão às empresas e aos autores. Estas empresas levam o dinheiro da publicidade e determinam, com os famosos algoritmos, que títulos sobrevivem e que títulos morrem. Isto não é próprio de uma sociedade que preze a democracia, o valor do trabalho e da distribuição de rendimentos em função de critérios de igualdade, proporcionalidade e adequação.

 

CARA DA NOTÍCIA

Quase quatro décadas de carreira

Eduardo Dâmaso nasceu em Odemira, em 1962. Jornalista desde 1981, é diretor da revista "Sábado" desde abril de 2017. É também diretor-adjunto da CMTV e passou pelos diários mais importantes do país: exerceu cargos de direção no "Correio da Manhã," "Diário de Notícias" e "Público". Trabalhou ainda no "Expresso" e nas agências noticiosas Anop e Lusa. Começou a carreira no jornal regional "O Setubalense", passou pela Rádio Universidade de Coimbra e foi comentador de política na RTP. É autor do livro de investigação jornalística "A Invasão Spinolista", que foi distinguido em 1996 com o prémio de reportagem Ler/Círculo de Leitores, bem como de "Portugal, que Futuro", com Henrique Medina Carreira, em 2009. Uma das investigações jornalísticas que fez deu origem a um célebre acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - «Campos Dâmaso contra Portugal» - que fixou jurisprudência em matéria de prevalência do interesse público sobre o segredo de justiça e a reputação de terceiros. «Corrupção - Breve história de um crime que nunca existiu» é o seu livro mais recente, com a chancela da Objetiva.

Nuno Dias da Silva
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