Entrevista

Maria de Belém Roseira, deputada e ex-ministra
«Sociedades menos instruídas têm cidadãos menos críticos»

Maria de Belem Roseira - FOTO de António Cotrim Lusa - 04-04-2012.jpgA sua carreira pública é um exemplo de sucesso em diversos quadrantes. Maria de Belém Roseira, que agora se lança na primeira aventura literária em solitário, elogia o talento e a inteligência do género feminino, mas defende que a sua participação, nomeadamente na esfera empresarial, é ainda muito reduzida. A ex-ministra debruça-se também sobre esse «problema estrutural gravíssimo» chamado qualificação e crítica a falta de estabilidade nas políticas de ensino e saúde.

Muitos se interrogam sobre o motivo pelo qual só agora lança o seu primeiro livro. Quer explicar-nos a razão do timing?

Este livro resulta de um convite da editora Esfera dos Livros e a explicação para escrever este livro tão tarde deve-se ao facto de não ser esta a minha actividade principal. Os cargos políticos que ocupei e ocupo e as múltiplas actividades em que estou envolvida, tiram-me espaço para concretizar um trabalho que carece de reflexão, tempo e maturação. Eu tenho colaborado imenso em alguns livros, prefaciado outros, escrevo artigos e contributos sobre temas mais diversos. Neste caso concreto, é meu, integralmente.

Em «Mulheres Livres» escolheu 12 senhoras excelentíssimas, sendo duas delas portuguesas. Que critérios presidiram à formação desta espécie de "equipa de sonho"?

Foram vários. Para começar, mulheres que se tivessem destacado em diferentes ramos de actividade pública, em particular no século XX. Da ciência, à política, passando pela literatura, a pintura, a filosofia, a dança, etc. Nós sabemos que temos muitas heroínas que vão permanecer anónimas, mas outras há que, pelo contexto e pela publicitação da sua actividade, acabaram por se tornar conhecidas um pouco por todo o mundo.

A questão da nacionalidade foi tida em conta?

Sem dúvida, a vivência em diferentes espaços geográficos foi outro dos critérios envolvido. Da Europa, América do Norte e do Sul, sem esquecer o Oriente. No último caso, foi incluída Benazir Bhutto, a antiga primeira-ministra do Paquistão. Não foi esquecido o factor cultural e religioso e, para além disso, não menos importante, decidi escolher personalidades que já tivessem falecido. A única excepção é a Simone Veil, porque foi muito marcante em França na questão dos direitos das mulheres. Seria um desperdício não evocá-la.

Júlio Machado Vaz, o conhecido sexólogo, disse na apresentação oficial deste seu trabalho que estamos perante um «livro de combate». Revê-se nesta análise?

M BelemRoseira cópia.jpgÉ de combate porque o exemplo que estas mulheres constituem habilita muito as outras a serem mais corajosamente assumidas, porque nem sempre as mulheres o são. Elas são educadas para se esconder, para se diminuir e para não aparecer, e creio que este livro pode servir para inspirar muitas pessoas a avançarem com o seu projecto de vida, independentemente dos constrangimentos que a sociedade, a família ou o meio em que vivem lhes possam levantar.

As mulheres portugueses representadas no seu livro são Beatriz Ângelo, a primeira mulher a ter direito de voto e que recentemente viu o seu nome baptizar o novo Hospital de Loures, e Maria de Lourdes Pintassilgo, a primeira mulher a desempenhar o cargo de chefe de governo e que também foi candidata à Presidência da República. Pensa que os portugueses desconhecem as suas heroínas?

Os portugueses desconhecem muitas das suas heroínas e também muitos dos seus heróis. No caso do meu livro eu decidi abordar as histórias particulares das nossas heroínas, até pelo carácter tão particular de em ambas as situações o meio em que nasceram ter condicionado decisivamente os seus comportamentos futuros.

Ambas têm um enquadramento político muito forte. Foi essa circunstância que moldou as suas personalidades de lutadoras?

Creio que sim. Beatriz Ângelo nasce num meio de grande consciência política o que acaba por potenciar o seu alcance em termos de intervenção pública. É uma mulher republicana que encontra no seu marido um apoio e um companheiro de lutas. É com o desaparecimento do seu marido, muito precoce, que ela fica como chefe de família, algo verdadeiramente inédito. A legislação em vigor não distinguia se o chefe de família era homem ou mulher. Por defeito era sempre o homem, até porque, no início do século XX, as mulheres não eram autónomas do ponto de vista financeiro.

O que é que faz de Beatriz Ângelo uma portuguesa de excepção?

Ela foi pioneira em quase tudo. Foi também a primeira médica-cirurgiã no nosso país. No que diz respeito aos direitos da mulher ela invoca a lei para se inscrever nos cadernos eleitorais. Esta pretensão foi recusada. De imediato, recorre da decisão e, curiosamente, o juiz a quem foi distribuído o processo era pai de Ana Castro Osório, outra combatente pelos direitos das mulheres. O recurso foi deferido pelo magistrado e Beatriz Ângelo acaba por conseguir votar. Tratou-se de um marco com grandes repercussões na Europa, tendo recebido felicitações de outras mulheres que procuravam seguir o seu exemplo. A lei é mudada em Portugal, passando a permitir que as pessoas do sexo feminino participem no sufrágio.

Este caso concreto passa a mensagem que vale a pena lutar pelos nossos direitos?

Essa é uma mensagem, mas há outro ponto que eu gostaria de destacar: quando menos se espera, verificam-se retrocessos civilizacionais, não há nada garantido. Por isso é indispensável que não nos conformemos com aquilo que foram as conquistas conseguidas à conta de muito desconforto, incompreensão e coragem. Os direitos nunca estão definitivamente consolidados, como tal, creio que devemos estar permanentemente vigilantes, aprofundá-los e estimular uma consciência social para evitar que se ceda à tentação de retirar um direito que parece ser básico e inalienável.

O que está a referir é que a sociedade resiste à mudança por entender estes combatentes pelos direitos civis como ameaças?

Há sempre uma resistência relativamente a este movimento de progressão de aceitar os argumentos e as pretensões de pessoas mais estruturadas, mais capazes, mais autónomas e mais livres. Porque muitas vezes a liberdade dos outros põe em causa aquilo que é muito mais confortável que é dar ordens sem contestação.

Na véspera desta nossa conversa, fez-se história e atingiu-se mais um marco para as mulheres. Foi nomeada a primeira Procuradora-Geral da República mulher, Joana Marques Vidal, um ano depois de Assunção Esteves ter chegado ao lugar de Presidente da Assembleia da República. São sinais inequívocos de que as mulheres estão a impor-se pelos seus méritos?

O problema do défice de presença das mulheres em cargos de relevo ainda não está ultrapassado. Simplesmente por se enfatizar que a nova PGR é mulher é sintoma de que o problema ainda se mantém. Mas constato que os avanços mais recentes são muito positivos. O caso da nomeação da nova Procuradora-Geral da República é duplamente especial para mim porque tirei o curso de Direito em 1972, época em que não podia haver mulheres na magistratura, nem na carreira diplomática. 40 anos depois o cenário é completamente diferente.

Já não é possível esconder que a inteligência, a cultura e as capacidades de uma mulher têm que ser postas ao serviço do bem comum. Dantes reservava-se as competências da mulher para o espaço privado. Elas estavam fechadas. Hoje a sociedade pode beneficiar dos seus talentos.

Admite que num futuro não muito distante possamos ter um chefe de Estado mulher?

É sempre possível. A democracia abriu-nos essa porta e proporciona espaços de afirmação das liberdades e dos direitos fundamentais. Para alem disso, como a questão da desigualdade de direitos em relação às mulheres prende-se com os direitos humanos e só as democracias permitem o seu aprofundamento, significa que temos o ambiente adequado para isso.

Por falar em candidatas a Belém, Leonor Beleza, que também apresentou o seu livro, disse que a participação política e empresarial das mulheres é ainda «miserável». Subscreve?

É baixíssima, sobretudo no meio empresarial. No panorama político a situação é diferente porque há uma obrigatoriedade das listas terem uma composição mais equilibrada. Sem essa regra estou em crer que o panorama seria desequilibrado. Nas empresas isso não existe. Nas empresas portuguesas, bem como noutros países da Europa, existe um número muito reduzido de mulheres ao nível dos mais altos cargos. A própria China tem uma média superior de participação de mulheres nos órgãos directivos de empresas, em comparação com Portugal, França ou a Inglaterra. A excepção reside nos países nórdicos, que começaram muito mais cedo esta batalha e impuseram regras de participação mais equilibradas.

Tem havido progressos ao nível da igualdade de género, mas em oposição, a desigualdade económica e social acentua-se a níveis preocupantes, podemos mesmo dizer insustentáveis. Como pessoa intimamente ligada aos assuntos sociais teme que a busca do equilíbrio financeiro a todo o custo leve a um deslaçamento social?

Esse é um dos maiores riscos. O desemprego é o mais preocupante, registando um ritmo de crescimento galopante. E tem um efeito desestruturador, a nível individual, familiar e socialmente, sem esquecer a parte económica, na medida em que o desempregado vai buscar à riqueza nacional uma parte para a qual, infelizmente, não contribuiu. Trata-se, pois, de uma tragédia sob todos os pontos de vista. Tem um problema acrescido que é o de agravar os problemas de saúde das pessoas. Sempre fomos dos países mais desiguais no seio da União Europeia, só que agora colocados perante programas muito centrados em objectivos globais, independentemente do seu impacto nas pessoas, - entendido como um dano colateral - provoca um agravamento do fosso das desigualdades.

Onde fica a sensibilidade social da política e dos políticos?

A política existe para a construção do bem comum, não existe para o poder ser exercido pelo poder. O poder é conferido para minorar as dificuldades das condições de vida das pessoas e proporcionar o seu desenvolvimento. Daí que eu preconize que num mundo interrelacionado e globalizado o espaço europeu é fundamental que tenhamos com ele um diálogo político no sentido de adequar os programas de austeridade às condições especificas dos países.

Os programas formatados da troika não ajudam…

É evidente que programas idênticos para países com situações sociais muito distintas não podem dar os mesmos resultados. É essa formatação excessiva dos programas da troika, independentemente do tecido social aos quais se aplicam, que está a ser causadora de um ambiente terrível e com convulsões sociais que estão à vista.

A insistência no mesmo tipo de receita pode acentuar o plano inclinado em que estamos?

O sucesso destes programas mede-se pelos seus resultados. Se os resultados são maus porque não reequacionar o programa? Seria uma atitude inteligente.

Mitigar a austeridade seria um mal menor?

Eu não gosto do termo austeridade, prefiro o termo equilíbrio orçamental. Porque austeridade, em meu entender, tem um juízo moral e creio que não devemos fazer juízos morais sobre os outros porque desconhecemos as suas circunstâncias. Já o dizia o Confúcio que «não julga uns nem outros, a única coisa que faz é avaliar as circunstâncias».

E quais são as nossas circunstâncias concretas?

As circunstâncias de cada povo determinam a situação em que ele se encontra. Portugal tem problemas estruturais gravíssimos, designadamente ao nível da qualificação das pessoas, que não é culpa desta geração, é porventura responsabilidade de toda a nossa história centenária. Tirando o enorme esforço feito na I Republica, e que erigiu as duas universidades de Lisboa e Porto, os dirigentes não têm valorizado que é essencial investir na formação das pessoas.

Esse é um problema só português?

A Alemanha e a Inglaterra começaram esse esforço muito mais cedo, mas tiveram quem os liderasse de outra maneira, com outra visão estratégica e de longo prazo. Nós tivemos avanços e recuos, suportámos 48 anos de uma ditadura que considerava que pessoas instruídas eram um problema político. Isto para dizer que não podemos ser julgados por dramas estruturais que têm a sua origem num passado muito distante.

Lamentavelmente ainda existem pais que não estão conscientes da importância do investimento na formação dos seus filhos. Há famílias com níveis de literacia muito baixos, reduzidas expectativas e diminuto grau de exigência relativamente aquilo que é o investimento e promoção da nossa capacitação. Sociedades menos instruídas têm cidadãos com menos capacidade crítica. O grande drama é esse, na medida em que afecta tudo o resto.

De que modo condiciona o modo como nos comportamos e as rotinas do dia a dia?

Condiciona a forma como nos relacionamos uns com os outros e a forma de estar no trabalho. O défice de instrução tem consequências na capacidade de organização, na produtividade, no gosto pelo cumprimento de regras, na pontualidade, no cumprimento de prazos, etc.

A educação e a justiça são as maiores pechas do sistema democrático?

Creio que a educação está a fazer o seu caminho. Hoje temos muito mais gente no ensino, especialmente nas universidades, do que alguma vez tivemos. Temos as gerações mais jovens e mais capacitadas de sempre. O pior é que num cenário de crise não possuímos um tecido económico capaz de absorver quem sai das universidades. Quanto à justiça, devo dizer que é aquilo que faz com que um povo esteja de bem com ele próprio. E nós, nesse domínio, temos demasiadas angústias. Ambos os sectores têm problemas que levam muitos anos a resolver. É fácil destruir, mas construir é muito difícil.

A sucessão vertiginosa de governos e titulares de pastas dificulta a adoção de políticas coerentes?

A educação e a saúde são áreas cruciais onde é fundamental existir estabilidade política. E porquê? Porque os resultados medem-se a longo prazo e não de ano a ano. Portanto, se estamos sempre a mudar não é possível beber da avaliação dos resultados. Desde o 25 de Abril, quem entra num governo quer sempre desfazer o que construiu o seu antecessor, quando o que se deve fazer é ter a preocupação de manter as linhas essenciais para não haver convulsões que são desestabilizadoras. Isso reflecte-se, especialmente, nos sistemas de maiores dimensões, com reflexos sobre quem neles trabalha e sobre os seus destinatários. É preciso ter a consciência que quem desfaz o que estava feito, recomeça sempre um passo atrás do que o anterior deixou.

Educar para a saúde é um ponto preponderante no mundo moderno. Será possível concretizar este objectivo quando as pessoas se confrontam com dificuldades no acesso à saúde por falta de dinheiro? Como se gere de forma racional um sistema que lida com emoções?

O sistema de saúde tem que ser gerido com inteligência e sensibilidade. Assegurando que a pressão não rompa equilíbrios estabelecidos, não subverta a ordem das prioridades e que ganhe as pessoas para a justiça das medidas. Este é um sector em que é necessária uma grande concertação social, em especial junto dos utentes e dos profissionais de saúde. Importa não esquecer que a saúde depende muito da educação e das condições sociais, do comportamento das famílias, do ensino que a escola nos transmite, etc. O artigo 64.º da Constituição no n.º1 diz: «Todos têm direito à protecção na saúde e o dever de a defender e promover». E ensina-nos a experiência que defender e promover a saúde é mais fácil para as pessoas bem qualificadas do que para as pessoas pouco qualificadas, bem como é mais fácil para as pessoas com bons rendimentos do que para as pessoas com parcos rendimentos. Por isso, defendo que as políticas têm que ir ao encontro da protecção e sensibilização dos grupos mais vulneráveis. Infelizmente, vejo muito pouco esta preocupação.

Ainda teme que estejamos no caminho do desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

O ministro da Saúde garante-me que está muito preocupado com a manutenção e desenvolvimento do SNS. Confio nos seus propósitos e tenho todo o gosto em contribuir, sempre que sou solicitada, nesta época em que a pressão para cortes é tão grande, que esses cortes sejam introduzidos de forma inteligente, racional, sensível e, sobretudo, num ambiente de grande diálogo. Até porque importa não descurar que a saúde é um instrumento estratégico para dinamizar a economia, na medida em que incorpora investigação, o mais alto valor acrescentado, etc. Nós podemos vender serviços de saúde em algumas áreas onde temos a excelência demonstrada. Temos, pelo menos, condições para isso.

Foi presidente da primeira comissão de inquérito ao BPN, um dos processos mais gravosos para o erário público. É por escândalos destes que a opinião pública demonstra maior relutância em aceitar os sacrifícios?

As pessoas sentem revolta e desmotivação porque vêem que estão a pagar à custa do seu esforço os erros de outros, muitos vezes os crimes de outros, que acabam por não ter o ressarcimento social devido. O caso do BPN perturba e incomoda muito as pessoas. Noutros países temos visto que indivíduos que cometeram crimes e usaram indevidamente o sistema financeiro foram julgados e condenados, enquanto por cá não aconteceu ainda nada. É isto que tem que mudar.

Nuno Dias da Silva
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
António Cotrim/Lusa
 
 
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