Motor

Quatro Rodas
Fahrenheit 2000

Paulo AlmeidaRay Bradbury (1920-2012) escreveu em 1947 o livro que serviu de argumento ao filme Fahrenheit 451. Realizado em 1966 por François Truffaut, vi este filme (pela primeira vez) nos anos setenta e fiquei de tal modo arrebatado que passou a ser a minha película favorita juntamente com Blade Runner.

Como singela homenagem a este escritor falecido há poucos dias, decidi começar a crónica invocando esta sua obra, que servirá de mote para lançar o tema de hoje, como habitualmente, ligado ao mundo do motor.

Sendo um romance de ficção científica, a obra apresenta uma sociedade do futuro, onde todos os livros são proibidos. A personagem principal é um bombeiro cuja função não é apagar fogos, mas sim queimar livros para os erradicar da sociedade.

Sem me deter em mais pormenores da magnífica história, tenho que explicar que o título do filme traduz a temperatura a que arde o papel dos livros, 451 graus na escala Fahrenheit que equivale a 233 graus centígrados.

Gostaria muito de continuar a falar do Fahrenheit 451, mas não sou o crítico de cinema do Ensino Magazine e mesmo que o fosse, não conseguiria ser isento na análise desta obra.

Vamos então tentar encontrar algo em comum entre o Fahrenheit 451 e a crónica de hoje.

Eram 15h30m do dia 19 de Julho, circulava eu calmamente pela A25 no sentido Oeste/Este, quando comecei a vislumbrar uma intensa fumarada. Passei pelas várias saídas de Viseu e como não encontrei qualquer sinalização nem autoridades, deduzi que o que via seria um incêndio ainda longe do meu percurso.

Depois da saída de Viseu Este, a estrada apresenta uma acentuada descida, verifiquei então que o fumo se intensificara, mas tudo continuava tranquilo com o trânsito a fluir normalmente. No final da descida, existe uma ponte, depois da qual há uma curva cega à direita, pelo que não se vê todo o seu traçado.

Entrei então nessa curva à direita e deparei-me com uma barreira de fumo que me impedia de ter visibilidade a mais de 20 metros… que fazer nesta situação?

Pensei durante uns segundos e coloquei a hipótese de voltar para trás. Andar para trás implicaria, no entanto, circular em sentido inverso numa autoestrada, com alta probabilidade de acidente grave e culpa para quem circula em sentido contrário.

Entretanto, ficar parado deixou de ser opção, passados segundos, fiquei rodeado de fumo e chamas, quer à frente quer atrás do carro. Decidi-me então pela opção de seguir em frente, na esperança de rapidamente sair daquele inferno.

À velocidade que a visibilidade me permitia, fui avançando até que encontrei a estrada bloqueada por um outro condutor, que se encontrava parado, assustado com as chamas.

Naquele momento, o panorama era aterrador, chamas com mais de dez metros, que lambiam os carros num vai e vem como se de ondas do mar se tratasse, visibilidade de menos de dez metros, sem opção de voltar para trás e um veículo a bloquear a saída para a frente. Começava também a ouvir, o ensurdecedor ruído das chamas, que consumiam ferozmente a vegetação e cujos destroços inundavam o nosso caminho.

Recordo-me de ter pensado, numa altura em que o calor começava a atingir valores insustentáveis, como vamos sair daqui? Uns segundos mais de reflexão e decidi começar a buzinar e a gesticular veementemente ao veículo da frente para o forçar a avançar. O outro condutor lá se decidiu e entre o vai e vem das labaredas fomos conquistando cada metro do nosso caminho rumo à libertação.

Foi tudo demasiado rápido, instintivo e acabou por correr bem para nós. Segundos depois, liguei para o 112 a pedir que fechassem a A25, passaram-me à GNR que ficou surpreendida com o meu aviso.

Para não atrapalhar segui o meu caminho e mais à frente passei pelo nó de Mangualde verificando que o trânsito, no sentido contrário, já estava a ser retido, mas pelo que vi eram populares a tratar do assunto. Decidi não parar e continuar a viagem descomprimindo daquele momento de elevado stress.

Sei que os incêndios de verão são muito difíceis de extinguir, sei que os bombeiros não podem estar em todo o lado e que em primeiro lugar estão as populações, mas também sei que as concessionárias, a quem enchemos os bolsos, devem ter um sistema de monitorização, que lhes permita dar-se conta destas e outras situações, e um plano de contingência que deve ser acionado para proteger a vida dos seus clientes.

Tentei reclamar para o número de apoio ao cliente, mas a operadora disse-me que não recebia reclamações, fui então ao site da concessionária e não havendo qualquer endereço eletrónico, vi-me obrigado a preencher um formulário online.

Vou poupar-vos à fastidiosa e normativa resposta que recebi, deixando-vos apenas a última frase da mesma e a indicação de que nem sequer me perguntaram se sofrera prejuízos.

Aqui está:

"…certa (a concessionária) de ter procedido com toda a diligência que lhe poderia ser exigível…"

Ora, estes senhores têm a lata de me dizer que procederam com toda a diligência exigível! Sabendo há horas que o incêndio deflagrava, não tiveram tempo de preparar uma intervenção que poupasse esta afronta aos condutores? Mas que grau de exigência é este? Fechar a estrada é assim tão difícil? Alguém fiscaliza estas incompetências?

Tal como Fahrenheit 451, também esta situação foi um verdadeiro filme que poderia chamar-se Fahrenheit 2000, refletindo a temperatura a que arderia um veículo, e ao contrário do primeiro filme, que tem um final feliz, este último poderia ter um triste final.

Paulo Almeida
 
 
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