Viriato Soromenho-Marques, filósofo
«Danos causados à investigação científica em Portugal são incalculáveis»
Está na
linha da frente dos pensadores mais respeitados da atualidade. Em
entrevista ao «Ensino Magazine», Viriato Soromenho-Marques fala do
país, da Europa, do setor educativo e até da ameaça do Estado
Islâmico.
Foi o
comissário da conferência «Afirmar o Futuro - Políticas Públicas
para Portugal», realizada em outubro, na Gulbenkian. Os pilares das
intervenções foram a reforma do Estado, a economia, políticas
sociais, território, ordenamento e ambiente. A escolha destas áreas
temáticas coincidiu com as maiores lacunas de Portugal enquanto
país?
São áreas de política pública que
estão a ser seriamente afetadas pela crise económica, e, mais
ainda, pela errada política de austeridade que tem sido imposta ao
país pelos credores, e aceite sem protesto visível ou significativo
pelo governo. Há muitas áreas de política que não foram abordadas
na conferência, que pretendeu abordar tópicos essenciais, mas sem
querer ou poder ser exaustivo. A defesa, a cooperação, uma parte da
política de ambiente, por exemplo, ficaram num mero segundo
plano.
Fala que a
«maldição» que assola as políticas públicas reside na falta de
consenso, compromissos e prolongamento no tempo. Qual a quota parte
de responsabilidades de políticos e sociedade civil para este
estado de coisas?
A "maldição" de que falei reside na
tendência para substituir o estudo e o rigor que devem acompanhar a
preparação de qualquer política pública, pela tendência para o
improviso e o voluntarismo. A rotação de "políticas" de governo
para governo, e às vezes até dentro de cada governo, dependendo da
vontade pessoal de algum ministro querer deixar o seu nome ligado a
uma "reforma", é proporcional à ligeireza dos métodos de trabalho.
As políticas são lançadas sem fundamento suficiente e abandonadas
sem avaliação crítica. Os governantes e a sociedade civil partilham
uma mesma cultura política que consente este estado de coisas. O
círculo vicioso só poderá ser rompido com mais exigência por parte
dos cidadãos.
O período
de ajustamento desvitalizou as políticas públicas nacionais em
setores tão diversos como a saúde, economia e justiça, só para
citar alguns exemplos. Que principais marcas deixou nas políticas
públicas a receita da troika em Portugal? Quando nos conseguiremos
libertar desta espécie de cultura da crise?
O drama da austeridade que nos foi
imposta reside no facto de que ela se destinou a tratar um sintoma
e não a raiz da doença. A austeridade faria sentido se o
"despesismo do Estado" fosse a causa da crise. Ora, o aumento da
despesa pública ocorreu a partir de 2008, justamente para acudir
aos bancos que estavam à beira da falência, em toda a Europa, sendo
a Irlanda o caso mais grave. Toda esta austeridade falhou o alvo e
agravou o problema, pois este não ficou resolvido. Foi um
holocausto inútil e cruel. Como se vê com o caso BES. A Europa
corre o risco de ser outra vez vítima da desregulação do seu
sistema financeiro, que, no essencial, continua na mesma. A famosa
união bancária é um paliativo, não um remédio eficaz.
O velho
adágio «menos Estado, melhor Estado», consegue ser concretizado
neste Portugal?
Não é isso que está a acontecer.
Estamos a construir, como diz Adriano Moreira, um "Estado exíguo".
E isso é uma ameaça para o nosso futuro como comunidade
nacional.
Diz que
Portugal precisa de vencer os seus défices atávicos, caso contrário
estará condenado a um «futuro exíguo». Significa que concorda com o
ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, quando este afirmou que
«há mais vida para além do défice»?
Precisamos de contas públicas
equilibradas. Mas sem termos um horizonte de desenvolvimento
sustentável, capaz de mobilizar os cidadãos e as empresas, o país
continuará refém de uma lenta agonia. Na conferência realizada na
Gulbenkian penso que ficou bem demonstrado que, apesar de tudo,
temos uma janela, estreita mas real, de liberdade estratégica.
Os casos
BES e BPN representam o lado mais negro do capitalismo financeiro e
têm consequências na União Económica e Monetária. É este o espelho
de uma Europa egoísta, salpicada por escândalos financeiros e sob o
"jugo" alemão?
Deixámos construir uma União
Económica e Monetária (UEM) com as regras mais ideologicamente
neoliberais do mundo. Acabámos com a soberania monetária e cambial,
deixando os Estados à mercê dos mercados financeiros (o artigo
123.º Tratado de Funcionamento da UE proíbe o BCE de comprar
directamente a dívida dos Estados), e sem termos as condições
políticas para suportar choques assimétricos (como se viu).
Curiosamente, grandes presidentes do Bundesbank, nos anos 70 a 90,
como Karl Blessing e Karl Otto Pöhl chamaram a atenção para a
necessidade de ter uma união fiscal e orçamental, bem como um
governo europeu com um orçamento razoável, para poder fazer
transferências entre regiões mais ricas e mais pobres, antes de
avançar para a moeda única. Tinham razão. Kohl, para garantir o seu
lugar na história como o reunificador da Alemanha, aceitou a
exigência de Mitterrand. O euro foi uma exigência francesa. Uma má
ideia, na forma desastrada de que se revestiu…Hoje, a Alemanha
esqueceu aquilo que os seus banqueiros centrais sabiam. Limita-se a
sobreviver na tempestade. Quem está à espera da liderança alemã
(como foi o meu caso em 2009) está a esperar em vão.
Confessa-se
um «obcecado» por questões relacionadas com a União Europeia. Em
maio lançou o livro «Portugal na queda da Europa» e na capa pode
ler-se que «a Europa está em queda, mas ainda não se despedaçou». O
federalismo é a única saída para evitar o impacto fatal?
A UE está num processo de
degradação que eu designo por "queda". Ele começou em 1992 com a
criação de uma UEM que é um dos mais colossais erros políticos da
história mundial. Mas só a crise de 2007 fez soltar o veneno oculto
dentro da moeda única. Desde essa data, as respostas acentuaram
ainda mais o problema. Agora, ou saímos da crise, por cima, através
do federalismo, ou saltamos para o abismo da desintegração.
Infelizmente, as apostas, neste momento, são mais favoráveis para a
segunda hipótese. O federalismo significa mais democracia, mais
direitos humanos, mais legitimidade política, menos usurpação por
burocracias anónimas e não eleitas. Significa também que elevaremos
a escala da política ao nível da escala dos problemas (que é
europeia e global). Contudo, os dirigentes europeus recusam o
federalismo do mesmo modo que algumas seitas religiosas preferem
deixar morrer os seus filhos de anemia profunda do que autorizar
transfusões de sangue. Nunca devemos subestimar a ignorância como
ator histórico. E ela abunda, hoje, nas chancelarias europeias.
Diz que a
Alemanha assegura o seu bem-estar à custa de parceiros mais fracos.
Quer concretizar?
Mais rigorosamente o que digo é que
a Alemanha beneficiou das medidas de combate à crise, que ela
própria desenhou, e que custaram tanto a Portugal e aos outros
países "resgatados". A baixa dos juros da dívida alemã, ou a
recapitalização dos seus bancos com as poupanças fugidas da
periferia (o que designo como "efeito de sala de pânico") são disso
um claro exemplo. Mas digo também que esta situação é temporária, e
irá atingir negativamente a Alemanha. Veja-se, por exemplo, a
radical diminuição das exportações para os mercados dos países do
Sul. A Zona Euro é um sistema. Dependemos todos uns dos outros. É
pena que muitos políticos alemães pensam que estão rodeados por um
anel protetor, que só existe na sua imaginação.
A Europa
dos cidadãos e dos povos deu origem à Europa dos diretórios, onde
Berlim e Bruxelas determinam tudo o que se tem que fazer?
É
isso mesmo. E um sintoma claro de mal-estar pode verificar-se na
elevada abstenção registada nas eleições europeias. Ela é um
sintoma da degradação da democracia representativa, não a sua
causa. A nossa democracia foi-se adaptando ao crescente império da
lógica de mercado. A ideia de espaço público como esfera de
deliberação livre sobre o futuro comum deu lugar a uma espécie de
leilão de promessas baseadas em futura despesa pública. Os cidadãos
habituaram-se a ser tratados não como parte ativa e soberana do
contrato social, mas como consumidores de promessas. Nesta fase
crítica, onde as expetativas dão lugar à desilusão, ou retomamos a
cultura cívica republicana, ou corremos o risco de entrar num
niilismo político, que, invariavelmente, antecede uma deriva para o
autoritarismo. A democracia é frágil, e está em perigo.
Como
analisa as teorias que vão emergindo sobre a possibilidade de
Portugal sair da União Europeia e/ou do euro?
Neste momento voltar às moedas
nacionais seria um processo ainda mais custoso ao nível de
coordenação das políticas monetárias e financeiras, do que fazer as
reformas federais que trariam a esperança e o emprego de volta à
Zona Euro. Se o euro terminar será sempre desordenadamente, com
pânico e furor. Será um tsunami sentido em todo o mundo. Por
analogia com uma pasta dentífrica, podemos dizer que fazer o euro é
mais fácil do que sair dele, tal como tirar pasta de dentro de uma
bisnaga é infinitamente mais fácil do que voltar a colocar essa
pasta lá dentro… O que defendo é que a moeda única precisa de ser
completada com uma união política, que garanta legitimidade
constitucional, respondendo perante os eleitores europeus. Com uma
burocracia anónima ao leme, ao serviço de uma potência que manda
sem liderar (a Alemanha), o euro será mais um perigo do que um
ativo para o futuro da Europa.
É um grande
especialista em assuntos ambientais, tendo sido presidente da
Quercus. Fiscalidade verde, carros elétricos e políticas amigas do
ambiente são termos que ouvimos sair da boca dos políticos.
Acredita nas boas intenções ecológicas dos governantes?
O silenciamento da política de
ambiente, incluindo as iniciativas na área de alterações
climáticas, é um sinal dos tempos. Significa que tanto Portugal,
como a União Europeia desistiram de pensar no futuro. Sem um
ambiente equilibrado não teremos futuro. Devo contudo dizer que o
ministro Moreira da Silva é um cidadão empenhado na defesa do
ambiente, e conhecedor dos temas em causa. A proposta de
fiscalidade verde não pode ser encarada pela negativa, pois contém
matéria que deve ser integrada numa boa política ambiental.
Infelizmente, a área do ambiente não conta na balança das decisões
fundamentais do governo de coligação.
Num dos
artigos que escreveu na sua colaboração regular no «Diário de
Notícias» não regateou críticas à política de ciência do ministro
Nuno Crato e dos critérios de avaliação dos 322 centros de
investigação nacionais. Admite que o futuro da ciência em Portugal
está comprometido?
Os danos causados por este governo
à investigação científica em Portugal são incalculáveis, e será
preciso esperar muitos anos, se não existirem medidas radicais de
mudança nos próximos meses, para calcular todos os estragos. Neste
momento há centenas de investigadores que se encontram a arrumar as
malas para emigrarem.
O principal
problema do sistema educativo português é a falta de estabilidade
de políticas e dos políticos ou tem faltado competência na gestão
desta pasta?
É uma vergonha que Portugal não
tenha já realizado um consenso estratégico, baseado na melhor
informação disponível, para uma verdadeira política de educação com
duração não para uma legislatura de 4 anos, mas para uma geração.
Mas, com este ministro, a coisa ainda é mais grave. Por uma
incompreensível ironia, o caos na colocação de professores foi
causado por um erro numa fórmula matemática. Para um homem que,
sendo matemático, passava a vida a atirar farpas à "falta de rigor"
dos outros ministros da Educação, esta calamidade causada por
incúria técnica deveria fazer-nos pensar no estado de degradação a
que o aparelho de Estado chegou no nosso país. O problema do
"Citius" não é um exclusivo do Ministério da Justiça.
Era Vítor
Cunha Rego que dizia que o mundo está perigoso. Perigoso e do
avesso, dizemos nós. Vladimir Putin surge como o grande
protagonista político da atualidade, fazendo emergir as
sombras de uma"guerra fria" que se julgava enterrada. Quais são as
reais ambições da Rússia?
Não tenho qualquer simpatia por
Putin, e pela sua reafirmação do nacionalismo russo num quadro de
democracia limitada e policiada que vigora hoje em Moscovo. Mas o
que destaco na crise da Ucrânia é a total estultícia da União
Europeia. Putin marcou, na ação militar na Georgia, em 2008, os
seus limites. Disse claramente que não toleraria a NATO a crescer
mais às suas portas. Perante isso, a União Europeia ou se acomodava
a isso, ou, então, preparava-se para um futuro confronto com a
Rússia (o que seria uma completa estupidez). A UE acabou por seguir
uma terceira via. Acalentar esperanças megalómanas e antirussas,
que jamais pensava honrar, numa oposição ucraniana que preferiu
derrubar o presidente eleito em 2010, com um golpe de força em vez
de o fazer em eleições. Sustento que Bruxelas se portou pior do que
Moscovo em toda esta crise. Kiev e os ucranianos acabaram por ser
as vítimas de uma clara falta de sabedoria estratégica mínima por
parte de uma Europa que deveria ter funcionado como fator de
moderação, e não como catalisador incendiário.
As
decapitações dos reféns ocidentais às mãos do Estado Islâmico
(ISIS) são a nova face da barbárie. O terrorismo do início da
década passada tinha um rosto, Bin Laden. Uma década depois tem uma
inspiração personificada na multiplicação dos jihadistas?
A barbárie tem muitas faces. A
crueldade dos fanáticos que degolam reféns inocentes não nos deve
fazer esquecer a violência assética de funcionários que, numa base
nos EUA, conduzem a nova Guerra Aérea Remota, feita com drones
(aviões não tripulados). Há problemas políticos (a não autorização
do Congresso para estas ações) e morais (há centenas de pessoas a
serem mortas por explosivos, muitas baixas colaterais inocentes,
acionados por alguém a milhares de quilómetros de distância, como
num videojogo). A abstração do rosto humano do inimigo é também
mais um passo no caminho da barbárie.
É um
crítico impiedoso do que fizeram Bush e Blair, atiçando o vespeiro
no Iraque. O mundo ainda está a pagar os efeitos da célebre cimeira
das Lajes?
Sem dúvida. A Cimeira das Lajes
ficará na história como um dos mais tristes momentos da ausência de
visão estratégica que uniu os seus diversos participantes, e mesmo
de lisura na observância do interesse nacional, no caso português.
Se houvesse justiça no mundo, os seus participantes mereceriam ser
julgados pela imensa destruição de vidas e bens que as suas ações
ainda estão a causar. E pela grosseira violação do direito
internacional público que a invasão do Iraque representou.
Nuno Dias da Silva
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