Entrevista

Viriato Soromenho-Marques, filósofo
«Danos causados à investigação científica em Portugal são incalculáveis»

VSM por V. Dias 2010.jpgEstá na linha da frente dos pensadores mais respeitados da atualidade. Em entrevista ao «Ensino Magazine», Viriato Soromenho-Marques fala do país, da Europa, do setor educativo e até da ameaça do Estado Islâmico.

Foi o comissário da conferência «Afirmar o Futuro - Políticas Públicas para Portugal», realizada em outubro, na Gulbenkian. Os pilares das intervenções foram a reforma do Estado, a economia, políticas sociais, território, ordenamento e ambiente. A escolha destas áreas temáticas coincidiu com as maiores lacunas de Portugal enquanto país?

São áreas de política pública que estão a ser seriamente afetadas pela crise económica, e, mais ainda, pela errada política de austeridade que tem sido imposta ao país pelos credores, e aceite sem protesto visível ou significativo pelo governo. Há muitas áreas de política que não foram abordadas na conferência, que pretendeu abordar tópicos essenciais, mas sem querer ou poder ser exaustivo. A defesa, a cooperação, uma parte da política de ambiente, por exemplo, ficaram num mero segundo plano.

Fala que a «maldição» que assola as políticas públicas reside na falta de consenso, compromissos e prolongamento no tempo. Qual a quota parte de responsabilidades de políticos e sociedade civil para este estado de coisas?

A "maldição" de que falei reside na tendência para substituir o estudo e o rigor que devem acompanhar a preparação de qualquer política pública, pela tendência para o improviso e o voluntarismo. A rotação de "políticas" de governo para governo, e às vezes até dentro de cada governo, dependendo da vontade pessoal de algum ministro querer deixar o seu nome ligado a uma "reforma", é proporcional à ligeireza dos métodos de trabalho. As políticas são lançadas sem fundamento suficiente e abandonadas sem avaliação crítica. Os governantes e a sociedade civil partilham uma mesma cultura política que consente este estado de coisas. O círculo vicioso só poderá ser rompido com mais exigência por parte dos cidadãos.

O período de ajustamento desvitalizou as políticas públicas nacionais em setores tão diversos como a saúde, economia e justiça, só para citar alguns exemplos. Que principais marcas deixou nas políticas públicas a receita da troika em Portugal? Quando nos conseguiremos libertar desta espécie de cultura da crise?

O drama da austeridade que nos foi imposta reside no facto de que ela se destinou a tratar um sintoma e não a raiz da doença. A austeridade faria sentido se o "despesismo do Estado" fosse a causa da crise. Ora, o aumento da despesa pública ocorreu a partir de 2008, justamente para acudir aos bancos que estavam à beira da falência, em toda a Europa, sendo a Irlanda o caso mais grave. Toda esta austeridade falhou o alvo e agravou o problema, pois este não ficou resolvido. Foi um holocausto inútil e cruel. Como se vê com o caso BES. A Europa corre o risco de ser outra vez vítima da desregulação do seu sistema financeiro, que, no essencial, continua na mesma. A famosa união bancária é um paliativo, não um remédio eficaz.

O velho adágio «menos Estado, melhor Estado», consegue ser concretizado neste Portugal?

Não é isso que está a acontecer. Estamos a construir, como diz Adriano Moreira, um "Estado exíguo". E isso é uma ameaça para o nosso futuro como comunidade nacional.

Diz que Portugal precisa de vencer os seus défices atávicos, caso contrário estará condenado a um «futuro exíguo». Significa que concorda com o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, quando este afirmou que «há mais vida para além do défice»?

Precisamos de contas públicas equilibradas. Mas sem termos um horizonte de desenvolvimento sustentável, capaz de mobilizar os cidadãos e as empresas, o país continuará refém de uma lenta agonia. Na conferência realizada na Gulbenkian penso que ficou bem demonstrado que, apesar de tudo, temos uma janela, estreita mas real, de liberdade estratégica.

Os casos BES e BPN representam o lado mais negro do capitalismo financeiro e têm consequências na União Económica e Monetária. É este o espelho de uma Europa egoísta, salpicada por escândalos financeiros e sob o "jugo" alemão?

Deixámos construir uma União Económica e Monetária (UEM) com as regras mais ideologicamente neoliberais do mundo. Acabámos com a soberania monetária e cambial, deixando os Estados à mercê dos mercados financeiros (o artigo 123.º Tratado de Funcionamento da UE proíbe o BCE de comprar directamente a dívida dos Estados), e sem termos as condições políticas para suportar choques assimétricos (como se viu). Curiosamente, grandes presidentes do Bundesbank, nos anos 70 a 90, como Karl Blessing e Karl Otto Pöhl chamaram a atenção para a necessidade de ter uma união fiscal e orçamental, bem como um governo europeu com um orçamento razoável, para poder fazer transferências entre regiões mais ricas e mais pobres, antes de avançar para a moeda única. Tinham razão. Kohl, para garantir o seu lugar na história como o reunificador da Alemanha, aceitou a exigência de Mitterrand. O euro foi uma exigência francesa. Uma má ideia, na forma desastrada de que se revestiu…Hoje, a Alemanha esqueceu aquilo que os seus banqueiros centrais sabiam. Limita-se a sobreviver na tempestade. Quem está à espera da liderança alemã (como foi o meu caso em 2009) está a esperar em vão.

Confessa-se um «obcecado» por questões relacionadas com a União Europeia. Em maio lançou o livro «Portugal na queda da Europa» e na capa pode ler-se que «a Europa está em queda, mas ainda não se despedaçou». O federalismo é a única saída para evitar o impacto fatal?

A UE está num processo de degradação que eu designo por "queda". Ele começou em 1992 com a criação de uma UEM que é um dos mais colossais erros políticos da história mundial. Mas só a crise de 2007 fez soltar o veneno oculto dentro da moeda única. Desde essa data, as respostas acentuaram ainda mais o problema. Agora, ou saímos da crise, por cima, através do federalismo, ou saltamos para o abismo da desintegração. Infelizmente, as apostas, neste momento, são mais favoráveis para a segunda hipótese. O federalismo significa mais democracia, mais direitos humanos, mais legitimidade política, menos usurpação por burocracias anónimas e não eleitas. Significa também que elevaremos a escala da política ao nível da escala dos problemas (que é europeia e global). Contudo, os dirigentes europeus recusam o federalismo do mesmo modo que algumas seitas religiosas preferem deixar morrer os seus filhos de anemia profunda do que autorizar transfusões de sangue. Nunca devemos subestimar a ignorância como ator histórico. E ela abunda, hoje, nas chancelarias europeias.

Diz que a Alemanha assegura o seu bem-estar à custa de parceiros mais fracos. Quer concretizar?

Mais rigorosamente o que digo é que a Alemanha beneficiou das medidas de combate à crise, que ela própria desenhou, e que custaram tanto a Portugal e aos outros países "resgatados". A baixa dos juros da dívida alemã, ou a recapitalização dos seus bancos com as poupanças fugidas da periferia (o que designo como "efeito de sala de pânico") são disso um claro exemplo. Mas digo também que esta situação é temporária, e irá atingir negativamente a Alemanha. Veja-se, por exemplo, a radical diminuição das exportações para os mercados dos países do Sul. A Zona Euro é um sistema. Dependemos todos uns dos outros. É pena que muitos políticos alemães pensam que estão rodeados por um anel protetor, que só existe na sua imaginação.

A Europa dos cidadãos e dos povos deu origem à Europa dos diretórios, onde Berlim e Bruxelas determinam tudo o que se tem que fazer?

VS-M por Veríssimo Dias 2010.jpgÉ isso mesmo. E um sintoma claro de mal-estar pode verificar-se na elevada abstenção registada nas eleições europeias. Ela é um sintoma da degradação da democracia representativa, não a sua causa. A nossa democracia foi-se adaptando ao crescente império da lógica de mercado. A ideia de espaço público como esfera de deliberação livre sobre o futuro comum deu lugar a uma espécie de leilão de promessas baseadas em futura despesa pública. Os cidadãos habituaram-se a ser tratados não como parte ativa e soberana do contrato social, mas como consumidores de promessas. Nesta fase crítica, onde as expetativas dão lugar à desilusão, ou retomamos a cultura cívica republicana, ou corremos o risco de entrar num niilismo político, que, invariavelmente, antecede uma deriva para o autoritarismo. A democracia é frágil, e está em perigo.

Como analisa as teorias que vão emergindo sobre a possibilidade de Portugal sair da União Europeia e/ou do euro?

Neste momento voltar às moedas nacionais seria um processo ainda mais custoso ao nível de coordenação das políticas monetárias e financeiras, do que fazer as reformas federais que trariam a esperança e o emprego de volta à Zona Euro. Se o euro terminar será sempre desordenadamente, com pânico e furor. Será um tsunami sentido em todo o mundo. Por analogia com uma pasta dentífrica, podemos dizer que fazer o euro é mais fácil do que sair dele, tal como tirar pasta de dentro de uma bisnaga é infinitamente mais fácil do que voltar a colocar essa pasta lá dentro… O que defendo é que a moeda única precisa de ser completada com uma união política, que garanta legitimidade constitucional, respondendo perante os eleitores europeus. Com uma burocracia anónima ao leme, ao serviço de uma potência que manda sem liderar (a Alemanha), o euro será mais um perigo do que um ativo para o futuro da Europa.

É um grande especialista em assuntos ambientais, tendo sido presidente da Quercus. Fiscalidade verde, carros elétricos e políticas amigas do ambiente são termos que ouvimos sair da boca dos políticos. Acredita nas boas intenções ecológicas dos governantes?

O silenciamento da política de ambiente, incluindo as iniciativas na área de alterações climáticas, é um sinal dos tempos. Significa que tanto Portugal, como a União Europeia desistiram de pensar no futuro. Sem um ambiente equilibrado não teremos futuro. Devo contudo dizer que o ministro Moreira da Silva é um cidadão empenhado na defesa do ambiente, e conhecedor dos temas em causa. A proposta de fiscalidade verde não pode ser encarada pela negativa, pois contém matéria que deve ser integrada numa boa política ambiental. Infelizmente, a área do ambiente não conta na balança das decisões fundamentais do governo de coligação.

Num dos artigos que escreveu na sua colaboração regular no «Diário de Notícias» não regateou críticas à política de ciência do ministro Nuno Crato e dos critérios de avaliação dos 322 centros de investigação nacionais. Admite que o futuro da ciência em Portugal está comprometido?

Os danos causados por este governo à investigação científica em Portugal são incalculáveis, e será preciso esperar muitos anos, se não existirem medidas radicais de mudança nos próximos meses, para calcular todos os estragos. Neste momento há centenas de investigadores que se encontram a arrumar as malas para emigrarem.

O principal problema do sistema educativo português é a falta de estabilidade de políticas e dos políticos ou tem faltado competência na gestão desta pasta?

É uma vergonha que Portugal não tenha já realizado um consenso estratégico, baseado na melhor informação disponível, para uma verdadeira política de educação com duração não para uma legislatura de 4 anos, mas para uma geração. Mas, com este ministro, a coisa ainda é mais grave. Por uma incompreensível ironia, o caos na colocação de professores foi causado por um erro numa fórmula matemática. Para um homem que, sendo matemático, passava a vida a atirar farpas à "falta de rigor" dos outros ministros da Educação, esta calamidade causada por incúria técnica deveria fazer-nos pensar no estado de degradação a que o aparelho de Estado chegou no nosso país. O problema do "Citius" não é um exclusivo do Ministério da Justiça.

Era Vítor Cunha Rego que dizia que o mundo está perigoso. Perigoso e do avesso, dizemos nós. Vladimir Putin surge como o grande protagonista político da atualidade, fazendo emergir as  sombras de uma"guerra fria" que se julgava enterrada. Quais são as reais ambições da Rússia?

Não tenho qualquer simpatia por Putin, e pela sua reafirmação do nacionalismo russo num quadro de democracia limitada e policiada que vigora hoje em Moscovo. Mas o que destaco na crise da Ucrânia é a total estultícia da União Europeia. Putin marcou, na ação militar na Georgia, em 2008, os seus limites. Disse claramente que não toleraria a NATO a crescer mais às suas portas. Perante isso, a União Europeia ou se acomodava a isso, ou, então, preparava-se para um futuro confronto com a Rússia (o que seria uma completa estupidez). A UE acabou por seguir uma terceira via. Acalentar esperanças megalómanas e antirussas, que jamais pensava honrar, numa oposição ucraniana que preferiu derrubar o presidente eleito em 2010, com um golpe de força em vez de o fazer em eleições. Sustento que Bruxelas se portou pior do que Moscovo em toda esta crise. Kiev e os ucranianos acabaram por ser as vítimas de uma clara falta de sabedoria estratégica mínima por parte de uma Europa que deveria ter funcionado como fator de moderação, e não como catalisador incendiário.

As decapitações dos reféns ocidentais às mãos do Estado Islâmico (ISIS) são a nova face da barbárie. O terrorismo do início da década passada tinha um rosto, Bin Laden. Uma década depois tem uma inspiração personificada na multiplicação dos jihadistas?

A barbárie tem muitas faces. A crueldade dos fanáticos que degolam reféns inocentes não nos deve fazer esquecer a violência assética de funcionários que, numa base nos EUA, conduzem a nova Guerra Aérea Remota, feita com drones (aviões não tripulados). Há problemas políticos (a não autorização do Congresso para estas ações) e morais (há centenas de pessoas a serem mortas por explosivos, muitas baixas colaterais inocentes, acionados por alguém a milhares de quilómetros de distância, como num videojogo). A abstração do rosto humano do inimigo é também mais um passo no caminho da barbárie.

É um crítico impiedoso do que fizeram Bush e Blair, atiçando o vespeiro no Iraque. O mundo ainda está a pagar os efeitos da célebre cimeira das Lajes?

Sem dúvida. A Cimeira das Lajes ficará na história como um dos mais tristes momentos da ausência de visão estratégica que uniu os seus diversos participantes, e mesmo de lisura na observância do interesse nacional, no caso português. Se houvesse justiça no mundo, os seus participantes mereceriam ser julgados pela imensa destruição de vidas e bens que as suas ações ainda estão a causar. E pela grosseira violação do direito internacional público que a invasão do Iraque representou.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO