Telma Monteiro em Entrevista
«O desporto torna-nos melhores cidadãos»
Judoca de primeira linha mundial na sua
categoria, Telma Monteiro explica como consegue o feito de
conciliar com sucesso o desporto de alta competição e os estudos
universitários.
Como é o dia a dia de uma atleta de alta
competição ao longo de toda a semana
?
Normalmente, de segunda a sexta-feira treino de
manhã e à tarde. Uma parte do dia para apurar a forma física e
técnica e a outra com a prática de judo. Ao sábado também treino.
Normalmente o domingo é o dia reservado ao descanso absoluto. Mas
esta calendarização depende, obviamente, do período competitivo em
que se estiver. Na véspera de um qualquer campeonato a carga de
treino intensifica-se.
Sei que também faz estágios no
estrangeiro. Quais são as principais
vantagens?
O Japão é um destino de eleição para os estágios
visto que é o país onde o judo é das modalidades mais populares,
permitindo treinar com atletas de muito boa qualidade, sem que
muitas das minhas adversárias consigam assistir. Mas também já fiz
estágios de preparação no Brasil, na Áustria e noutros países. Esta
preparação específica tem como principal vantagem procurar melhorar
o treino visto que em Portugal este não é tão
competitivo.
Dedica-se ao judo desde os 14 anos. Não é
uma idade tardia para iniciar-se numa
modalidade?
Admito que para ser atleta de alta competição
pode ser tarde começar aos 14 anos, mas nunca é tarde para começar
um desporto. Neste caso, felizmente, fui bem sucedida. Mas creio
que pesou o facto de ter praticado muito desporto desde que era
criança, primeiro atletismo e depois futebol, inclusive de ter
brincado na rua com os meus amigos, o que me permitiu, desde tenra
idade, desenvolver a motricidade humana e a
coordenação.
Foi desclassificada nos recentes mundiais
de Astana, facto que considerou ter sido uma «injustiça». Por vezes
sofre na pele por representar um país
pequeno?
Tratou-se de uma situação isolada. Toda a gente
comete erros, os atletas, os árbitros, etc. Portugal não é, de
facto, uma potência, nem política, nem desportiva, e tal facto pode
pesar em certos momentos de qualquer modalidade. Mas defendo que o
importante é que nós, atletas, nos foquemos no que é
verdadeiramente importante e que podemos controlar, ou seja no
treino, na parte técnica, física e mental.
É quarta do ranking mundial da Federação
Internacional de Judo na categoria -57 kg, mas já foi a melhor
nesta categoria. O objetivo é regressar ao lugar mais
alto?
O principal objetivo é manter um lugar
nas oito primeiras, porque isso permite ser cabeça de série em
diversas competições, nomeadamente nos mundiais e nos europeus,
evitando o confronto com as principais favoritas nas primeiras
eliminatórias, visto que o judo é uma modalidade a eliminar. Por
isso, tem toda a importância este factor. Resta-me continuar a
fazer boas provas, para tentar ser cabeça de série nos Jogos
Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro.
Qual é o sentimento com que se fica após
dias, semanas, meses e anos de treino ser afastada da discussão da
vitória ou do pódio em poucos
minutos?
Qualquer atleta de alta competição rege a sua
vida em função do treino diário e da disciplina. São dias, semanas,
meses e anos a trabalhar que depois acabam por se resumir a um dia,
por isso, é natural que quando os resultados não são os que
esperávamos exista tristeza e desilusão. É preciso ter a noção que
não é possível ganhar sempre, mas parto sempre para as competições
com pensamento positivo
A parte mental é
fundamental?
O estofo mental de um atleta é uma condição para
o sucesso e para vencer as adversidades. A técnica e a estratégia
são importantes, mas não são decisivas. O processo psicológico é
central para ser resiliente.
Diz que existe maior reconhecimento nas
vitórias dos atletas masculinos face às atletas femininas. São
resquícios de discriminação sexual no
desporto?
Não me choca, mas temos de continuar a trabalhar
para contrariar essa tendência. Devemos continuar a contribuir para
mudar mentalidades. Como não me conformo, continuarei a lutar para
vencer e representar bem o meu país nas competições
internacionais.
Ser porta-estandarte na cerimónia de
abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, receber uma distinção das
mãos do Presidente da República e o prémio de mérito desportivo em
2014 foram os grandes momentos de reconhecimento do seu
trabalho?
As duas últimas distinções que mencionou foram
marcantes, mas ser porta-estandarte em Londres, em 2012, no maior
evento desportivo do planeta, encheu-me de orgulho e marcou-me,
inclusive, como pessoa. Foi uma sensação única e um privilégio
erguer a bandeira portuguesa bem alto no estádio
olímpico.
Como é representar um grande clube como o
Benfica?
Envergar a camisola de um clube com a dimensão do
Benfica para além de um orgulho é um valor acrescentado para um
atleta. Tenho todas as condições de apoio médico, fisioterapia,
psicologia e nutricionismo, o que confere confiança a qualquer
atleta porque o corpo do atleta é a sua arma e neste clube nenhum
aspeto é descurado. A gestão do atleta é feita ao mais ínfimo
pormenor. Para além disso, é sempre bom receber o carinho e o apoio
da massa associativa de um clube com a grandeza do
Benfica.
Concorda que existe «futebolização» do
desporto, nomeadamente com o excesso de programas de debate e
comentário na televisão?
É uma realidade que o futebol é o desporto mais
popular e o que mais destaque merece nos órgãos de comunicação
social. Mas, tal como há pouco referia relativamente ao maior
reconhecimento dos atletas masculinos, também neste ponto, a pouco
e pouco, as coisas vão mudando, com os atletas a darem o seu
contributo, para se falar mais das outras modalidades e dos outros
atletas, para lá do futebol, na comunicação social e somando mais
apoios que são fundamentais para a progressão das respetivas
modalidades.
A opinião pública fica mal informada com
o défice de informação que a imprensa veicula sobre as modalidades
ditas «amadoras»?
Penso que devia ser feito um melhor
acompanhamento do ciclo olímpico, ou seja, dos quatro anos
compreendidos entre olimpíadas. Se o trabalho dos atletas, de
qualquer modalidade, fosse acompanhado com maior destaque a
avaliação do desempenho feito pelos portugueses e pela própria
imprensa seria mais justa e equilibrada. O público em geral fica
confuso e retira conclusões precipitadas com o excesso de
expectativas criadas pela imprensa.
É justo atirar a pressão para cima dos
ombros de atletas dos quais raramente se fala durante o resto do
ano?
Não sinto essa pressão, mas é natural que existam
expectativas quando se aproximam as
olimpíadas.
Em Portugal parece que todos se lembram que
certos atletas existem apenas de quatro em quatro anos, ou seja,
quando há Jogos Olímpicos. Mudar as mentalidades é um processo
lento, mas creio que os excelentes resultados que o desporto dito
«amador» tem recolhido é um bom indicador que algo está a mudar. É
um facto que se fala mais quando há medalhas, mas acredito que
estamos a melhorar.
Será no Rio de Janeiro, em 2016, que vai
conquistar a medalha que lhe escapa nos grandes
certames?
Falta menos de um ano e estou a preparar-me da
melhor maneira e com muita ambição. Mas é muito cedo para criar
expectativas. Em 2012 houve campeões olímpicos que no ano anterior
figuravam abaixo do 10.º lugar do ranking mundial. Só
uma boa preparação não chega. Um dia mau pode deitar por terra anos
de treino.
Tem 29 anos. Serão os seus últimos
Jogos?
Não sei. Há judocas que ainda disputam olimpíadas
com 35 anos.
Licenciou-se em Educação Física e
Desporto, em 2011, na Universidade Lusófona. De que forma os
estudos lhe conferiram outra dimensão do fenómeno
desportivo?
Foi muito útil ter tido acesso à teoria do que
faço, na prática, todos os dias, há muitos anos, ao nível do
planeamento, das necessidades e da pedagogia. O desporto é para
todos, seja se o tomarmos como alta competição ou em prol de uma
vida saudável. Posso dizer que a universidade abriu-me novos
horizontes, mudou-me a mentalidade, o que se tornou numa grande
ferramenta.
Em que medida é que o desporto pode
tornar as pessoas mais completas?
Pode tornar os seres humanos melhores. Não tenho
dúvidas. O desporto faz-nos sentir bem e obriga as pessoas a saírem
da sua zona de conforto, na medida em que se expõem perante os
outros. A disciplina que se tem na prática desportiva é transposta
para a vida quotidiana através dos valores da resiliência,
determinação e da luta por objetivos concretos. O desporto tem o
condão de desenvolver estas capacidades.
Como foi conciliar os treinos regulares e
os estudos?
Com disciplina e organização tudo se consegue,
nomeadamente ao nível dos horários, planificando o tempo para
estudar, treinar e organizar os tempos livres. A verdade é que pese
embora a agenda competitiva que mantenho, sempre tive boas notas. E
também há tempo para a vida social, é apenas preciso definir
prioridades. Na vida há etapas para tudo.
Treinar é igual a estudar. Os exames é
igual a competir. O que lhe gera mais pressão: a universidade ou a
competição?
Quando fazia exames na faculdade não sentia
qualquer pressão porque a verdadeira pressão que sentia só
acontecia antes e durante uma competição de judo. É um ensinamento
excelente, nomeadamente, ao ser utilizada na vertente empresarial.
Por isso, o desporto é uma lição de vida e torna-nos cidadãos
melhores e mais competentes.
Li numa entrevista que pelo facto de ter
tido experiência numa universidade pública e noutra privada, os
professores desta última revelaram ser mais flexíveis e menos
burocráticos perante a complexa vida desportista que levava. De que
modo se manifestou essa postura?
Não quero entrar em comparações, mas na
Universidade Lusófona os professores sempre foram super
compreensivos e mantiveram muito respeito pela minha
particularidade de ser desportista de alta competição. Por exemplo,
quando era preciso antecipar um exame para não coincidir com uma
prova de judo ou se faltava às aulas para ir para um estágio. Tudo
isso foi compreendido. Sem dramas. Isso basta. Sempre me senti bem
acolhida e isso motivou-me. Tenho relatos de amigos meus, atletas
de alta competição, que estudam em várias faculdades que se queixam
que os professores ignoram, por completo, o seu contexto
desportivo.
Já pensou no que vai fazer quando
terminar a sua carreira?
Tenho a certeza que quero
continuar ligada ao desporto, nomeadamente como treinadora.
Entretanto, e para aprofundar as minhas competências académicas
estou a tirar uma pós-graduação em Marketing e Gestão
Desportiva.
Nuno Dias da Silva
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