Entrevista

Francisco Moita Flores, Escritor
O explicador da Justiça

MoitaFlores3.JPGA pretexto de mais um livro que edita, Moita Flores pronuncia-se sobre o estado da Justiça e não poupa a classe política. Considera a língua de Camões o maior ativo de Portugal entregue à Humanidade e lamenta que a Escola não seja assumida como pilar na organização e do projeto de país que queremos.

Como escritor, oscila entre a ficção e o ensaio. Agora nesta última pele escreveu «Teoria da Investigação Criminal - A Arte de Ser Detetive». Pretendeu com este livro elaborar um breve guia prático para "formar" leitores detetives?

A «Arte de Ser Detetive» não é tanto um guia prático. É, antes, sobre a compreensão dos métodos e dos instrumentos científicos que constroem a investigação criminal. Todos nós vivemos fascinados por mistérios, alguns deles do universo criminal, e gostamos de resolvê-los. Com este ensaio procuro levar aos leitores o conjunto de atos fundamentais que têm de ser realizados para que o mistério seja decifrado.

A investigação criminal vive tempos difíceis no nosso país devido à escassez de meios?

Não. A escassez de meios não é argumento. Como se extrai do livro, o grande segredo da investigação criminal é a acumulação de informação sobre crimes, sobre criminosos, sobre maneira de actuar, sobre a história do crime. É este imenso «arquivo» vivo, feito de papéis e da memória dos seus profissionais a arma mais poderosa para combater o crime. Ora, em 2000, um Parlamento semi-analfabeto decidiu pulverizar este tesouro, transformando todas as polícias, fossem de segurança, fossem de mera fiscalidade, em órgãos de polícia criminal. Ao todo julgo que são 23 instituições que, agora, dividem esta tarefa e a informação. Sem contactos, em concorrência, com meios dispersos, empobrecendo esse tesouro. O fim desse disparate legislativo, criando uma única polícia de investigação criminal, seria um enorme passo para tornar à multiplicar a eficácia.

Acompanha o fenómeno da polícia e das polícias há 35 anos. O descontentamento que existe nas forças da autoridade pode dar origem a reações descontroladas e a que o poder político não está preparado para responder?

Não creio em reações descontroladas, tipo sublevações ou apontar as armas ao poder. Porém, o desprezo de governos sucessivos para com as forças de segurança entrou no território da humilhação. Não espantará que diminua a motivação, que aumente o protesto sindical, que cresça o descontentamento dos profissionais. Porém, o problema é o outro: É inacreditável que o poder não conheça esta realidade. Veja-se a última campanha eleitoral. Nem uma palavra sobre Justiça nem sobre Segurança.

A sua participação no programa «Casos de Polícia», na SIC, deu o pontapé de saída para falar de assuntos de justiça na TV, marcando uma viragem nas relações entre a polícia e a comunicação social. Sente-se, de alguma forma, um percursor?

Um percursor forçado. As televisões privadas tinham arrancado. O interesse pelos temas de sociedade aumentaram e, na altura, Emídio Rangel informou a PJ que iria fazer um programa chamado «Casos de Polícia». E convidava-nos para estar presentes, sublinhando logo que a nossa ausência não significaria o fim do projeto. Foi decidido pelo ministro Laborinho Lúcio e pelo Director da PJ, Dr. Mário Mendes, que deveríamos estar presentes. Ao menos poderíamos apresentar os nossos pontos de vista. Fui eu o escolhido para a função. Dito isto, percebe-se que os verdadeiros percursores foram Laborinho Lúcio e Mário Mendes que intuíram que com a multiplicação dos órgãos de comunicação social nada seria como dantes.

A Justiça, como pilar do Estado de Direito, deve estar na comunicação social, sem subterfúgios, ou deve situar-se à margem, até para não expor as suas fragilidades?

Claro que deve estar na comunicação social. Os Tribunais são instituições democráticas e transparentes. Nada ali se passa de clandestino. A cultura, ainda dominante, do amor ao silêncio vem de uma longa história de indiferença que só contribui para lançar dúvidas sobre o sério e honesto trabalho que ali é feito.

O crime e a Justiça nunca tiveram tanta visibilidade como agora. Como comenta a proliferação de crimes de natureza passional e de carater fútil? Parece que matar tornou-se algo banal…

A visibilidade do crime está associado ao interesse editorial, e do público, por estes temas. Não significa que a criminalidade aumentou. Daí que as recorrentes notícias sobre violência doméstica não sejam uma novidade criminal. São a expressão visível de atos criminosos que durante décadas viveram escondidos e presos a preconceitos de ordem moral e cultural.

A Justiça portuguesa tem sido sujeita a múltiplas provas de vida. Resistiu ao processo Casa Pia. Resistirá se o ex-primeiro ministro, José Sócrates, não for condenado no seguimento da investigação da «Operação Marquês»?

A Justiça não depende de casos isolados. São milhares de casos que constituem o universo judiciário. Se, de um momento para o outro, o sistema entrasse em falência seria por não aplicar sentenças, acórdãos em todos os tribunais do país. A verdadeira Justiça, ao contrário do que é divulgado, não se esgota na decisão de um procurador ou de uma polícia. Apenas fazem parte de um caminho que tem como destino o julgamento, aí sim, o verdeiro lugar onde se percebe que este processo foi justo ou foi ineficaz.

Sobre os timings da Justiça, é comum ouvir-se falar em «cabalas» e que «não há coincidências». Existe politização e/ou partidarização da Justiça?

São lugares comuns de quem procura coincidências, cultiva conspirações e gosta de soltar a imaginação. Não creio nessa partidarização da Justiça.

Na sua coluna dominical no «Correio da Manhã» escreveu um artigo a que deu o nome de «Democracia algemada». É o povo que ainda tem as chaves para libertar o regime?

Será sempre o povo. Mas um povo com memória, com leitura crítica da vida, que não se submeta aos mecanismos de tutela e caciquismo gerados pela perpetuação dos mesmos poderes.

Foi autarca em Santarém. A política deixou-lhe saudades ou saiu desiludido, convicto que é um território para profissionais?

O serviço público como autarca deixou-me saudades. É uma atividade muito intensa e que exige muito de qualquer cidadão com essas funções. Da política, não. Nem saudades, nem boas lembranças. É um território de fraca gente, minada por interesses pessoais, onde vale tudo, desde a ausência de carácter até à ausência de escrúpulos.

A política pode ser mais agressiva do que a polícia?

É muito mais agressiva e sem regras. As piores pessoas que conheci, ao longo da minha vida, amorais e sem pingo de princípios, estão no jogo político-partidário. Prendi centenas de criminosos. Muitos por crimes horríveis. Nunca conheci nenhum que fosse tão amoral como meia dúzia ou uma dúzia de tipos que encontrei na política.

No seu último romance, «Dia dos Milagres», faz uma viagem aos últimos dias do regime filipino, que terminaram a 1 de dezembro de 1640. Neste momento, faz mais sentido do que nunca falar-se em soberania ameaçada, com Bruxelas e Berlim a ditarem, em grande medida, o nosso rumo?

O 1 de dezembro de 1640 é uma data fundadora, infelizmente, muito maltratada pela política caseira. A Esquerda via nela um símbolo do Estado Novo. A Direita assassinou o feriado. Uma infâmia! Ponho as coisas nestes termos. Hoje, falam português cerca de 250 milhões de pessoas. É o maior ativo que Portugal entregou à Humanidade. Se não tivesse havido o golpe vitorioso referido, hoje a nossa Língua teria a dimensão do basco ou do catalão porque seria uma segunda Língua, e Portugal uma província espanhola que falava dominantemente castelhano. É esta Pátria imensa de que falava Pessoa. Quanto à soberania, hoje não é diferente de ontem. Fomos sempre mais instrumento dos poderosos do que donos dos nossos destinos, com algumas exceções históricas.

É presidente da Sociedade da Língua Portuguesa. Recentemente escreveu o seguinte: «Um governo culto perceberia que cada tostão gasto a divulgar o português é um investimento no futuro», referindo-se ao desprezo pela cultura e pela língua de Camões. Um povo inculto e amorfo é um povo menos reativo à mudança?

É um povo menos reativo à necessidade de crescer mais, de competir mais, de assumir com consciência os seus atos individuais e coletivos. Enquanto a cultura for tratada como um epifenómeno, e não como estrutura essencial do desenvolvimento, não passaremos desta cauda da Europa, subdesenvolvidos e submetidos.

No que diz respeito à educação, e servindo-se da sua experiência como docente universitário, é notório que se progrediu, mesmo sem ovos para omeletes, no ensino superior e na investigação, mas que no primeiro ciclo e ensino secundário as carências e fragilidades, tanto de alunos como de professores, são imensas. Para quando um sistema de ensino, em todos os patamares, capaz, competitivo e que forneça as bases para uma progressão académica sólida e sustentada?

Quando a Escola for conscientemente assumida como objetivo fundamental na organização do Estado e do projeto de país que queremos. Não vai ser nos próximos anos. Não temos cultura cívica, nem democrática para chegar a este objetivo com convicção. Quer no que respeita aos dirigentes, quase todos meros gestores de rotinas, todos eles incapazes de pensar um Portugal culto, porque eles próprios são incultos. As universidades escapam a este pesadelo porque vivem num outro universo de desafios onde o conhecimento e o saber são fator de aproximação à escala mundial.

Uma pergunta final para concluir esta nossa entrevista. Este país, onde nasceram os seus três filhos e os seus três netos (o seu maior legado, como faz questão de enfatizar) tem futuro?

Claro que tem futuro. Tem oito séculos. Sobreviveu a todas as tempestades e tormentos. Temos uma identidade própria e uma forma de estar que com mais pobreza ou menos pobreza, sabemos sobreviver à (des)esperança.

Nuno Dias da Silva
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