Mia Couto, Escritor
A escola não acompanhou as mudanças do mundo
O segundo volume da
trilogia "As areias do imperador" foi o mote para uma entrevista a
um dos mais importantes escritores em língua portuguesa. Mia Couto,
em discurso direto, fala sobre África, a lusofonia, a tecnologia, a
globalização e o ensino.
"Mulheres
de cinza" foi o primeiro volume de uma trilogia centrada nos
últimos anos do Estado de Gaza, o império que Ngungunyane -
conhecido em Portugal como Gungunhane - liderou no sul de
Moçambique, no final do século XIX. Agora lança "A espada e a
azagaia", a segunda parte. Este é o mais ambicioso projeto
ficcional da sua carreira?
Sem dúvida. Quando iniciei este
projeto não tinha a noção do quanto é que ele iria exigir em termos
de tempo e de pesquisa.
Este
segundo volume, até pelo título, é mais bélico que o
primeiro?
É verdade. O primeiro volume teve
como intenção apresentar aquilo que era o quadro humano e
geográfico, no fundo, fornecer o contexto ao resto da história. E
também anunciar aquilo que se iria desenrolar no futuro. Mas agora
as coisas acontecem mesmo. Os confrontos militares e as grandes
batalhas, a derrocada do império, a captura do imperador
Gungunhane, surgem em força, indo ao encontro da necessidade de
incluir nesta narrativa uma dinâmica de ação que não estava na
primeira. Contudo, o traço do livro é o relato de uma história de
amor em tempo de guerra.
Diz que
este livro é um contributo para a dignificação de Moçambique. Em
que medida?
No sentido em que dignifica os
moçambicanos que compõem Moçambique e tem a intenção de tornar
visível o mosaico que é aquele país. É uma nação recente, que está
ainda a ser construída como um projeto e em cima de nações que já
existiam. Portanto, como costurar esta diferença? Como unificar,
sem anular o outro ou colocá-lo num plano secundário? É um enorme
desafio.
Estes
seus dois últimos livros surgem numa altura em que a tensão volta a
apoderar-se de Moçambique. Foi público que revelou ao presidente
moçambicano que temia que estas obras literárias podiam «despertar
fantasmas». Os seus receios confirmaram-se?
Antes de mais devo ressalvar que
essa conversa com o presidente Nyusi aconteceu durante o período da
pesquisa, e é preciso referir que pesquisar em Moçambique é uma
realidade completamente diferente da pesquisa que fiz do lado
português. Do lado português existe o registo escrito desta
história e há muita documentação, muita dela escrita com qualidade,
quase literária, nomeadamente por parte dos oficiais portugueses.
Do lado moçambicano o registo existente era oral e daí a
necessidade de fazer entrevistas com pessoas que ainda têm ecos
desse período. E quase sempre me diziam, «não te metas nisso»,
advertindo-me que esta investigação ia levantar os tais
fantasmas.
Mas o
presidente acabou por encorajá-lo a prosseguir?
O diálogo aconteceu poucos dias
antes dele tomar posse. Ele perguntou--me o que eu estava a
escrever e eu confessei que estava com algum receio. Ao que ele
respondeu: «antes despertarmos nós os fantasmas que eles nos
despertem a nós». E tinha toda a razão. A literatura permite que se
olhe sem culpa para esse passado em que houve, dentro de
Moçambique, vencedores e vencidos.
Parte do
primeiro livro foi escrito num castelo em Itália, já para o segundo
volume viajou até aos Açores, mais concretamente até à ilha
Terceira, onde vivem muitos descendentes do imperador. Chegou a
travar conhecimento com algum deles?
Não cheguei a conhecer. Havia
quatro africanos na Terceira: um era o próprio Gungunhane, que
deixou descendência em Portugal continental, onde residem netas e
bisnetas. E havia outro que, esse sim, deixou descendência na
Terceira e também no território continental. Mas pude constatar que
se desenharam muitas histórias de amor e paixão, mesmo num contexto
de exílio e de guerra.
Esta necessidade de ir ao
terreno é a faceta de biólogo de formação que emerge na conceção
dos seus livros?
Não tanto. É a necessidade de
alimento que me faz ir ao terreno. O escritor é um escutador. Eu
preciso de ser estimulado, preciso de receber sugestões daquilo que
é uma boa história. Os moçambicanos são bons contadores de
histórias, muito devido ao facto de viverem no mundo da oralidade,
eminentemente rural.
Já sabe
onde vai escrever o último capítulo da trilogia?
Ainda não, só tenho uma vaga
ideia, mas será fora do meu país. O escrever fora de Moçambique
dá-me uma vantagem porque a realidade local é muito intensa e
apelativa, por vezes dramática, que aconselha a uma distância para
não ser absorvido pelo quotidiano.
«As
guerras são tapetes. Por debaixo deles se ocultam as imundícies dos
poderosos» é a mensagem que deixa na contra-capa do livro. É uma
mensagem também para os poderosos que mandam no mundo?
Com certeza. Veja o que aconteceu
no Iraque, por exemplo. Como se inventou um motivo para fazer uma
guerra, invadindo um território soberano. E isso foi o "tapete",
debaixo do qual se esconderam várias coisas. A intranquilidade
permanente em que vive o Médio Oriente relaciona-se com os
interesses estratégicos ligados ao petróleo e à situação
privilegiada de alguns países.
Estamos perante coisas que nos
parecem muito longínquas, como seja a Rússia dos czares ou a
Alemanha como uma grande potência que estrutura toda a Europa. Isto
são fenómenos que ciclicamente surgem e ressurgem. Não são
propriamente novos.
Este seu
livro é uma crítica aos senhores da guerra?
Sem dúvida. Os senhores que fazem
a guerra nunca têm rosto e nunca aparecem. Você sabe quem são os
donos da indústria automóvel, da indústria informática e da Apple,
mas não conhece o rosto e a identidade dos donos da grande
indústria do armamento.
E que
elegem muitos dos poderosos deste mundo…
Sim. Esta entrevista acontece no
dia em António Guterres foi formalmente designado novo
secretário-geral da ONU. Se a estrutura das Nações Unidas se
mantiver intacta e não se questionar como é que o Conselho de
Segurança tem na sua composição cinco das maiores potências que são
fabricantes de armas e que são responsáveis por discutir a paz no
mundo, não sei como será. Acho que algo para mudar terá de ser
abalado.
O que
quer dizer é que os líderes políticos com rosto estão manietados na
sua ação?
Não é apenas na decisão de fazer
ou não a guerra. É principalmente nas decisões políticas e
económicas. Em que nações se mantém a soberania dos dirigentes
nacionais? Tenho dificuldade em responder.
Cá também nos queixamos que a
nossa soberania está hipotecada e nas mãos de Bruxelas…
E porventura não são decididas em
Bruxelas. Mas é esta ausência de um rosto que é mais inquietante.
Quando era adolescente e era militante político, havia um nome. Era
fácil saber onde estava o grande inimigo. Agora o inimigo tornou-se
muito mais difuso. Transformou-se num sistema, que é global.
«O
português do Brasil vai dominar», disse numa entrevista recente.
Pensa que o poder económico e cultural do maior país do mundo a
falar a língua de Camões vai prevalecer?
Vai prevalecer, no sentido em que
os portugueses terão a sua variante, os moçambicanos a sua, os
angolanos a sua, etc. Não no sentido de fazer dissolver tudo numa
massa homogénea. Repare, eu viajo para qualquer país do mundo e se
tenho de procurar um serviço de um tradutor ou um intérprete
aparece-me sempre um brasileiro. Muita gente que está a estudar
português, sejam europeus, chineses ou de outro continente, quando
questionados sobre a variedade de português que estiveram a
estudar, a resposta que surge é sempre do Brasil. Não temos que
ficar assustados com isso. Aquela também não é a nossa
língua?
O novo
acordo ortográfico é uma vitória dos brasileiros?
Não tenho nenhuma preocupação com
ele. Não sou adepto, não sou a favor. O meu computador diz que está
mal e eu corrijo-o a seguir. Moçambique ainda não aderiu ao acordo,
por isso, também é uma questão que não se coloca para mim. Mas
creio que seria mais importante debater outras coisas relacionadas
com a língua.
Como por
exemplo?
Porque é que estamos tão
afastados uns dos outros. Será que os portugueses conhecem bem os
novos escritores brasileiros que estão a surgir? Não me parece. Da
mesma forma que os brasileiros desconhecem o que se está a passar
em Portugal em termos de literatura, excetuando que conhecem dois
ou três autores. Sabemos quem está a escrever o quê em Angola? Não.
E só estou a falar no domínio da literatura. O acordo ortográfico
não vai resolver este problema, por isso, não é importante.
A língua,
que devia ser fator de proximidade, está a afastar?
O problema não é a língua, são os
interesses económicos e as estratégias que têm cada um dos países.
Se o Brasil está virado para o Mercosul, o que é que ele tem a
ganhar com um projeto no âmbito da lusofonia?
As relações entre Portugal e
Angola estão a um nível muito tenso. Pensa que há algum passado mal
resolvido?
Não gostaria de falar de Angola,
mas quase sempre são os fatores de natureza económica que provocam
essas zangas de primos.
Dizia Fernando Pessoa, que
Mia Couto considera o seu «guia» e que o «ajudou a resolver-se
internamente», que a sua pátria era a Língua Portuguesa. Cidadãos e
governantes têm a real dimensão do património inestimável que
constitui este recurso intangível?
Essa é uma pergunta complicada. O
país de onde eu sou originário, Moçambique, tem 25 línguas que não
são o português. Repare que a maior parte dos moçambicanos não tem
o português como língua materna. Se esta política a que dão o nome
de lusofonia esquece ou marginaliza esta gente eu não tenho nenhuma
simpatia por esse projeto. Chega a ser perigoso se as relações
entre estes países forem construídas no pressuposto falso que
existe só uma língua.
O espaço
lusófono foi abalado com a entrada recente da Guiné Equatorial para
a CPLP, um país que tem um ditador como governante, mas com muitos
recursos petrolíferos. A identidade da lusofonia foi, de alguma
forma, desvirtuada?
Não encontro nenhuma explicação
lógica para incluir a Guiné Equatorial na CPLP. Talvez com estatuto
especial, de simpatizante, etc. Mas antes de falar sobre quem adere
à CPLP, talvez seja melhor perguntar: a CPLP existe? Está
viva?
Qual a relevância para a
lusofonia da vitória de António Guterres, um português, na corrida
a secretário-geral da ONU?
Acho que é importante porque nos
sentimos representados - e penso que posso falar pelos países de
língua portuguesa e pelos meus compatriotas - por alguém que pode
fazer a defesa de uma outra visão do mundo, independentemente de
ser de língua portuguesa, até porque deu prova de uma eficiência
enorme como comissário dos refugiados.
África é
o eterno continente esquecido com fome, guerras e doenças, sendo
alvo da cobiça pelos seus recursos energéticos. Para quando uma
África exportadora de pensamento e tendências de vanguarda?
África apresenta-se da forma como
descreve, porque também é a forma como é vista. Os jornais e as
televisões olham para África como o continente que vende pela
desgraça, ou seja, pela guerra e pela fome. Alguém se vai
interessar se eu disser que determinado país africano teve sucessos
na educação ou na saúde? Quem é que pára para ler uma notícia
dessas? Não há uma preocupação de procurar uma outra África. Essa
outra África está lá, está viva, tem gente que pinta, escreve, faz
música, teatro, etc. A África é desconhecida porque são os
africanos que não exportam essa imagem de si próprios. Eu não sou o
único escritor moçambicano no ativo. Há vários bons escritores, mas
são pouco conhecidos e não vejo grande vontade de os
conhecer.
O triunfo
de José Saramago no Nobel da Literatura, em 1998, constituiu
impulso à muita ignorada literatura nacional. Em 2013, Mia Couto
ganhou o «Nobel» americano da literatura. Ainda sonha com uma
distinção da academia sueca ou é muito difícil romper a hegemonia
anglo-saxónica?
Não penso sequer e seria uma
terrível ousadia pensar que estou candidatável.
Essa
distinção não mudaria a sua forma de escrever?
Não mudaria nem a forma de ser,
nem de escrever. O que mudaria, porventura, seria a conta
bancária.
No mundo
atual impera a narrativa do medo e a falência de soluções políticas
para por cobro a graves problemas sociais. Na sua opinião, o que é
que pode salvar um mundo à deriva? A literatura?
Não, mas pode ajudar. Está a
globalizar-se e a generalizar-se um certo cansaço e um certo
desespero. Não há país imune e o medo está por toda a parte.
Contudo, estou otimista que esta crise vai acabar por produzir
soluções.
Falta
globalizar a esperança?
Eu acho que o outro lado do
cansaço vai fabricar soluções e uma esperança.
Foi jornalista, é escritor, mas a
paixão é, desde sempre, a biologia e as questões relacionadas com o
ambiente e os ecossistemas.
Que
recordações tem da nobre e difícil arte de ser professor e de
ensinar futuras gerações?
Foi um período muito feliz da
minha vida em que travei contacto com a população estudantil de
Moçambique e que me fez evoluir muito como ser humano. A
possibilidade de ensinar, aprendendo e aprender, ensinando.
Não deu
aulas na Europa, mas deu palestras a estudantes. Encontra
diferenças?
Muitas, especialmente na atitude.
Quando venho a uma escola na Europa os alunos estão muito mais
descontraídos. A escola para eles já não é uma conquista, é uma
chatice. Em Moçambique, você não ouve uma mosca na sala de aula. A
escola para esses meninos é um momento quase religioso. E nas
condições mais difíceis, muitas vezes sem carteiras, sem material,
chove lá dentro, etc. Dá muito prazer desenvolver essa relação com
quem quer verdadeiramente aprender.
E o
ensino pode mudar o mundo?
Acho que é preciso repensar
profundamente a escola. Esta escola não acompanhou as mudanças
profundas que o mundo está a sofrer. Já no tempo em que estudava eu
me interrogava o que ia mudar na minha vida se soubesse as equações
de segundo grau, as derivadas, etc. Era ensinado de forma tão
mecânica que não me fazia apaixonar pelo assunto. O professor que
não ensina de forma apaixonada nunca vai transmitir saber nenhum. O
professor deve fazer perceber aos alunos que está ali não para
cumprir uma função profissional, mas porque essa é a sua vocação e
ele ama aquilo que faz.
Para
finalizar, uma questão sobre a ideologia tecnológica, que domina os
tempos em que vivemos. De que forma a internet, nomeadamente os
e-books e os tablets, e a consequente desmaterialização literária,
são uma ameaça potencial e o caminho irreversível para o fim dos
livros e dos jornais em papel?
Não me preocupa muito que o livro
surja num formato ou noutro. Não é a invasão tecnológica que me
inquieta, mas sim a ausência desta presença humana e da história
que é contada pela mãe, pelo pai e pela avó. Preocupa-me esta
demissão dos laços familiares que entregam para uma escola, ou
outra entidade qualquer, o dever de criar. O fascínio pela presença
do outro está a perder-se. No fundo, não é o excesso tecnológico
que me preocupa, é sim o défice do lado humano.
É
frequente ver jovens e menos jovens a sorrir para os telemóveis. É
mais um inquietante sinal dos tempos?
Eles que peçam ao telemóvel que
os abrace…
Nuno Dias da Silva
Pedro Soares