Entrevista

Carlos Mineiro Aires, Bastonário da Ordem dos Engenheiros
«O país corre o risco de ter de importar engenheiros civis»

PJN_5053.jpgHá engenharia em tudo o que fazemos no dia a dia. Pese embora ser uma profissão muito procurada, o Bastonário defende que são muitos os desafios que se colocam a estes profissionais altamente qualificados e cada vez mais especializados.

Pelo segundo ano consecutivo, os três primeiros cursos com notas de último colocado mais elevadas no acesso ao ensino superior são das engenharias. É um sinal crescente da importância das engenharias na sociedade?
Temos vindo a assistir a uma procura crescente dos cursos de engenharia pelos jovens e, por outro lado, os cursos de engenharia que já tinham médias de entrada elevadas, viram aumentar o grau de exigência, tornando-se cursos de excelência cada vez mais procurados. A oferta e a qualidade dos alunos geraram nichos de excelência que surgiram automaticamente e não intencionalmente. Está a criar-se uma competência que eu considero saudável. Não defendo que o critério seja unicamente as notas, mas a haver algum, creio que é o mais justo.

Em jovem, queria ser médico, mas acabou por seguir engenharia civil. Como é que aconteceu essa reviravolta?
No meu tempo fazia-se aptidão à universidade e fiz a ambas: medicina e engenharia. Entrei para as duas e à última da hora decidi enveredar pela engenharia. Cheguei a ouvir de várias pessoas que teria dado um bom médico, mas nunca chegarei a saber a verdade. Mas mantenho uma veia de médico muito ativa, porque tenho imensa curiosidade em perceber como funciona o corpo humano e como são usados os medicamentos, até porque compreendo os processos químicos razoavelmente.

O que pende mais na hora de escolher as engenharias: a vocação ou a elevada taxa de empregabilidade na área?
Para começar não devemos confundir as engenharias com a engenharia civil. A engenharia civil ainda passa por um mau bocado por causa da crise que afetou e ainda afeta o setor da construção, quando era uma especialização de pleno emprego e os cursos tinham procura, hoje não acontece isso.
Na primeira fase de acesso ao ensino superior as quatro maiores universidades conseguem encher os cursos de engenharia civil, enquanto, nomeadamente, nos politécnicos os cursos não conseguem ser preenchidos. Esta parte da colocação de candidatos nos cursos de engenharia é monitorizada ao pormenor pela nossa Ordem, porque temos de garantir que os engenheiros não faltam ao país.

E teme que isso possa um dia acontecer?
Infelizmente, estamos a assistir a isso. Este ano na engenharia civil já se registou uma ligeira inversão da tendência e o país corre o risco daqui a alguns anos de importar engenheiros civis. Se houver um crescimento económico que permita voltar a níveis de investimento aceitáveis, obviamente que vão faltar engenheiros civis. Mas é bom que se diga que nunca voltaremos aos níveis de pleno emprego e de abundância do passado nesta área, em que havia trabalho para as empresas portuguesas e estrangeiras a operar cá.

Mas a engenharia já não é só ao nível das obras, galgou para campos diversos. Pode-se dizer que há engenharia em tudo o que nos rodeia?
Estamos a assistir a novos cursos de engenharia ligados às tecnologias, à aeroespacial, biomédicas, etc. A engenharia tem o encanto de ninguém conseguir perspetivar quais é que vão ser as novas especialidades daqui a uma década.

Em que domínios do nosso dia a dia é que as engenharias convencionais e emergentes estão presentes?
A engenharia só se nota que falta quando as coisas correm mal, mas na verdade está presente em tudo o que fazemos. Desde que acordamos, quando toca o despertador, acendemos a luz, vamos à casa de banho, lavar a cara e os dentes. Tudo é engenharia. Mas não acaba aqui. Na rua, o carro é engenharia, os semáforos são engenharia, o elevador é engenharia. Se algo corre mal, a culpa é da engenharia. As pessoas habituaram-se a ter tudo ao alcance da mão e agora com as tecnologias e as aplicações no telemóvel já se faz tudo e mais alguma coisa. Muitos não imaginam a invenção, a investigação e a ciência por detrás de um aparelho minúsculo que todos manejam. Tudo isto se banalizou de tal modo, que acaba por desvalorizar-se a engenharia como área fundamental da nossa sociedade.

O lado perverso da engenharia é o da destruição de empregos. Concorda com o presidente do Instituto Superior Técnico, também ele engenheiro, que diz que «a revolução tecnológica das próximas décadas vai destruir muitos empregos», podendo chegar aos 50 por cento?
Essa é a face da nova revolução, a chamada 4.0, que merece muita discussão e divisão de opiniões. Uns defendem que os robôs vão precisar apenas de um ser humano para vigiar a sua função, enquanto outros preconizam que haverá um período de adaptação e depois criar-se-ão empregos novos. Mas há um aspeto que me preocupa: a robotização tem em vista maximizar o lucro e baixar os custos. A pergunta que eu faço é a seguinte: a riqueza gerada pela robotização é para distribuir e para garantir a responsabilidade social relativamente às pessoas que vão ser afetadas por este processo? Este é um paradigma novo, uma porta em que se entra.
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Está apreensivo?
Francamente. Mas não nos podemos esquecer que uma grande parte dos mercados onde as empresas portuguesas operam - estou a falar nomeadamente em África e na América do Sul - necessitam é de engenheiros 4x4, ou seja todo o terreno, em oposição aos 4.0 de que tanto se fala. Há carências de abastecimento de água, saneamento, escolas, etc. Isto não se faz com robotização, mas sim com a intervenção da engenharia, em especial as engenharias estruturais.

Nem de propósito, vão organizar em Coimbra, em novembro, o XXI Congresso da Ordem dos Engenheiros, que será subordinado ao tema  «Engenharia e transformação digital».  Os desafios da educação e a qualificação é um dos painéis do congresso. Adequar o ensino superior ao meio empresarial é uma preocupação da vossa Ordem?
A Ordem é uma associação profissional e tem uma visão que defende que as escolas têm de dar resposta às exigências dos mercados. E temos bons exemplos em Portugal,  nomeadamente ao nível  dos politécnicos, por estarem mais regionalizados e direcionados para os problemas locais.  É o caso, conhecido, de Leiria, da produção da indústria de moldes. Posso dizer que atualmente a procura que existe de engenheiros  para as áreas tecnológicas é tão grande que não há capacidade de resposta em Portugal. Há centros de excelência que aqui se instalam e que pedem duas centenas de profissionais de uma assentada. Isto é sinal de que as escolas estão a fazer essa adequação e a formar pessoas capazes de dar resposta aos novos desafios.
Mas é preciso não esquecer outro aspeto crucial: a formação contínua ao longo da vida. Uma pessoa que tira um curso em determinada área da engenharia, se não fizer formação permanente, arrisca-se a estar obsoleto passado dois anos  e a ser facilmente descartável no mercado de trabalho.

Mas mantêm-se os casos dos jovens que ainda não terminaram os cursos e são imediatamente cobiçados pelos colossos da tecnologia mundial…
Infelizmente, sim. A Ordem organiza feiras de emprego para recrutar jovens profissionais para países estrangeiros, nomeadamente Alemanha, Dinamarca, Noruega, etc. Num passado recente a procura  por parte dos jovens era muito grande, mas esperemos que vá baixando, à medida que a oferta de emprego se recupere em Portugal. A questão básica é que não podemos confundir emprego com uma remuneração adequada. A empregabilidade tem que corresponder a uma remuneração digna, ainda para mais estamos a falar de profissões altamente qualificadas. Ainda há dias, vi um anúncio em que se pedia um engenheiro com 10 anos de experiência, altamente qualificado numa ferramenta informática, e a oferta monetária era 570 euros mensais, mais subsídio de refeição. A Ordem considera indigno e defende que este caso, em particular, devia merecer uma queixa das entidades competentes que zelam por estes assuntos.

O que pode fazer a Ordem para evitar situações destas?
Já alertámos, mas pouco ou nada acontece. Os nossos membros questionam, muitas vezes, por que é que não fazemos como os médicos ou os enfermeiros: greves, reivindicações e outras ações. A resposta é porque nós não temos um empregador único como eles têm. Se eu convocasse uma manifestação para a porta do Parlamento corria o risco de ir sozinho.  E há outra questão: a Ordem não é um sindicato. Infelizmente, muitas vezes, confunde-se o papel regulador com o papel sindical.

A Ordem deu entrada no Parlamento com um pedido de iniciativa legislativa que permita equiparar os licenciados «pré-Bolonha» a mestres «pós-Bolonha». Quer explicar a urgência desta medida?
Antes do processo de Bolonha, todos os engenheiros ou tiveram 5 ou 6 anos de formação académica. O que faz com que atualmente os quadros de topo das empresas sejam todos engenheiros de 5 ou 6 anos. Com o processo de Bolonha equipararam estes engenheiros aos novos licenciados na era Bolonha, ou seja, com 3 anos. Acontece que estão todos em pé de igualdade quando concorrem para funções públicas o que é da maior injustiça, porque são situações incomparáveis. No estrangeiro, estes engenheiros formados antes de Bolonha são «licenciados», o que corresponde a 3 anos, o que os afasta dos concursos por alegadamente não serem mestres.

O que preconizam em concreto?
Em defesa da economia nacional, preconizamos que deve ser seguido o exemplo espanhol. Ou seja, a publicação de um decreto-lei em que se afirme que os atuais mestrados de Bolonha estão equiparados, para todos os efeitos, aos engenheiros com qualificações antigas, de 5/6 anos. Este pedido de iniciativa legislativa foi apresentado no Parlamento e já fizemos uma exposição ao ministro da Ciência e do Ensino Superior, que considero um dos "pais" deste erro. Espero que Manuel Heitor corrija este erro, para o qual teve uma importante quota parte. Manter esta questão é eternizar uma grande injustiça, desqualificando pessoas e fazendo a economia nacional perder competitividade.PJN_5093.jpg

Foi um dos integrantes da comitiva de 10 engenheiros que se deslocou à central de Almaraz, cuja visita foi cancelada pelos responsáveis da central, alegando que pretendiam «investigar» as condições de prolongamento da central e a construção do aterro nuclear. Quer explicar porque diz que esta decisão espanhola foi um «mau serviço à engenharia»?
Esta visita foi organizada em articulação entre duas ordens profissionais de engenharia de Portugal e Espanha. Estava tudo combinado, quando na véspera recebemos um telefonema a cancelar a visita. Como já tínhamos tudo marcado em termos de alojamento, apresentámo-nos no local e fomos identificados pela Guardia Civil. Não íamos propriamente fazer uma inspeção ao local, o objetivo era uma visita e aferir se a intenção dos responsáveis era a construção de um depósito de resíduos, com vista a prolongar o ciclo de vida da central de Almaraz. Este equipamento está instalado na margem esquerda do Tejo e fica muito próximo da nossa fronteira, o que implica impactos transfronteiriços. Seria de bom tom, até em nome da boa vizinhança entre os dois países, nomear um observador permanente do lado português que pudesse acompanhar a exploração e avaliar o grau de perigosidade de uma central desta natureza.

O que querem esconder os responsáveis espanhóis?
Na verdade pretendem esconder que o seu objetivo passa por prolongar o ciclo de vida da central. Localmente é uma infraestrutura que dá emprego a muita gente, mas a nível nacional é muito contestada. Mas a Espanha não abdica desta central nuclear para manter o diagrama de base da produção de energia elétrica. Sei que estão a investir muito em eólica e solar, e espero que um dia estas soluções sejam desativadas.

Sempre esteve ligado à área ambiental, tendo presidido ao Instituto da Água e à Comissão Nacional das Grandes Barragens. Como vê a atual situação de seca e os seus efeitos para a economia nacional?
Na minha vida passei de tudo, de grandes cheias a secas severas. Temos de perceber que vivemos num país que tem um clima tipicamente mediterrânico, em que alternamos períodos de seca e estiagem prolongada, com períodos de grandes chuvadas. A maior parte das barragens do Alentejo está com níveis de água muito abaixo para a época do ano e isto coloca questões, não só ligadas à agricultura, ao gado, etc. Mas o problema de abastecimento às populações pode assumir contornos muito sérios. Há cidades do Alentejo que podem ficar sem água. Imagine fazer o abastecimento a localidades porta a porta ou com cisternas? É muito complicado.

O último verão foi uma vez mais trágico para a floresta nacional. É desta que se vai repensar o ordenamento do território em termos de mancha verde?
Sou como S.Tomé, ver para crer. Para além da área inusitada que ardeu, houve um facto muito penalizador que foi a morte de mais de seis dezenas de pessoas [A entrevista foi realizada antes dos incêndios de 14 e 15 de outubro, que fizeram pelo menos mais 43 mortos]. O problema está identificado, os contributos foram dados - inclusive da nossa Ordem - a questão é transpor da teoria para a prática. Neste país, as intenções sempre foram uma coisa e a operacionalização outra, completamente distinta. Quero recordar que nos últimos anos foram destruídas quase todas as estruturas vocacionadas para a gestão dos assuntos relacionados com a floresta. Tudo o que era público era para deitar abaixo. Não há formação de engenheiros florestais em Portugal, por exemplo. Há problemas, muito sérios, que têm de ser enfrentados pelo Estado. O primeiro deles, e um dos mais graves, é que 98 por cento da floresta do país é privada. Se não forem tomadas medidas duras para obrigar os privados a agirem, dificilmente se fará diferente no futuro. É possível? Haja estratégia e, sobretudo, vontade. A floresta é um ativo, não pode ser um problema.

Nuno Dias da Silva
Paulo Neto
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
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