Carlos Mineiro Aires, Bastonário da Ordem dos Engenheiros
«O país corre o risco de ter de importar engenheiros civis»
Há engenharia em tudo o que fazemos no
dia a dia. Pese embora ser uma profissão muito procurada, o
Bastonário defende que são muitos os desafios que se colocam a
estes profissionais altamente qualificados e cada vez mais
especializados.
Pelo segundo ano consecutivo, os três primeiros cursos com
notas de último colocado mais elevadas no acesso ao ensino superior
são das engenharias. É um sinal crescente da importância das
engenharias na sociedade?
Temos vindo a assistir a uma procura crescente dos cursos de
engenharia pelos jovens e, por outro lado, os cursos de engenharia
que já tinham médias de entrada elevadas, viram aumentar o grau de
exigência, tornando-se cursos de excelência cada vez mais
procurados. A oferta e a qualidade dos alunos geraram nichos de
excelência que surgiram automaticamente e não intencionalmente.
Está a criar-se uma competência que eu considero saudável. Não
defendo que o critério seja unicamente as notas, mas a haver algum,
creio que é o mais justo.
Em jovem, queria ser médico, mas acabou por seguir
engenharia civil. Como é que aconteceu essa
reviravolta?
No meu tempo fazia-se aptidão à universidade e fiz a ambas:
medicina e engenharia. Entrei para as duas e à última da hora
decidi enveredar pela engenharia. Cheguei a ouvir de várias pessoas
que teria dado um bom médico, mas nunca chegarei a saber a verdade.
Mas mantenho uma veia de médico muito ativa, porque tenho imensa
curiosidade em perceber como funciona o corpo humano e como são
usados os medicamentos, até porque compreendo os processos químicos
razoavelmente.
O que pende mais na hora de escolher as engenharias: a
vocação ou a elevada taxa de empregabilidade na
área?
Para começar não devemos confundir as engenharias com a engenharia
civil. A engenharia civil ainda passa por um mau bocado por causa
da crise que afetou e ainda afeta o setor da construção, quando era
uma especialização de pleno emprego e os cursos tinham procura,
hoje não acontece isso.
Na primeira fase de acesso ao ensino superior as quatro maiores
universidades conseguem encher os cursos de engenharia civil,
enquanto, nomeadamente, nos politécnicos os cursos não conseguem
ser preenchidos. Esta parte da colocação de candidatos nos cursos
de engenharia é monitorizada ao pormenor pela nossa Ordem, porque
temos de garantir que os engenheiros não faltam ao país.
E teme que isso possa um dia acontecer?
Infelizmente, estamos a assistir a isso. Este ano na engenharia
civil já se registou uma ligeira inversão da tendência e o país
corre o risco daqui a alguns anos de importar engenheiros civis. Se
houver um crescimento económico que permita voltar a níveis de
investimento aceitáveis, obviamente que vão faltar engenheiros
civis. Mas é bom que se diga que nunca voltaremos aos níveis de
pleno emprego e de abundância do passado nesta área, em que havia
trabalho para as empresas portuguesas e estrangeiras a operar
cá.
Mas a engenharia já não é só ao nível das obras, galgou
para campos diversos. Pode-se dizer que há engenharia em tudo o que
nos rodeia?
Estamos a assistir a novos cursos de engenharia ligados às
tecnologias, à aeroespacial, biomédicas, etc. A engenharia tem o
encanto de ninguém conseguir perspetivar quais é que vão ser as
novas especialidades daqui a uma década.
Em que domínios do nosso dia a dia é que as engenharias
convencionais e emergentes estão presentes?
A engenharia só se nota que falta quando as coisas correm mal, mas
na verdade está presente em tudo o que fazemos. Desde que
acordamos, quando toca o despertador, acendemos a luz, vamos à casa
de banho, lavar a cara e os dentes. Tudo é engenharia. Mas não
acaba aqui. Na rua, o carro é engenharia, os semáforos são
engenharia, o elevador é engenharia. Se algo corre mal, a culpa é
da engenharia. As pessoas habituaram-se a ter tudo ao alcance da
mão e agora com as tecnologias e as aplicações no telemóvel já se
faz tudo e mais alguma coisa. Muitos não imaginam a invenção, a
investigação e a ciência por detrás de um aparelho minúsculo que
todos manejam. Tudo isto se banalizou de tal modo, que acaba por
desvalorizar-se a engenharia como área fundamental da nossa
sociedade.
O lado perverso da engenharia é o da destruição de
empregos. Concorda com o presidente do Instituto Superior Técnico,
também ele engenheiro, que diz que «a revolução tecnológica das
próximas décadas vai destruir muitos empregos», podendo chegar aos
50 por cento?
Essa é a face da nova revolução, a chamada 4.0, que merece muita
discussão e divisão de opiniões. Uns defendem que os robôs vão
precisar apenas de um ser humano para vigiar a sua função, enquanto
outros preconizam que haverá um período de adaptação e depois
criar-se-ão empregos novos. Mas há um aspeto que me preocupa: a
robotização tem em vista maximizar o lucro e baixar os custos. A
pergunta que eu faço é a seguinte: a riqueza gerada pela
robotização é para distribuir e para garantir a responsabilidade
social relativamente às pessoas que vão ser afetadas por este
processo? Este é um paradigma novo, uma porta em que se
entra.
Está apreensivo?
Francamente. Mas não nos podemos esquecer que uma grande parte dos
mercados onde as empresas portuguesas operam - estou a falar
nomeadamente em África e na América do Sul - necessitam é de
engenheiros 4x4, ou seja todo o terreno, em oposição aos 4.0 de que
tanto se fala. Há carências de abastecimento de água, saneamento,
escolas, etc. Isto não se faz com robotização, mas sim com a
intervenção da engenharia, em especial as engenharias
estruturais.
Nem de propósito, vão organizar em Coimbra, em novembro, o
XXI Congresso da Ordem dos Engenheiros, que será subordinado ao
tema «Engenharia e transformação digital». Os desafios
da educação e a qualificação é um dos painéis do congresso. Adequar
o ensino superior ao meio empresarial é uma preocupação da vossa
Ordem?
A Ordem é uma associação profissional e tem uma visão que defende
que as escolas têm de dar resposta às exigências dos mercados. E
temos bons exemplos em Portugal, nomeadamente ao nível
dos politécnicos, por estarem mais regionalizados e direcionados
para os problemas locais. É o caso, conhecido, de Leiria, da
produção da indústria de moldes. Posso dizer que atualmente a
procura que existe de engenheiros para as áreas tecnológicas
é tão grande que não há capacidade de resposta em Portugal. Há
centros de excelência que aqui se instalam e que pedem duas
centenas de profissionais de uma assentada. Isto é sinal de que as
escolas estão a fazer essa adequação e a formar pessoas capazes de
dar resposta aos novos desafios.
Mas é preciso não esquecer outro aspeto crucial: a formação
contínua ao longo da vida. Uma pessoa que tira um curso em
determinada área da engenharia, se não fizer formação permanente,
arrisca-se a estar obsoleto passado dois anos e a ser
facilmente descartável no mercado de trabalho.
Mas mantêm-se os casos dos jovens que ainda não terminaram
os cursos e são imediatamente cobiçados pelos colossos da
tecnologia mundial…
Infelizmente, sim. A Ordem organiza feiras de emprego para
recrutar jovens profissionais para países estrangeiros,
nomeadamente Alemanha, Dinamarca, Noruega, etc. Num passado recente
a procura por parte dos jovens era muito grande, mas
esperemos que vá baixando, à medida que a oferta de emprego se
recupere em Portugal. A questão básica é que não podemos confundir
emprego com uma remuneração adequada. A empregabilidade tem que
corresponder a uma remuneração digna, ainda para mais estamos a
falar de profissões altamente qualificadas. Ainda há dias, vi um
anúncio em que se pedia um engenheiro com 10 anos de experiência,
altamente qualificado numa ferramenta informática, e a oferta
monetária era 570 euros mensais, mais subsídio de refeição. A Ordem
considera indigno e defende que este caso, em particular, devia
merecer uma queixa das entidades competentes que zelam por estes
assuntos.
O que pode fazer a Ordem para evitar situações
destas?
Já alertámos, mas pouco ou nada acontece. Os nossos membros
questionam, muitas vezes, por que é que não fazemos como os médicos
ou os enfermeiros: greves, reivindicações e outras ações. A
resposta é porque nós não temos um empregador único como eles têm.
Se eu convocasse uma manifestação para a porta do Parlamento corria
o risco de ir sozinho. E há outra questão: a Ordem não é um
sindicato. Infelizmente, muitas vezes, confunde-se o papel
regulador com o papel sindical.
A Ordem deu entrada no Parlamento com um pedido de
iniciativa legislativa que permita equiparar os licenciados
«pré-Bolonha» a mestres «pós-Bolonha». Quer explicar a urgência
desta medida?
Antes do processo de Bolonha, todos os engenheiros ou tiveram 5 ou
6 anos de formação académica. O que faz com que atualmente os
quadros de topo das empresas sejam todos engenheiros de 5 ou 6
anos. Com o processo de Bolonha equipararam estes engenheiros aos
novos licenciados na era Bolonha, ou seja, com 3 anos. Acontece que
estão todos em pé de igualdade quando concorrem para funções
públicas o que é da maior injustiça, porque são situações
incomparáveis. No estrangeiro, estes engenheiros formados antes de
Bolonha são «licenciados», o que corresponde a 3 anos, o que os
afasta dos concursos por alegadamente não serem mestres.
O que preconizam em concreto?
Em defesa da economia nacional, preconizamos que deve ser seguido
o exemplo espanhol. Ou seja, a publicação de um decreto-lei em que
se afirme que os atuais mestrados de Bolonha estão equiparados,
para todos os efeitos, aos engenheiros com qualificações antigas,
de 5/6 anos. Este pedido de iniciativa legislativa foi apresentado
no Parlamento e já fizemos uma exposição ao ministro da Ciência e
do Ensino Superior, que considero um dos "pais" deste erro. Espero
que Manuel Heitor corrija este erro, para o qual teve uma
importante quota parte. Manter esta questão é eternizar uma grande
injustiça, desqualificando pessoas e fazendo a economia nacional
perder competitividade.
Foi um dos integrantes da comitiva de 10 engenheiros que
se deslocou à central de Almaraz, cuja visita foi cancelada pelos
responsáveis da central, alegando que pretendiam «investigar» as
condições de prolongamento da central e a construção do aterro
nuclear. Quer explicar porque diz que esta decisão espanhola foi um
«mau serviço à engenharia»?
Esta visita foi organizada em articulação entre duas ordens
profissionais de engenharia de Portugal e Espanha. Estava tudo
combinado, quando na véspera recebemos um telefonema a cancelar a
visita. Como já tínhamos tudo marcado em termos de alojamento,
apresentámo-nos no local e fomos identificados pela Guardia Civil.
Não íamos propriamente fazer uma inspeção ao local, o objetivo era
uma visita e aferir se a intenção dos responsáveis era a construção
de um depósito de resíduos, com vista a prolongar o ciclo de vida
da central de Almaraz. Este equipamento está instalado na margem
esquerda do Tejo e fica muito próximo da nossa fronteira, o que
implica impactos transfronteiriços. Seria de bom tom, até em nome
da boa vizinhança entre os dois países, nomear um observador
permanente do lado português que pudesse acompanhar a exploração e
avaliar o grau de perigosidade de uma central desta natureza.
O que querem esconder os responsáveis
espanhóis?
Na verdade pretendem esconder que o seu objetivo passa por
prolongar o ciclo de vida da central. Localmente é uma
infraestrutura que dá emprego a muita gente, mas a nível nacional é
muito contestada. Mas a Espanha não abdica desta central nuclear
para manter o diagrama de base da produção de energia elétrica. Sei
que estão a investir muito em eólica e solar, e espero que um dia
estas soluções sejam desativadas.
Sempre esteve ligado à área ambiental, tendo presidido ao
Instituto da Água e à Comissão Nacional das Grandes Barragens. Como
vê a atual situação de seca e os seus efeitos para a economia
nacional?
Na minha vida passei de tudo, de grandes cheias a secas severas.
Temos de perceber que vivemos num país que tem um clima tipicamente
mediterrânico, em que alternamos períodos de seca e estiagem
prolongada, com períodos de grandes chuvadas. A maior parte das
barragens do Alentejo está com níveis de água muito abaixo para a
época do ano e isto coloca questões, não só ligadas à agricultura,
ao gado, etc. Mas o problema de abastecimento às populações pode
assumir contornos muito sérios. Há cidades do Alentejo que podem
ficar sem água. Imagine fazer o abastecimento a localidades porta a
porta ou com cisternas? É muito complicado.
O último verão foi uma vez mais trágico para a floresta
nacional. É desta que se vai repensar o ordenamento do território
em termos de mancha verde?
Sou como S.Tomé, ver para crer. Para além da área inusitada que
ardeu, houve um facto muito penalizador que foi a morte de mais de
seis dezenas de pessoas [A entrevista foi realizada antes dos
incêndios de 14 e 15 de outubro, que fizeram pelo menos mais 43
mortos]. O problema está identificado, os contributos foram dados -
inclusive da nossa Ordem - a questão é transpor da teoria para a
prática. Neste país, as intenções sempre foram uma coisa e a
operacionalização outra, completamente distinta. Quero recordar que
nos últimos anos foram destruídas quase todas as estruturas
vocacionadas para a gestão dos assuntos relacionados com a
floresta. Tudo o que era público era para deitar abaixo. Não há
formação de engenheiros florestais em Portugal, por exemplo. Há
problemas, muito sérios, que têm de ser enfrentados pelo Estado. O
primeiro deles, e um dos mais graves, é que 98 por cento da
floresta do país é privada. Se não forem tomadas medidas duras para
obrigar os privados a agirem, dificilmente se fará diferente no
futuro. É possível? Haja estratégia e, sobretudo, vontade. A
floresta é um ativo, não pode ser um problema.
Nuno Dias da Silva
Paulo Neto