Opinião

‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XXVI)
Primeira aula

luis-souta.jpegÀ memória do Prof. Jorge Listopad no Dia Mundial do Professor,

«Deixem-nos lá! Que importa!? - Eu sou diferente…»
(Sonetos, Domingos Monteiro, 1978: 41)

A primeira aula do ano escolar merecia-lhe preparação cuidada, mais do que qualquer outra. Então à turma do 1º ano de Educação Básica dava-lhe especial atenção. Naquele primeiro contacto, mais do que falar, queria ouvi-los (o indicador de género deveria estar no feminino, para estar conforme à realidade; os homens, nestes 40 anos de democracia e de políticas de igualdade, persistem em não se deixar atrair pelos cursos de professores, em especial os da 'infantil e primária'). Para a 1ª aula do 1º semestre, o Prof.S. seleccionou um corpus temático - escolas e crianças: uma vintena de reproduções de quadros de pintores conhecidos, de países e épocas distintos:
P. Bruegel 'O Burro na Escola' (1556), 'Brincadeiras de Crianças' (1560); Rembrandt 'Titus na Sua Carteira' (1655), W. Homer 'The Country School' (1871), 'The Noon Recess' (1873); A. Anker 'La Promenade Scolaire' (1872), 'L'École Communale' (1896); N. Rockwell 'Surprise' (1956), H. Moore 'Escola' (1956), Mai-Thu 'La Classe' (1960), 'La Recreation'; Paula Rego 'Sala de Aula' (2001-02), P. Rubens 'Helena Fourment com os seus filhos, Clara, Johanna e Frans' (1636-37), E. Manet 'A Família Monet no seu Jardim' (1874), G. Seurat 'Banhistas em Asnières' (1883-84), P.-A. Renoir 'Menina com Arco' (1885), E. Munch 'Quatro Raparigas em Åsgårdstrand' (1902), E. Schiele 'Mãe e Dois Filhos III' (1917), A. Modigliani 'Mulher Cigana com Criança' (1919), P. Picasso 'Paulo como Arlequim' (1924), F. Botero 'As Crianças Ricas' (1968).
Ao entrarem na sala, os estudantes encontravam estas pinturas espalhadas pelas mesas e era-lhes pedido que escolhessem aquela que mais os impressionava. Enquanto, em fundo, se ouvia uma música da Banda do Casaco, do álbum Coisas do Arco da Velha, 1976:

«É triste não saber ler
É triste não saber falar (…)
É triste um homem morrer
Sem ter chegado a nascer»

Num segundo tempo, cada um explicitaria as razões da sua opção, faria a descrição do quadro, criando, para tal, uma narrativa sobre a 'cena' que o artista pintara. E em complemento, deveria reportar o último museu que havia visitado. Com esta actividade procurava o Prof.S. atingir um triplo objectivo: (i) substituir a apresentação tradicional da 1ª aula, rotineira e árida, por uma forma indirecta de os alunos se darem a conhecer; (ii) impulsionar a participação individual, numa UC que lhes iria exigir múltiplas situações de intervenção oral; (iii) mostrar-lhes também que a «Educação pela Arte» não é exclusiva das chamadas 'UC artísticas'.
Os resultados foram surpreendentes: idas a museus só no quadro de visitas de estudo promovidas pelas escolas que frequentaram (nenhum lá ia por iniciativa própria; e reconheciam essa ausência de hábitos culturais com a maior desfaçatez). A descrição do 'quadro' era muito básica, demasiado sucinta (nenhum conseguia identificar autor ou obra). Mas, em contrapartida, nas suas narrativas havia imaginação e criatividade. E não se coibiam em falar de si e dos seus sentimentos (que diferença abissal dos tempos em que o Prof.S. fora estudante universitário! o 'apagamento do eu', na altura, era a marca de uma escola impessoal, distante e emocionalmente fria).
E essa apetência para se pronunciarem sobre situações pessoais ia-se tornando mais notória com o decorrer das aulas (deixando o Prof.S. algo embaraçado pois algumas eram até de uma certa reserva e intimidade, por exemplo, quando abordaram o tópico do programa «Maus tratos infantis e crianças em risco»). Ao debaterem a 'Educação para o Carácter' - em que lhes procurava transmitir a ideia de conceber a vida como um processo no sentido da utópica perfeição, tentando assim combater a arreigada atitude comodista e estática que manifestavam -, confrontou-os com um texto de Miguel Esteves Cardoso ('É mesmo assim', DNA, 06/02/04, p. 42) que lhes assentava que nem uma luva:
«Desculpa, mas eu sou mesmo assim… é a minha maneira de ser.» […] «Hoje em dia as pessoas deliciam-se a falar dos defeitos pessoais que têm, apresentando-os como parte integrante e indispensável da personalidade; tão encantadores como a cor dos olhos ou as covinhas nas bochechas. Transformámo-nos todos em justificações permanentes de nós próprios.»
Que fazer para inverter esta generalizada tendência? O Prof.S. acreditava que a proximidade com as obras de Arte os ajudaria a singrar os caminhos da qualidade, procurando no Belo uma fonte inspiradora para o desenvolvimento pessoal.

Luís Souta
Este texto não segue o novo acordo ortográfico
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
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