Homo Scholaris (I)
«ora um dia enchi-me de brios e decidi tornar-me
cábula.»
('Elogio da cábula', Ricardo França Jardim, 1995)
O homem é um ser uno,
indivisível mas pluridimensional. Para efeitos de análise, tem-se
enfatizado uma ou outra das suas intrínsecas dimensões - o Homo
Economicus da economia clássica ou o Homo Politicus
foram dos primeiros e mais vulgarizados (para além evidentemente
dos múltiplos Homo que a Antropologia Física nos foi endereçando
sempre que novos achados arqueológicos permitiam reconstituir a
evolução da espécie humana). E, sempre que novo avanço se dá na
esfera tecnológica ou científica, novos alargamentos são
incorporados no repertório das capacidades de intervenção humana -
o Homo Typographicus (Marshall McLuhan, 1962) seria fruto
da revolução na imprensa a partir dos aperfeiçoamentos técnicos
introduzidos por Gutenberg no século XV. Por sua vez, outras
dimensões, ainda que já reconhecidas de há muito na actividade
social do homem só emergem em determinada altura, face a tendências
massificadoras de um determinado fenómeno - o Homo Ludicus
(Sérgio & Feio, 1979) antevia um espaço crescente do ócio em
sociedades que se regeriam por políticas favoráveis ao aumento do
lazer e à diminuição do tempo dedicado ao trabalho (uma 'utopia'
que tem vindo a sofrer fortes revezes, com o recrudescimento de
cargas horárias laborais que levam a que se fale de
'neo-esclavagismos', mesmo em áreas de trabalho intelectual). O
Homo Hierarchicus que L. Dumont (1965) vai buscar à
organização do sistema de castas na Índia, o Homo
Strategicus (Fernandes, 1998), o Homo Communautarius
(do antropólogo Marc Abélès, 1998) essa elite institucional
empenhada na construção da União Europeia ou o polémico Homo
Academicus de Pierre Bourdieu (1984) que tanto impacto teve na
academia francesa, são outros tantos exemplos decorrentes de um
olhar focalizado do investigador sobre uma dimensão em concreto,
numa actividade antiga ou algo que já existia (implícito), e que
ele agora traz à superfície, dando-lhe contornos precisos e
operativos. Outros há, mas de âmbito mais restrito, por exemplo de
carácter regional, e com propósitos mais pragmáticos associados a
intuitos de construção identitária. É o caso do Homo
açorensis que Vitorino Nemésio procurou dar corpo pelo
acentuar das peculiaridades do Açoriano, num quadro histórico e
mesológico únicos. E os exemplos, podiam continuar… Homo
Poeticus (Manuel António Pina, 1974), Homo Socians
(Charles Gardou, 2002), Homo Juridicus (Alain Supiot,
2007), Homo labyrinthus (do filósofo francês Frédéric
Neyrat, 2015).
Da nossa parte, avançamos com o conceito de Homo
Scholaris. Sem dúvida, fruto das especificidades de um sistema
escolar tardio, centralizador e monocultural como é o nosso. Um
habitus escolar de grande continuidade temporal, de forte
sentido conservador, pouco dado a rupturas. Mudanças e inovações,
quando as há, são de ciclo curto, e acabam por ser 'engolidas' pela
vaga de 'normalização', que nunca deixa de se fazer sentir. É
omnipresente, dominante, mesmo em períodos de contestação,
interregno ou transição, ditados pelas chamadas «reformas» (em
regra, voluntaristas, formuladas no enunciado de intenções de
textos jurídicos). Para além dessas conjunturas históricas e de uma
ou outra particularidade decorrente de medidas concretas de
política educativa, o aluno que frequenta a escola reflecte essa
cultura secular de base. Nesse sentido, ele é uma entidade de uma
certa 'invariância', em termos de práticas, atitudes e
comportamentos. Tal como na escola, onde há um travejamento
estruturante que lhe dá perenidade, o homo scholaris é
marcado por um conjunto de traços distintivos, uma série de
idiossincrasias que lhe conferem contiguidade. Esse processo de
padronização não tem a sua origem apenas no interior da própria
instituição escolar. O seio da família é o outro elo que concorre
para esse feixe de sinergias (e tanto mais intenso quanto a
tradição de frequência escolar ou, pelo menos, altas expectactivas
quanto ao futuro académico dos filhos). O homo scholaris
não corresponde a um único tipo de aluno; tal não existe no
universo escolar. A pluralidade sempre existiu. Ainda que
circunscrita a um grupo restrito de tipos paradigmáticos. O
homo scholaris tem os seus extremos, naquilo que na gíria
é conhecido pelos 'cábulas' e 'marrões'. O terceiro tipo, o
dominante em termos quantitativos, é o 'aluno tipo/ aluno normal'.
Pode-se conceber um continuum de cambiantes a partir desse
modelo ideal, central, quer num sentido (dos 'marrões') quer no
sentido oposto (dos 'cábulas'). José Machado Pais (1993:213-247)
actualizou, para os anos 90, esta tipologia: para além dos
«marrões», introduziu os «bacanas», os «graxas» e os
«baldas».