Esther Mucznik, em entrevista
Portugueses no Holocausto
Esther
Mucznik é vice-presidente da Comunidade israelita de Lisboa (CIL) e
fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos. Fundadora
e presidente da Memoshoá - Associação Memória e Ensino do
Holocausto - escreveu o livro Portugueses no Holocausto
(Esfera dos Livros). Precisou de dois anos para pesquisar, escrever
e dar resposta à questão do Holocausto, com a qual convive há
muitos anos. Durante a II Guerra Mundial 6 milhões de judeus
morreram nos campos de concentração nazis, alguns milhares eram
portugueses. Na Holanda, 4 mil judeus de origem portuguesa
reclamaram a sua nacionalidade junto de Portugal, sem que esta lhes
fosse reconhecida. Só graças à vontade e coragem de diplomatas
portugueses, como Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido, ou
Alfredo Casanova muitos judeus foram salvos.
Portugueses
no Holocausto - Histórias da vítimas dos campos de concentração,
dos cônsules que salvaram vidas e dos resistentes que lutaram
contra o nazismo. Quando é que surge a vontade de escrever este
livro?
Em primeiro lugar é um convite da
Editora (N.E: Esfera dos Livros). Foi o que desencadeou
concretamente a escrita do livro. Mas, a questão do Holocausto está
comigo há dezenas de anos. O livro durou perto de dois anos a
pesquisar e a escrever. Há muito tempo que estudo e trabalho essas
questões. Quando digo trabalho, quero dizer, por exemplo, criei a
Memoshoá - Associação Memória e Ensino do Holocausto -, com
professores, nas Escolas Secundárias, precisamente no sentido de os
apoiar no ensino do Holocausto. Tenho desenvolvido projectos com o
Ministério da Educação, ao longo dos anos. É um tema que convive
comigo há muito tempo.
Em
Portugueses no Holocausto pode ler-se: «Para muitos milhares de
pessoas - nunca saberemos o número exacto - que procuravam
desesperadamente atravessar o Atlântico e fugir das sombras da
Europa, Portugal era o porto para a liberdade, e na grande maioria
dos casos para a vida.» A neutralidade de Portugal, declarada por
Salazar, a 1 de Setembro de 1939, foi decisiva para Portugal ter
sido esse porto de liberdade?
Sim. As coisas não têm só uma face.
Por um lado, Portugal apesar de ter limitado, na medida do
possível, a entrada de muita gente, abriu as suas fronteiras e
salvaram-se milhares e milhares de pessoas. Não sabemos quantas, há
muitas estatísticas diferentes. Há quem fale de 100 mil, acho que
isso é um exagero absurdo, mas passaram de facto, por aqui, várias
dezenas de milhares. Para essas pessoas, Portugal foi a "porta para
a vida", não há dúvida absolutamente nenhuma. E nunca é demais
falar disso. Ao longo destes anos, entrevistei muitos dos
refugiados que por aqui passaram, alguns deles ficaram, e todos
eles têm uma gratidão muito grande a Portugal, o que é
completamente legítimo, compreensível e justificado. Para Portugal,
a questão da neutralidade era uma questão absolutamente central.
Portugal estava ligado à aliança com a Inglaterra mas, também tinha
receio que a Alemanha invadisse a Península Ibérica. Portanto,
mantinha-se uma política de estrita neutralidade, que acabou por
permitir o salvamento de muita gente.
E o outro
lado?
O outro lado foi o que me
interessou mais, porque era o menos estudado. O que tinha
acontecido com os descendentes dos portugueses, expulsos pela
Inquisição no século XVI e XVII, e que se tinham implantado em
Amesterdão, Salónica, Istambul, etc. Esse lado é mais sombrio.
Essas pessoas, em grande parte, não foram salvas por Portugal,
porque já não tinham papéis portugueses, apesar de se
reclamarem portugueses. O caso de Amesterdão é muito claro.
Tratava-se de uma comunidade organizada, que se chamou, e chama até
hoje, comunidade judaica-portuguesa, que tinha um número de cerca
de 4 mil pessoas, que estavam organizadas em torno da sua sinagoga
portuguesa. As orações ainda eram em parte portuguesas e os nomes
da esmagadora maioria eram portugueses. Essas pessoas apelaram,
Portugal não lhes reconheceu a nacionalidade e acabaram por morrer
em Auschwitz. Há os dois lados da questão, como em tudo na
vida.
O nome dos
justos brilhará para sempre nos céus. O nome do cônsul português
Aristides de Sousa Mendes surge de imediato. Quem foram os outros
justos portugueses que salvaram Judeus do Nazismo?
Enquanto nos gabinetes, em
Portugal, o governo traçava a sua política a régua e esquadro,
tinha objectivos políticos, e também económicos, muito claros; nos
países ocupados por Hitler, os cônsules portugueses estavam
confrontados directamente com a tragédia e desespero daqueles que
apelavam a Portugal, e não só. Da parte de muitos desses
cônsules há uma atitude de compaixão, solidariedade, tentativa de
ajuda. É evidente que o caso de Sousa Mendes se destaca de todos os
outros, porque é logo no início da guerra. Ele sabe que arrisca
muitíssimo e toda a gente sabe depois o que lhe aconteceu, como foi
punido, etc. Mas, há outros casos. No final da guerra, Sampaio
Garrido e Teixeira Banquinho, em Budapeste. Dois diplomatas que
actuam num ambiente mais favorável porque a Alemanha já perdeu a
guerra e o regime português pensa na sua própria sobrevivência,
portanto, tem uma atitude mais flexível. Mas, mesmo assim, eles
fazem o que podem para salvar judeus e outras pessoas, que também
eram perseguidas. Alfredo Casanova, em Génova e Agenore Magno, em
Milão, também têm uma atitude muito importante e salvam muitas
pessoas de origem portuguesa, e não só. Nos sítios onde não se
puderam salvar pessoas, nomeadamente em Salónica, ou mesmo
Amestardão, foi onde faltou um cônsul enérgico, com vontade de
fazer o máximo para salvar. A presença de cônsules com alguma
margem de manobra e com sensibilidade para o sofrimento dos que os
rodeavam foi um factor muito importante, onde existiu, e muito
importante, pela negativa, onde não existiu.
Os homens
do III Reich eram homens de educação e cultura superior. Por
exemplo admiravam Nietzche, Jünger, Wagner. É mais inconcebível o
Mal quando se esconde por detrás do Pensamento?
É, claro. Uma das grandes lições
muito amargas, talvez das mais amargas do Holocausto, é
precisamente constatarmos que a cultura em si mesma, a educação,
não são um antídoto contra a barbárie. A Conferência de
Wannsee, em Janeiro de 1942, - aliás refiro isso no livro -, reúne
ao mais alto nível todos os dirigentes das instituições Nazis, no
sentido de passarem à prática e de estudarem as modalidades do
extermínio, e dessas 15 pessoas - são só 15 homens, - oito têm
doutoramentos. Quando vemos, por exemplo, o papel dos médicos,
cientistas, enfermeiros, pessoas que fizeram o juramento de salvar
vidas, que têm naturalmente uma educação superior, e, em princípio,
também uma cultura, tiveram um papel absolutamente central no
Holocausto. Logo naquela operação chamada de Eutanásia, em que
decidiam quem "merecia" viver, sem manchar a "gloriosa raça
ariana". Eram eles quem seleccionavam à entrada dos campos quem
devia viver e quem devia morrer; eram eles que faziam experiências
absolutamente horrendas em seres humanos. É de facto como diz, uma
perversão tão grande que é assustadora. O Holocausto aconteceu
devido ao altíssimo grau de educação e de tecnologia que atingiu a
Alemanha. Chegamos à conclusão que é uma virtualidade da nossa
civilização cada vez mais desenvolvida, do ponto de vista
científico e tecnológico. A ciência, a tecnologia e a própria
cultura podem ser uma arma ao serviço do Mal.
Visitou
campos de concentração e fez projectos com o Ministério da Educação
para criar a Memoshoá - Associação Memória e Ensino do Holocausto.
É preciso educar para o Bem?
Muito antes de pensar escrever o
livro, visitei os campos de extermínio Treblinka, Majdanek,
Auschwitz e outros. Quando penso que é importante lembrar o
Holocausto e ensinar, não é exclusivamente a minha perspectiva, e a
perspectiva da associação que criámos, ficarmos pelo passado. É
procurármos, através do conhecimento do passado, conseguir detectar
os sinais da tragédia, no presente e no futuro. Tentar aprender
alguma coisa com o passado. Não tenho muitas ilusões sobre isso,
não sou muito optimista nesse aspecto. Tentamos aprender com a
História, mas, infelizmente, desde o Holocausto têm havido
massacres, genocídios, etc. O estudo do Holocausto se quisermos e
conseguirmos, permite-nos aprender com o passado.
Educar para o bem não é nada fácil.
Mas, é esse o objectivo. Percebermos que todos temos uma escolha,
somos livres dessa escolha. Uma das grandes lições do Holocausto
foi como é irrisório dizer: "Eu obedeci a ordens.". Muitos nazis
fizeram-no, quando foram julgados nos Julgamentos de Nuremberga.
Inclusivamente Eichemann (N.E: Figura Central do Holocausto) dizia:
"Eu obedeci a ordens. Era um funcionário". Nós somos seres humanos
com uma liberdade de escolha entre o bem e o mal. Essa escolha nem
sempre é fácil, admito. Mas, ao longo da História, houve sempre
homens que souberam escolher. Temos essa liberdade e temos de
assumir essa liberdade.
Em Portugal
ainda existem muitos preconceitos em relação aos Judeus?
O estereótipo está subjacente.
Mesmo que as pessoas não tenham consciência, na realidade ainda
funciona. É tão antigo, enraizado ao longos dos séculos. Estamos a
falar de dois mil anos de estereótipos, preconceitos, hostilidade.
É uma coisa muito profunda. Hoje, vivemos numa situação de
democracia, liberdade, e as pessoas aceitam melhor a diferença. No
fundo, o grande problema da humanidade - em que todos nos incluímos
- é a diferença. Os judeus sempre recusaram a assimilação. É uma
das razões da sua sobrevivência, a sua vontade desesperada, ao
longo dos séculos, de manter a sua religião no que isso implica,
costumes, maneira de estar, etc. Hoje, convive-se bem. Não quero
dizer, que de vez em quando, esses estereótipos não saltem à tona,
de formas inesperadas. Do ponto de vista histórico, esta é a
convivência mais pacífica e harmoniosa que se conheça. Mas, não
podemos adormecer nunca "à sombra da bananeira", como se costuma
dizer. A liberdade é um processo, nunca acontece de uma vez por
todas. Basta olhar para o judaísmo em Portugal. Em 1763, o Marquês
de Pombal aboliu as diferenças entre cristãos novos e cristãos
velhos ; em 1821, a abolição do Tribunal da Inquisição; em 1912, as
comunidades não católicas são reconhecidas legalmente e a
comunidade Israelita é reconhecida; em 2001, há a lei da liberdade
religiosa. É um processo, com os seus altos e baixos, que nos
conduz a uma situação de maior liberdade, nomeadamente, dentro do
regime democrático.
No final do
seu livro deixa-nos uma grande pergunta : "Podia ter-se feito
mais?"
É uma pergunta que nos atormenta.
Não falo só dos judeus, falo em geral de Portugal e do mundo
inteiro. É evidente que, os "ses" não existem na História, não vale
a pena, sequer, estarmos a epilogar muito sobre isso. Comecei a
estudar, há muitos anos, o que a comunidade e Portugal fez, porque
era uma questão que me preocupava. Na nossa vida, o mais importante
é podermos sempre olhar-nos ao espelho com a consciência
relativamente tranquila - nunca estamos com a consciência
completamente tranquila. Portugal podia ter feito mais, podia ter
salvo os milhares de portugueses descendentes de judeus. A
comunidade também devia ter feito mais. Teve um papel positivo e
importante, mas podia ter investido mais. O professor Amzalak, que
era o presidente da comunidade, foi várias vezes falar com Salazar,
no sentido da abertura das fronteiras, provavelmente, poderia ter
sido feito mais, também. Essa pergunta surge, porque tudo o que se
fez no imenso oceano daqueles em que nada se pôde fazer é sempre um
balanço muito insatisfatório. Pelos milhares que se salvaram,
milhões foram mortos. Há sempre uma insatisfação atormentada quando
se faz o balanço. É verdade não só para os judeus, não só para
Portugal. É verdade para todos, inclusivamente para os próprios
aliados. Em finais de 42, princípios de 43, ao nível dos governos,
das chancelarias, já se sabia o que se estava a passar e, no
entanto, também não fizeram nada. Portugal não fica pior no retrato
do que os outros países.
Nas
histórias dos sobreviventes que reuniu no seu livro há um
sentimento partilhado por todos eles?
Primeiro, um sentimento de gratidão
em relação a Portugal e à população portuguesa. No geral, a
população portuguesa foi compassiva. Esse é o primeiro sentimento
que todos partilham. O segundo, a grande aversão, horror, em
relação ao Nazismo. Agora, há diferenças, por exemplo, os polacos
nunca mais quiseram por os pés na Polónia, e até se recusaram a
falar Polaco. Dou o caso dos meus pais, eles vieram antes da
guerra. Sobretudo, do lado da minha mãe, vinham por razões de
anti-semitismo. Ela nunca mais voltou à Polónia. No caso dos
Alemães é diferente e é interessante vermos. Os judeus alemães eram
os que mais amavam a cultura Alemã. E esse amor não morreu. O que
ficou foi o ódio a Hitler, ao nazismo e a tudo isso. Os judeus
alemães, entre o século XIX e a II Guerra Mundial, assimilaram,
viveram, trabalharam e destacaram-se profundamente na cultura e na
sociedade Alemã. É preciso dizer isso com toda a clareza. Aliás, os
judeus franceses também. Mas, os judeus alemães, que foram as
maiores vítimas, não estavam de maneira nenhuma preparados para o
que lhes iria acontecer. Foi uma dor profunda e intensa que levou
ao suicídio de alguns deles, nomeadamente Stefan Zweig, Valter
Benjamin e muitos outros. Para eles, principalmente para os
escritores, a pátria era a língua. Os judeus das diferentes origens
têm comportamentos diferentes. Mas, há algo que os une em relação a
Portugal, que é uma grande gratidão.
O Movimento
da Resistência foi de extrema importância durante a II Guerra
Mundial. Como foi o papel dos portugueses na Resistência?
Infelizmente, acho que se conhece
pouco. Tentei procurar, embora não fosse bem o foco central do
livro, e encontrei nomes de portugueses. Os portugueses tiveram um
papel mais importante do que se conhece e do que se pensa na
Resistência, nos países ocupados pelo nazismo, onde estavam
emigrados. O caso da França é o caso mais significativo. Pela
análise, não muito aprofundada, aquela que pude fazer nos próprios
campos de concentração, que me forneceram nomes, em documentos e
livros que encontrei, penso que houve bastante portugueses, - não
sei quantos - que participaram no Movimento Resistência francês.
Através das Brigada Espanholas, havia muitos espanhóis refugiados
da Guerra Civil de Espanha e que actuaram na Resistência francesa,
em grupos estrangeiros. A Resistência Francesa tinha muitos grupos.
Houve portugueses integrados nas fileiras francesas, portugueses
integrados nas brigadas espanholas e portugueses nas brigadas de
estrangeiros, de uma forma geral. Alguns deles surgem nos campos de
concentração, alguns foram mortos. Quando se diz distinto
desconhecido, foram mortos; quando se diz libertado é porque foram
libertados e sobreviveram. É um estudo que seria muito interessante
de se fazer. Não o fiz aprofundadamente, mas o suficiente para me
aperceber que é um campo interessante e que contou com alguma
força.