Alice Vieira, jornalista e escritora
Um livro aberto de histórias
Sucessivas gerações cresceram com a
leitura dos seus livros, mas é no jornalismo que tem as suas raízes
e onde tudo começou. As diferentes faces de Alice Vieira, na
primeira pessoa.
Li no «Jornal de Mafra», jornal onde ainda colabora, uma
descrição sua: «operária das palavras e mulher de alma grande».
Revê-se?
De alguma forma. Todos os jornalistas são operários das palavras.
Quando me perguntam a profissão eu digo logo: sou uma jornalista
que também escreve livros. Porquê? Porque o jornalismo define muito
a nossa maneira de escrever e dá muita atenção às palavras.
E é uma «mulher de alma grande»?
Sou amigo-dependente e não passo sem eles. Eu fiz 75 anos no dia
20 de março e até agosto já festejei o meu aniversário seguramente
em oito festas diferentes. Se isto é ter uma alma grande, então eu
tenho. Gosto de pessoas.
Recentemente foi publicado um livro que a homenageia e a que se
chamou «Retratos contados». O autor procurou descobrir as diversas
Alices: a criança, a escritora, a jornalista, a mãe, a avó e a
mulher. Em qual destas peles se sente mais confortável?
Não consigo separar. Sinto-me confortável em todas, mas talvez a
que pratique menos é a de avó, porque eles estão todos longe. Mesmo
os mais novos, que moram mais perto, vivem em Torres Novas. Mas
procuro ser uma avó o mais presente possível.
É no jornalismo que desaguam todas as suas conversas.
Depois do «Diário de Lisboa», seguiu-se o «Diário Popular» e o
«Diário de Notícias». É vício, paixão ou o seu
prolongamento?
É paixão. Segundo me disseram no outro dia, tenho 84 livros
publicados. São bastantes. Se os meus editores me dissessem para eu
parar, eu parava, logo. Já quando não tenho nenhum jornal para
escrever, e isso felizmente acontece pouco, confesso que me custa
muito. A escrita de jornal é outra coisa, definitivamente. Comecei
muito cedo nos jornais e é uma paixão que me vai acompanhar até
morrer. Considero que sou muito mais jornalista do que
escritora.
É uma apaixonada por «estórias» e
histórias?
Completamente. Até as discussões entre casais aqui no meu bairro
são logo fator de inspiração para as minhas crónicas. Se estivermos
de olhos e de ouvidos abertos temos sempre histórias para contar.
Lembro- -me de um grande jornalista, o Carlos Pinhão, que dizia com
graça e realismo, «eu vou ali à rua buscar uma história».
O jornalismo
vive tempos perigosos. Foi um murro no estômago ver o seu «DN»
passar a semanário?
Foi um grande murro no estômago, especialmente para os jornalistas
da velha guarda. E não sabemos onde foram parar os arquivos do
jornal, o que é duplamente preocupante. Penso que esta decisão é o
anúncio da morte anunciada do jornal ou então ficará apenas em
versão digital.
Não se revê no jornalismo atual?
Mudou muita coisa. Lembro-me que no meu tempo os
jornalistas;
tinham liberdade completa para fazerem o que quisessem e só quando
regressavam à redação é que comunicavam ao chefe o que tinham em
mãos. Custa-me muito ler notícias em três linhas, mal feitas, pior
escritas. Com tanta escola de jornalismo por aí…
A passagem de muitos títulos para a posse de grupos
económicos foi determinante?
Não sei. Há muita informação a circular. Li no outro dia um
artigo, já não me recordo o autor, que dizia algo como «estes
jornais não são para velhos». Quem é que compra hoje um jornal em
papel? São os mais velhos e até duvido que muitos destes leitores
se revejam no produto que têm nas mãos. E dar notícias que já todos
sabem de véspera vale de muito pouco. Os jornais de hoje teriam de
mudar, acima de tudo, fazer diferente. Mas não é isso que está a
acontecer. Pelo contrário, os jornais da atualidade estão todos
iguais.
As redações perderam memória?
Confrontamo-nos com algo terrível, e que por vezes se consegue
constatar em notícias, aqui e ali, que o que se passou há meia
dúzia de anos dificilmente é conhecido pelos profissionais mais
novos.
As escolas de jornalismo e os cursos de comunicação social
pecam por ensinar muita teoria e pouca prática?
Vou contar-lhe uma história: no primeiro congresso de jornalistas
lembro-me de estar com o Afonso Praça e passarem uns alunos da
faculdade de jornalismo e ele dizer, no seu estilo: «Esta gente
está toda cheia de semiótica nas cabeças!». Isto para lhe dizer que
a bagagem é importante, mas só com a tarimba é que um profissional
consolida os seus conhecimentos. A prática é que vai ensinar tudo.
Mas digo-lhe já: não é por se ter um curso numa universidade de
jornalismo que se fica jornalista.
Costuma dizer que falta a camaradagem do
seu tempo e as tertúlias e os jantares nos restaurantes e nos bares
de Lisboa…
O contexto era diferente. Não havia net e se queríamos notícias
tínhamos de andar à procura delas. E não havia melhor sítio do que
os restaurantes e os bares de Lisboa. Reconheço que não tínhamos
grande vida privada, porque depois de fechado o jornal, o trabalho
continuava à mesa. E esse convívio pós-trabalho reforçava, e muito,
os laços de solidariedade entre nós. O espírito de corpo era muito
forte. Ainda hoje quando nos encontramos, um grupo a que se deu o
nome de ADN (Antigos do Diário de Notícias), recordamos esses
tempos com muita saudade. Foram momentos que nos marcaram
bastante.
O cheiro a chumbo das redações é algo que lhe ficará para
sempre…
Sempre. Estas novas gerações não sabem o que isso é. O barulho da
máquina escrever, o cheiro a chumbo e o paginar no chumbo, são
vivências que nunca sairão da minha memória.
Vamos agora para a Alice escritora. Quando é que se
apercebeu que era um fenómeno literário de crianças e
adolescentes?
Eu, fenómeno literário? Gosto que as pessoas me leiam e que venham
falar comigo, nomeadamente na Feira do Livro, onde estou do
princípio ao fim. A escrita nasceu comigo, mas na edição de livros
já estou há cerca de 40 anos. Aqui há uns dias fui a uma escola e
uma miúda deu-me um livro para assinar e verifiquei que estava
muito manuseado. Então não é que naquele livro eu já tinha
feito dedicatórias para a avó, para a mãe e agora para a
filha?
Viveu em Paris durante alguns anos e chegou mesmo a
experienciar o Maio de 68. O que é que trouxe da cidade
luz?
Fui para Paris zangada com toda a gente. E deparei-me com um mundo
de oportunidades e de experiências novas. Por isso costumo dizer
que Paris foi a minha universidade. Fui viver com uma prima minha
que estava lá exilada, a jornalista Maria Lamas. Esta ativista
extraordinária recebia personalidades da reputação do Jorge Amado,
da Zélia Gaitan, o Pablo Neruda, o Jorge Semprun, etc. Quando
cheguei a Lisboa, de mente aberta, vinha decidida a fazer o que me
vinha na alma e assim foi. Foi o clique que faltava a uma jovem de
vinte e poucos anos.
Falemos agora da educação literária e que voltou a ser
relançada com a polémica em torno de «Os Maias». Qual é a sua
opinião?
Há livros que têm mesmo de ser dados. Tenho muito medo destas
modernices, em que só se lê aquilo ou assado. Não faz mal nenhum
puxar pela cabeça dos miúdos. E acho que «Os Maias» facilita esse
exercício. Eu todos os anos leio «Os Maias» e descubro sempre
coisas novas.
Por falar em «Os Maias», ainda estamos muito próximos,
como país, desse Portugal do século XIX?
Então não estamos? «Os Maias» somos nós. Mas é um livro riquíssimo
pela forma de escrever e pelas maravilhosas histórias que Eça
descreve ao longo de toda a obra. É um livro fascinante.
Teve uma infância conturbada e diz mesmo que o Liceu Dona
Filipa de Lencastre, em Lisboa, foi a sua verdadeira família. Como
recorda esses tempos?
Vivi sempre com tios velhotes e não fui à escola. Aprendi com uma
senhora a ler, a contar, etc. Era obrigatório fazer o exame da
quarta classe a uma escola pública e lá fui. Quando eu disse que
queria ir para o liceu, os meus familiares iam-me matando,
argumentando que eu não ia gostar de estar com crianças. Puro
engano. Eu até inventava aulas que não tinha para lá estar mais
tempo. Eu era muito popular, ia aos casamentos das empregadas, à
casa dos professores, etc. Foi muito marcante. A minha sala de aula
nesse liceu tem hoje o meu nome.
Visita cerca de 80 escolas por ano. Tem algum secretário
para fazer a gestão dos agendamentos?
É a minha editora que trata da logística. Às vezes tratam
diretamente comigo, mas eu procuro sempre encaminhá-los para lá.
Agora no mês de setembro vão começar a cair os primeiros pedidos.
Não podemos ir a todas, mas a maior concentração de solicitações e
de visitas é quase sempre no norte, uma região do país
particularmente ativa neste campo.
Diz que tem paciência com os alunos, mas confessa que por
vezes a perde com os professores. Pode explicar-nos?
Os professores são, por vezes, muito «certinhos», enquanto os
alunos são mais expansivos. Faz muito diferença - e isso nota-se -
ver alunos tratados por professores que dão todos os dias o seu
máximo por uma escola melhor. No outro dia tive um episódio muito
divertido e triste ao mesmo tempo. Ligaram-me de uma escola a
convidar para lá ir, mas disseram-me que naquele estabelecimento
não entravam livros, nem cadernos. «Ai é? Então eu também não entro
aí. Obrigado».
Saem todos as perder com o braço de ferro entre os
professores e o Ministério?
Nunca foram fáceis as relações entre professores e Ministério da
Educação, mas acho que está na hora de chegarem a um consenso e de
porem a mão na consciência e reconhecer que são sempre os miúdos os
mais prejudicados.
Define-se como uma fanática do Facebook. O que é que a
atrai?
Faço todos os anos cursos de escrita criativa, mas já disse que
qualquer dia faço cursos para ensinar como se usa o Facebook. É um
perigo? É, se nós deixarmos. É uma invasão de privacidade? Sim, se
permitirmos. Mas esta ferramenta bem utilizada é extraordinária. Eu
dei uma queda, em Paris, há cerca de dois anos. Quando cheguei a
Lisboa, cheia de dores, escrevi no Facebook o que se tinha passado.
Num ápice, tinha a Ana Escoval, a diretora de todos os hospitais de
Lisboa, a mandar-me uma mensagem informando-me que tinha consulta
marcada no hospital Curry Cabral. Eu cheguei lá e o médico diz-me:
«Podia ter ficado paralítica!»
Tem muitos bloqueados no seu Facebook?
Ui, tantos. Aquilo é o meu quintal e é para eu me divertir.
Preocupa-a o tempo que os mais jovens passam diante de
aparelhos tecnológicos?
Há tempo para tudo, mas o que me assusta é a exclusividade para
essas maquinetas todas. Os miúdos conversam muito pouco e não é
dando um telemóvel a um miúdo pequeno para o calar que o vão
incentivar ao diálogo. As crianças aprendem é com o exemplo.
Para finalizar, a Alice e o país. Disse que «foram
precisos 75 anos para gostar do Presidente da República, do
Primeiro-Ministro, do presidente da Câmara e da presidente da
junta». Como é que explica esta coincidência, sendo estas
personalidades de gerações diferentes?
Marcelo Rebelo de Sousa é meu amigo há muitos anos e tenho com ele
aqueles contactos malucos que toda a gente tem. Já lhe disse: «não
votei em ti, mas na próxima voto». Estou perfeitamente
rendida. Eu fui muito amiga do pai do António Costa, o escritor
Orlando Costa. O Fernando Medina é meu vizinho e sou muito amiga da
mãe. Finalmente, gosto muito da presidente da junta, a Ana Gaspar.
Penso que todos têm feito bons trabalhos, ainda por cima em
contextos difíceis.
Já disse que «a minha gargalhada tem-me ajudado a
sobreviver» e, para ser franco, tenho sido testemunha disso nesta
hora que levamos de entrevista…
As pessoas já me vão conhecendo
pela minha gargalhada. Em qualquer local, eu rio-me e as pessoas
sabem que eu estou lá.
Cara da
Notícia
Referência no jornalismo
e nos livros
Alice Vieira é um livro aberto de
histórias que vai desfiando a um ritmo avassalador, intervalando-as
com sonoras e contagiantes gargalhadas. Recebe-nos a meio da manhã
de um tórrido agosto na sua casa das Avenidas Novas, em
Lisboa.
Alice Vieira nasceu em 1943, em Lisboa. É licenciada em Filologia
Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Iniciou a sua
carreira de jornalista aos 18 anos, no Diário de Lisboa. Trabalhou
em vários jornais, entre os quais o Diário de Notícias, a cuja
redação pertenceu até 1990, data em que deixou o jornalismo diário,
para ficar como free-lancer, sendo durante muitos anos colaboradora
do Jornal de Notícias e da revista Activa. Atualmente está
reformada do jornalismo, mas trabalha no Jornal de Mafra e, desde
há 13 anos, na revista juvenil Audácia, dos missionários
combonianos.
Em 1979 publicou o seu primeiro romance juvenil - Rosa, Minha Irmã
Rosa - que nesse ano ganhou o "Prémio de Literatura do Ano
Internacional da Criança".
Desde então tem publicado regularmente romances juvenis, poesia,
teatro, recolhas de histórias tradicionais, livros infantis. Fez
parte da equipa de escritores dos programas de televisão "Rua
Sésamo", "Jornalinho", "Hora Viva", "Arco-Íris", etc. Desloca-se
quase diariamente a escolas e bibliotecas de todo o país - e também
de países onde os seus livros estão traduzidos (Espanha, Alemanha,
Holanda, Itália, Suécia, Sérvia, etc.).
Nuno Dias da Silva
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